Há atletas que em momentos de maior tensão, como os Jogos Olímpicos, preferem fugir dos holofotes dos media, dos colegas, das multidões, e fecham-se num casulo. Como se só dessa forma pudessem reunir todas as forças, energia e concentração necessárias para a exigência que os espera. Não é o caso de Noah Lyles, o alegre e espalhafatoso norte-americano que além de assumir-se como o homem mais rápido do mundo, também é rapper e tem pela moda uma enorme paixão. De sorriso largo e sem papas na língua, o velocista nascido há 27 anos em Gainesville, na Florida, é o principal candidato ao ouro nos 100 e 200 metros, e também nas estafetas 4x100m. Mas ele quer mais e sonha com mais uma medalha, se o deixarem participar na estafeta 4x400m.
Desde que se tornou tricampeão do mundo (100 m, 200 m e 4x100 m), em Budapeste, no ano passado, que Lyle se autoproclama como o homem mais rápido do mundo, o que tem gerado alguma controvérsia no meio, uma vez que o tempo mais rápido de Lyles nos 100 metros (9,81 segundos), alcançado há menos de um mês, fica aquém do registado pelo velocista jamaicano Kishane Thompson (9,77s) e por Ferdinand Omanyala, do Quénia, que em junho fez 9,79s.
Lyles justifica que o rótulo de “mais rápido” pertence aos detentores do título, não ao cronómetro. A assistir de perto à ascensão de Noah Lyles, que despertou o mundo nos Jogos de Tóquio, onde foi medalha de bronze nos 200 m, o tricampeão olímpico Michael Johnson, medalha de ouro nos 200 m de Atlanta, em 1996, não conseguiu ficar calado perante o inflamado ego do compatriota, escreveu no X: “Alguns factos. Usain é o mais rápido de sempre. Ponto. Noah é o campeão do mundo. Ponto. Marcel é campeão olímpico. Ponto. Kishane tem o tempo mais rápido do mundo. Ponto. Tudo o resto é opinião, e opiniões não são factos!”
Noah não parece interessar-se sobre o que dizem dele e assume querer ser campeão olímpico e quebrar recordes mundiais, nomeadamente, os dos 100 metros (9,58s) e 200 metros (19,19s) que pertencem a Usain Bolt, oito vezes campeão olímpico. Tarefa que muitos acreditam não estar, para já, ao seu alcance, nem dos seus opositores em Paris, como Marcell Jacobs e Andre De Grasse, campeões olímpicos em Tóquio; as esperanças jamaicanas Kishan Thompson e Oblique Seville; os africanos Ferdinand Omanyala e Letsile Tebogo, ou os seus colegas americanos Kenny Bednarek e Fred Kerley.
Usain Bolt tem-se mantido discreto e à margem do bate boca, mas já concordou que Noah “é um grande atleta", “cheio de energia” e que “mentalmente é muito forte e acredita em si mesmo”.
E confessou: “Se ele quebrar o recorde mundial, não ficarei feliz.”
Da asma ao bullying e da depressão à glória
Noah Lyles cresceu no seio de uma família de velocistas. O pai, Kevin, participou nas eliminatórias da estafeta de 4x400 m quando os EUA ganharam o ouro no Campeonato do Mundo de 1995; a mãe, Keisha Caine Bishop, destacou-se nos 400 m, e o irmão, Josephus, conquistou uma medalha de bronze para os EUA nos Campeonatos da América do Norte, América Central e Caraíbas (NACAC) de 2022, nos 200 metros. Mas a pista não foi sempre um terreno natural para Noah. Aos cinco anos, foi-lhe diagnosticada asma. Fez tratamentos, removeram-lhe as amígdalas, os adenoides e começou finalmente a jogar basquetebol e a correr com os amigos.
Após ter apanhado gripe suína e ter ficado ligado a uma máquina de apoio respiratório, recuperou e iniciou-se no atletismo, aos 12 anos, quando o treinador Michael Hughes, foi chamado à escola para o ver correr. “É assim que o professor de música de Beethoven se deve ter sentido”, terá exclamado Hughes.
A partir daí, o percurso da principal atração da série documental de seis episódios da Netflix, ‘Sprint: Os Humanos Mais Rápidos do Mundo’, está longe de ser linear.
Noah revelou recentemente que, em criança, foi diagnosticado com distúrbio de défice de atenção e dislexia, e que foi alvo de bullying por parte dos seus colegas de escola devido à sua aparência. Valeu-lhe uma mãe, atenta, que procurou ajuda psicológica para o filho. O atletismo, onde cedo descobriu que era bom, fez o resto, ajudando-o a criar foco e a ganhar confiança. Em 2019, sagrou-se campeão do mundo dos 200 m, ganhou também a medalha de ouro na estafeta 4x100 m e gradualmente foi moldando e mostrando uma personalidade alegre e extrovertida, que voltou a ser abalada antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio.
A pandemia e o assassinato de George Floyd atiraram Noah para uma profunda depressão, em 2020. Não queria sair de casa, deixou de interagir com pessoas, estava desiludido com o mundo. Mais uma vez a mãe foi mestre a atuar. Convenceu-o a procurar de novo ajuda e Noah teve de usar medicação antidepressiva. “Lembro-me do primeiro dia em que tomei. Senti-me como se uma enorme pedra tivesse saído do meu peito”, revelou o atleta.
Nos Jogos de Tóquio, o inchaço de um joelho antes da corrida dos 200 metros baixou-lhe o termómetro das expectativas. Apesar de ter feito um bom tempo (19,74s), não foi suficiente para bater Andre De Grasse e Bednarek. Diz que o bronze ainda hoje lhe queima no peito. “Em Tóquio, senti que tinha desperdiçado uma grande oportunidade”, disse à NBC News. Mas, por outro lado, reconhece: “Se aquele momento não tivesse acontecido, nunca teria feito o que fiz até agora. Acho que não teria a mesma motivação que tive nos últimos anos.”
Irreverente apenas, ou arrogante?
Os últimos três anos de Lyles foram em crescendo, com vários ajustes na sua condição física e mental. Em 2022, durante o Campeonato do Mundo em Eugene, Oregon, conquistou o segundo título mundial nos 200 m e ultrapassou o recorde nacional de longa data de Michael Johnson (19,32s) ao correr em 19,31s. No ano passado, em Budapeste, sagrou-se tricampeão do mundo (100 m, 200 m e 4x100 m), tornando-se o primeiro atleta a ganhar três medalhas de ouro em mundiais, desde Usain Bolt, em 2015.
Conhecido pelas suas desbragadas declarações, onde se encontram frases como,"tu precisas ter a mentalidade de um Deus" ou “acredito verdadeiramente que o momento não é maior que eu, o momento foi feito para mim”, Noah está determinado também que o atletismo ganhe mais e maior notoriedade. Nem que para isso seja preciso dar uma bicada noutras modalidades.
Provocador, numa conferência de imprensa após as vitórias no Mundial de Budapeste, questionou a razão por que os vencedores das finais da NBA são chamados de campeões mundiais. “Campeões mundiais de quê?”, perguntou, “dos Estados Unidos?”. As reações de nomes grandes da NBA, como Kevin Durant, Aaron Gordon e Devin Booker, não se fizeram esperar. Certo é que as declarações viralizaram nas redes sociais e parecem ter influenciado as estrelas do basquetebol dos EUA a participarem nos Jogos Olímpicos, reavivando o ‘Dream Team’ dos Jogos, em 1992. Lebron James e Kevin Durant estão em Paris, por exemplo.
Inquieto e excêntrico, o velocista de 27 que também gosta de pintar as unhas e usar roupas diferentes, mostra talento para desenhar e é fã de Anime japonesa. Nos trials de qualificação para os Jogos de Paris, exibiu para as câmaras, antes de cada corrida, cartas do Anime “Yu-Gi-Oh”, revelando mais tarde que se tratou de uma aposta com a sua colega de arremesso do peso, Chase Ealey.
Mas as apostas agora são sobre ele. Será o norte-americano capaz de calar os críticos e os céticos, sendo mais rápido que um raio?