
É jovem, promissor e brilhante no quadro tático, mas voltou a sair de cena com a sensação de que tudo se lhe escapou entre os dedos nos metros finais. Aos 36 anos, o florentino Francesco Farioli é um dos nomes mais vezes repetido por quem segue com maior atenção o futebol internacional e quase sempre pelas melhores razões até este ano, sobretudo pelo descalabro que foi incapaz de travar em Amesterdão. É, ainda assim, um dos preferidos de André Villas-Boas para o cargo de treinador principal, apesar de muitos o verem com perfil semelhante a Martín Anselmi, que sairá sem glória após apenas alguns meses. Com trajeto no futebol europeu, ao contrário do argentino, a comparação faz algum sentido, uma vez que também ele exige muito aos seus jogadores na perspetiva da criação de um estilo único.
Para muita gente, Farioli poderá ser ainda um desconhecido, porém há algo no seu currículo que deveria chamar de imediato a atenção de todos: foi responsável pelo trabalho de guarda-redes no Benevento e no Sassuolo na altura de Roberto De Zerbi, que continua a ser um dos treinadores da moda.
Não foi futebolista profissional, mas cedo quis treinar. Após várias experiências, inclusive no Qatar, na Academia Aspire, foi na Turquia que começou a chefiar equipas técnicas. Primeiro, no recém-promovido Karamguruk, que levou ao 8.º lugar, e depois no Alanyaspor, que acabou a bater o seu próprio recorde de pontos, no 5.º posto. Deixou o país após o brutal sismo de fevereiro de 2023. Na universidade de Coverciano (Centro Técnico Federal da FIGC, a federação italiana) garantiu o nível UEFA Pro e chegou, no verão desse ano, ao Nice.
O emblema da Côte d’Azur chegou a ocupar o segundo lugar da Ligue 1 e a deter, no final de janeiro, o estatuto de segunda defesa menos batida de uma liga Big Five então atrás do Inter de Milão, com 11 golos em 19 jogos, contudo a reta final da temporada foi menos bem-conseguida – fevereiro e março foram meses terríveis – e caiu para a 5.ª posição, com mais 18 remates certeiros consentidos, mas garantindo a presença na Liga Europa. Ainda que tenha terminado com o pior ataque até ao 13.º classificado – e mesmo assim o penúltimo, o Lorient, apontou mais três golos (43) – na sua caminhada venceu o PSG no Parque dos Príncipes (3-2), o Mónaco no Louis II (1-0), o Rennes, em casa (2-0) e o Lens no Bollaert-Delelis (3-1).
Em 23 de maio de 2024, foi anunciado como o novo treinador do Ajax. Tornou-se o primeiro italiano a liderar os Filhos dos Deuses e, ainda, o primeiro estrangeiro no cargo desde 1998, quando o dinamarquês Morten Olsen, figura histórica do clube desde os tempos de jogador, assumiu os comandos. A direção viu no jovem transalpino um líder capaz de devolver ao clube os princípios de organização ofensiva pelos quais era conhecido desde a década de 70 e valorizar ainda o talento jovem, outra das bandeiras dos amsterdammers. A imprensa neerlandesa saudou a aposta e o De Telegraaf escreveu: «A estrada para uma carreira fantástica como treinador está agora escancarada para Farioli». Não tardou a justificar o entusiasmo.
«Conseguiu dar nova energia ao Ajax» (Alex Kroes)
No arranque da Eredivisie, o Ajax recuperou identidade e consistência. Liderou a liga durante várias semanas, chegou a ter nove pontos de vantagem sobre o grande rival PSV, que defendia o título conquistado no ano anterior, e venceu jogos importantes com autoridade, como o 2-0 alcançado em Eindhoven ou o 3-1 sobre o Feyenoord, no Arena. O seu futebol era corajoso, dominador, com saídas controladas e pressão alta. Para alguns adeptos, a julgar por determinados depoimentos encontrados nas redes sociais, Farioli tinha transformado «um conjunto apenas razoável num excelente», em que os jogadores estavam «sempre motivados e prontos a dar 100 por cento».
Só que o final da época revelou-se dramático. Um pouco como em Nice, mas um murro ainda mais forte em cheio no estômago, tendo em conta as altas expetativas. Nas últimas cinco jornadas, o Ajax somou apenas uma vitória, diante do Heracles. Empatou com Sparta e Twente, perdeu com Utrecht e AZ, e o PSV ultrapassou-o na reta final e sagrou-se campeão com apenas um ponto de avanço. Inacreditável! No final do último encontro, no Arena, Farioli desabou emocionalmente no relvado, chorando copiosamente e, minutos depois, na conferência de imprensa, anunciou a saída. «Partilho os mesmos objetivos com a direção, porém temos visões e cronogramas diferentes sobre como devemos trabalhar», explicou.
A decisão terá sido mútua, embora sentida com grande deceção por parte de muitos adeptos. O diretor técnico Alex Kroes chegou mesmo a reconhecer que teve «papel fundamental» na reaproximação do clube ao seu ADN: «Conseguiu dar nova energia ao Ajax, mesmo que não tenhamos conseguido alinhar os ritmos de trabalho.»
Nas últimas semanas, o nome de Farioli apareceu associado a vários clubes. Foi apontado aos escoceses do Rangers, a clubes da classe média da Premier League e foi referenciado pelo SC Braga, antes de os minhotos se decidirem por Carlos Vicens. Hoje, aos 36 anos, ainda é considerado um dos técnicos mais promissores da Europa, com um perfil que conjuga método, inteligência relacional e uma ideia clara de jogo. Resta saber o quanto terá ficado marcado pelo descalabro de Amesterdão.
Princípios de jogo no Nice
Nos seus melhores momentos no Nice, Farioli distribuiu os jogadores por três esquemas: o 4-4-2 o 4-1-4-1 e o 5-4-1, neste último caso, com a descida de Youssouf Ndayishimiye para o eixo. No entanto, um desdobramento específico durante as partidas foi muitas vezes fundamental para garantir um maior equilíbrio: um dos 8 criava com o médio defensivo um duplo-pivot e assim libertava-se o outro.
Defensivamente, o Nice foi muito eficaz a retirar o adversário do corredor central e a comprimir o espaço, forçando turnovers em áreas adiantadas. A equipa sabia quase de forma instintiva quando deveria chegar-se à frente ou baixar, alternando entre bloco baixo, médio e alto conforme o rival e o momento. No primeiro caso, ajudou ter a solidez do jogo aéreo de Dante, Todibo (sim, esse) e o guarda-redes Bulka.
Farioli definiu muito bem os gatilhos de pressão, cujas ondas pretendiam anular não só o portador como as respetivas linhas de passe (sombras da pressão), aproveitando o isolamento de algum jogador em posicionamentos mais largos do que o ideal com bola ou outros a apresentarem posturas corporais menos corretas. A pressão foi sempre coletiva, a contrapressão (reação à perda) feroz.
A primeira fase de construção esteve bem oleada e foi extremamente paciente, à imagem de… De Zerbi. O objetivo era atrair e quebrar a forma do adversário, procurando libertar sempre um terceiro homem. Os centrais separavam-se, com Bulka a funcionar como pivot. Os laterais podiam ficar baixos para atrair a pressão e assim manter-se um bom número de unidades para uma boa circulação em segurança; ou meterem-se por dentro para isolar os alas diante do opositor direto para o 1x1. Verticalizar em ataque rápido era o objetivo e, quando não o conseguia, o ataque posicional ainda carecia de consolidação.
«O Nice é uma equipa de guerreiros, com e sem bola», garantia Farioli. Tinha razão. Havia muita energia no meio-campo com Khephren Thuram, Hicham Boudaoui e Morgan Sanson, fundamental para o desencadear de sprints elétricos até ao último terço e o constante aparecer entre linhas para ataques rápidos. A sua presença nas alas para apoio ajudava a gerar superioridades numéricas e favorecia a atuação dos extremos, sempre bem altos e a toda a largura para o duelo individual.
Jeremie Boga foi muito perigoso nesse capítulo. Mais físico, Gaetan Laborde podia ir para dentro para finalizar ou oferecer apoio no jogo aéreo, seja como referência para bolas longas e assim segurar a bola ou em cruzamentos para a área. O 9 era o internacional nigeriano Terem Moffi, um portento atlético, que aliava a competência na finalização ao discernimento para baixar e ligar ou aproveitar o espaço se não o acompanhassem. Explosivo e poderoso, era muito difícil de conter. O intercâmbio posicional entre os três da frente ajudou a aumentar o nível de ameaça, sobretudo, como se referiu antes, em situações de transição ofensiva.
O que realmente impressionou em Farioli foi a facilidade com que todas as ideias foram assimiladas em meses. O Nice era uma equipa de autor. De um jovem então de 34 anos, com escassa experiência no campo e também a tomar decisões desde o banco. Porque, apesar de tudo, era a sua terceira época enquanto técnico principal. No entanto, ao olhar-se para a forma como a equipa jogou, nada faria pensar nisso.
Ajustes a um grande como o Ajax
Tal como em França, também em Amesterdão as ideias foram rapidamente assimiladas e colocadas em prática, ao ponto de conseguir desafiar de imediato o PSV campeão de Peter Bosz. No entanto, Farioli não transplantou o processo para os Países Baixos, adaptou-o.
O italiano procurou ajustar as suas ideias modernas de posse e construção às exigências do clube e ao perfil do plantel. Ao contrário do que muitos esperavam, não impôs de forma cega o modelo do Nice ou da escola De Zerbi. Em vez disso, adaptou-se ao contexto de Amesterdão, onde a pressão por resultados convive com a tradição de futebol ofensivo e formativo.
Um dos traços mais visíveis do seu Ajax foi a organização defensiva em bloco mais baixo, com momentos em que a equipa se posicionava numa linha de cinco defesas, algo pouco habitual na Eredivisie. Jordan Henderson, a partir do meio-campo, recuava muitas vezes para ajudar a fechar o corredor central, formando uma estrutura mais compacta atrás. Esta estratégia permitia ao Ajax proteger melhor a sua baliza – o número de oportunidades claras concedidas desceu significativamente – e forçava os adversários a procurar soluções nas faixas, onde o Ajax conseguia recuperar a posse com maior facilidade.
Apesar dessa solidez defensiva, o Ajax mantinha uma pressão alta bem coordenada nos momentos certos. Farioli exigia dos seus jogadores agressividade sem bola, sobretudo quando a perdiam em zonas perigosas. A contrapressão (reação à perda) era inegociável. Kenneth Taylor evoluiu fisicamente e tornou-se importante nesse momento, tal como Klaassen, Akpom e Weghorst, que caçavam em matilha para romper a primeira fase de construção do adversário. Os dados da liga mostram que o Ajax, sob a sua liderança, esteve entre as equipas com menor número de passes permitidos ao adversário antes de recuperar a posse - o Opta Analyst destaca que permitia em média apenas 12,1, um dos PPDA mais baixos da Eredivisie -, sinal claro de um pressing eficaz.
Na construção, o italiano aplicou um princípio tático cada vez mais comum: os laterais por dentro. Devyne Rensch ou Anton Gaaei e Jorrel Hato, por exemplo, deixavam as alas livres para os extremos e apareciam muitas vezes em zonas centrais, criando superioridades no meio-campo, ao mesmo tempo que Henderson acrescentava o critério necessário à construção. Essa movimentação permitia que o Ajax tivesse sempre linhas de passe seguras e evitasse perdas de bola perigosas. Ao mesmo tempo, os extremos, como Chuba Akpom, Bertrand Traoré, Berghuis ou Carlos Forbs, mantinham-se bem abertos para atacar a profundidade ou simplesmente receber para o 1x1.
Ofensivamente, Farioli não obrigava a equipa a manter uma posse excessiva se o jogo pedisse outra abordagem. Com adversários mais agressivos, o Ajax apostava em saídas mais rápidas ou cruzamentos para Wout Weghorst, que funcionava como referência na área. A equipa mostrava flexibilidade: sabia quando pausar e atrair, e quando acelerar. Essa maturidade tática foi um dos traços mais elogiados pela imprensa, que reconheceu que o Ajax se tornou mais competitivo e difícil de bater, mesmo sem encantar todos os fins de semana.
Outro ponto a destacar foi a rotação. Farioli utilizou de forma intensa jogadores de segunda linha ou jovens como Branco van den Boomen, Anton Gaaei, Kristian Hlynsson ou Mika Godts como opções, garantindo frescura física e maior envolvimento de todo o plantel. Mais do que depender de um onze fixo, o treinador italiano construiu uma base coletiva sólida, com jogadores preparados para responder em diferentes momentos da época.
No fim, mesmo sem conquistar o título, Farioli deixou no Ajax uma ideia clara: um futebol equilibrado, que respeita a tradição de ataque do clube, mas com a inteligência suficiente para reconhecer e jogar com os vários momentos do jogo. Os resultados melhoraram, a equipa cresceu em maturidade e a identidade não foi perdida. Apenas evoluiu.
Possível futuro no FC Porto
O Dragão está escaldado de técnicos mais progressistas, como estava rotulado Martín Anselmi, e isso terá sempre de fazer pensar duas vezes André Villas-Boas antes de tomar uma decisão, uma das mais importantes da sua ainda curta liderança. Não será melhor um técnico menos talentoso, mas que arrisque menos, estabilize e reorganize?
Talvez não seja o momento para Francesco Farioli, ainda que o italiano não se tenha tornado um mau treinador de um momento para o outro, bem pelo contrário. O que está em causa é a qualidade do grupo e a falta de referências, o que pode ser, de certa forma, comparável com o que encontrou em Amesterdão. Aí todos nós sabemos o que aconteceu, tudo se desmoronou como um castelo de cartas. Será o FC Porto o clube onde Farioli conseguirá, enfim, provar que as suas ideias resistem a um pouco pressão e vento?