
O ano é 2025. Deste lado do oceano, o Europeu feminino bate recordes de assistências nos estádios, de prémios monetários distribuídos, até de golos marcados. Nem tudo é perfeito, longe disso, mas o futebol jogado pelas mulheres faz o seu caminho. Na América do Sul, as lutas das jogadoras são maiores, mais incompreensíveis até, face ao que já deveria ser um grau mínimo de desenvolvimento do desporto.
A Copa América feminina está a jogar-se no Equador. Ou melhor, em Quito, capital do país andino. Na fase de grupos, a competição está distribuída por dois estádios, um para cada grupo. O que na prática redunda na excentricidade, já impossível no futebol masculino, de cada recinto receber dois jogos no mesmo dia, um às 16 horas locais e outro às 19h.
O que por si só já é estranho torna-se ainda mais quando está a ser pedido às equipas para não aquecerem nos relvados onde vão jogar, já que os dois encontros são realizados de forma consecutiva. Uma situação ainda mais insustentável quando, antes do Brasil-Bolívia de quarta-feira, foi exigido às jogadoras titulares (as substitutas estão impedidas de o fazer) que fizessem o aquecimento numa sala interior do Estádio Gonzalo Pozo Ripalda, casa do Aucas, num espaço exíguo e sem relvado natural, portanto sem o mínimo de condições de segurança para 22 futebolistas treinarem convenientemente.
O insólito não impediu o Brasil de golear a seleção da Bolívia (6-0), mas as críticas foram vocais no final do encontro. Arthur Elias, selecionador brasileiro, lamentou que por estes dias ainda seja necessário exigir responsabilidades à CONMEBOL por coisas básicas. “Não deveríamos ter que cobrar que os responsáveis pelo futebol façam o trabalho deles. A questão do aquecimento preocupa-me muito porque hoje [quarta-feira] tivemos uma jogadora no final do aquecimento que sentiu uma possibilidade de problema muscular”, sublinhou o técnico em declarações difundidas pelo "Globo Esporte".
No fim de semana, depois da estreia do Brasil na competição que já conquistou por oito ocasiões, Elias já tinha justificado a ausência da estrela Kerolin frente à Venezuela depois da atleta sentir um incómodo no dia do jogo. “Estamos numa competição em que as seleções não aquecem no campo, não podemos nem aquecer as jogadoras que ficam no banco. Foi um cuidado com uma jogadora que tem um histórico de lesões”, explicou.
Após o encontro com a Bolívia, Arthur Elias voltou a reforçar o risco para as jogadoras, nomeadamente as substitutas. “São atletas que não aqueceram, porque não há espaço [para aquecerem], elas vão entrar sem aquecer”, lembrou. O treinador sublinhou ainda que quando as equipas não aquecem no terreno de jogo “demoram mais” a entrar no jogo. “Ocorrem mais erros de passe, por exemplo. Eu acho que isso influencia muito”, apontou em conferência de imprensa.
As críticas foram secundadas pelas jogadoras brasileiras, para quem este tipo de obstáculos são já anacrónicos. Ary Borges, atacante do Racing Louisville, da liga norte-americana, uma das mais fortes do mundo, deixou um desabafo sentido no final do encontrou, exigindo responsabilidades e empatia à CONMEBOL. “Gostaria de aproveitar este espaço para dizer que a gente passou por uma situação muito complicada. O que a CONMEBOL está a fazer é ridículo, até os jogos da várzea eram mais organizado”, sublinhou. Por jogos da várzea, expressão usada no Brasil, a jogadora refere-se a encontros amadores.
“Quero perguntar ao Alejandro [Domínguez, presidente da CONMEBOL] se ele conseguiria aquecer dentro de um espaço de 5/10 metros e com cheiro a tinta. Temos o exemplo da Copa América Masculina, com uma estrutura enorme. Por que razão a feminina está a ter este tipo de coisa? A gente ter que dividir um espaço de 10/15 metros quadrados para aquecer. Acho que merecemos melhor”, atirou a jogadora, visivelmente incomodada.
Senadora absoluta do futebol brasileiro (e Mundial), seis vezes melhor jogadora do planeta e alguém que assistiu ao desenvolvimento do futebol feminino nas últimas duas décadas, Marta juntou-se ao coro de incredulidade. “Há muito tempo que não jogava num campeonato aqui na América do Sul e ficamos tristes com estas situações”, admitiu a avançada do Orlando Pride. Marta lembra que é exigido às atletas que tenham “um nível alto de trabalho” e que por isso também é necessário “cobrar um alto nível de organização”, disse ao também "Globo Esporte".
“Esta situação realmente atrapalha, não havia espaço suficiente para as duas equipas, mas ambas queriam estar ali para se prepararem. Eu realmente não entendo o motivo de não se poder aquecer no campo”, frisou ainda a futebolista de 39 anos, que recordou ainda as condições atmosféricas já de si difíceis em Quito, com muito calor e altitude: “Estamos a torcer para que a CONMEBOL reverta algumas coisas e melhore.”
Tem sido prática comum em edições anteriores da Copa América feminina a realização de jogos em sequência no mesmo estádio. Em 2025, o futebol feminino já merece outra consideração.