Marco Delgado foi um dos primeiros treinadores protugueses a rumar ao Médio Oriente, zona do globo onde existe cada vez mais presença lusa. O técnico, que se encontra em busca de um novo desafio, é o mais recente convidado do Entrevista Bola na Rede, onde conversámos sobre a sua carreira e sobre o futebol na Ásia, onde o mesmo tem ganho alguma relvância, especialmente pelo investimento realizado.

Bola na Rede: Qual é a tua análise sobre o estado atual do futebol no Médio Oriente?

Marco Delgado: De uma forma simples dizer que tem estado a crescer. Há países em que se nota um desenvolvimento bastante aceitável, como na Arábia, Catar e Emirados. As seleções são a prova disso. Há países que precisam de uma alavancagem para conseguirem subir o nível. Omã, por exemplo, tem um potencial tremendo, mas não conta com grandes apoios financeiros. A Jordânia tem um potencial, na minha opinião, em termos de jogadores, em termos do que é o produto, tem tudo. A federação não apoia. O campeonato tem ainda um amadorismo muito notório. Isto não permite ao país que tenha mais jogadores a nível internacional. Se tivessem o apoio que a Arábia Saudita tem, existiam mais jogadores no panorama internacional. Hoje em dia há apenas um, o Moussa Al Tamari, que atua no Rennes e destacou-se no Montpellier. Ainda assim, há um crescimento. Este alargamento de seleções para o Mundial 2026 permite que alguns países possam sonhar, como o Uzbequistão. Estes países podem tornar a Ásia mais forte.

Bola na Rede: Não sentes que sendo uma zona com tantos conflitos, toda esta situação não atrasa o desenvolvimento do futebol?

Marco Delgado: Vou mais pela cultura. O mundo árabe e o mundo não árabe. Neste segundo já se vê um futebol mais dinâmico, como na Coreia do Sul, Japão, China ou Indonésia. Estes últimos são treinados pelo Patrick Kluivert. Viramos mais para a cultura. O povo árabe ainda não está virado para a cultura futebolística. No Brasil saem muitos talentos, aqui de Portugal também há jogadores e treinadores a saírem de qualidade. Ali não há isto. Eles têm várias estratégias, como a ASPIRE no Catar. A Arábia Saudita contratar craques. A Jordânia contrata nomes importantes, desenvolve igualmente talento. São várias as estratégias para se aproximarem dos demais. Porém, primeiro têm que chegar perto do nível do outro lado da Ásia.

Bola na Rede: Chegaste a essa zona do globo em 2007. Já existiam muitos portugueses por lá?

Marco Delgado: Não havia quase estrangeiros. Ainda assim, fui para o Kuwait e numa liga de 10 clubes e existiam cinco técnico portugueses. Um deles era o Professor Neca, que era o mais experiente. Havia o Garrido, que faleceu recentemente. Também estava o José Rachão, o Fanã e o João Carlos Pereira. Nessa altura começaram a ir mais portugueses. O Neca já andava por lá. Mas aproveitámos que a seleção foi fazer um jogo particular ainda com o Scolari. A liga foi muito bem disputada. No ano a seguir não ficaram todos, mas veio o Sérgio Conceição jogar lá. Tive a oportunidade de jogar contra ele, embora não tenhamos falado. Também havia uma grande rivalidade entre as duas partes. Não havia possibilidade de lhe desejar boa sorte. Os portugueses já queriam chegar a esta parte do globo.

Bola na Rede: Então sentes-te um pouco como um dos percursores desta escola que está a rumar ao Médio Oriente…

Marco Delgado: Agora há muitos. Há tantos que eu não os consigo nomear a todos (risos). Na Arábia Saudita jogava contra clubes e nem sabia que estavam portugueses do outro lado. Em várias funções. Íamos descobrindo. Em 2007 não era nada assim. Na Arábia Saudita a liga não era tão falada. Nos Emirados existia qualquer coisa, mas nada de especial, tal como o Catar. No Médio Oriente o mercado estava muito voltado para o treinador brasileiro. Agora estes países trabalham num nível diferente, com técnicos portugueses, espanhóis. São treinadores de muita qualidade. Hoje é mesmo bem diferente. Contudo, é um processo muito lento. Conto aqui uma história: quando cheguei aos Emirados, em 2011, havia treinadores portugueses a chegar. Em 2012/13 tentei chegar a esses técnicos portugueses. Na altura tinha cinco anos de experiência na zona, falava árabe, dou o treino em árabe. Poderia ser uma mais valia nas equipas técnicas. Senti da parte dos portugueses uma pouca abertura. Porém, passado alguns meses eu continuava lá. Acho que o português tem muito medo disto. Hoje há muita gente a aparecer no futebol. Cada vez que venho a Portugal de férias fico abismado com o que vejo. No estrangeiro há muitos portugueses, o que é muito bom.

Bola na Rede: Já trabalhaste em vários países no panorama internacional, até mesmo em África. Qual foi o país em que viste que o nível competitivo era maior…

Marco Delgado: A minha resposta é a Angola. No Sudão trabalhei num clube muito forte, que era mais forte que os outros. Na Jordânia trabalhei num clube importante, mas nesses dois anos o presidente fez uma aposta muito grande. Chegámos a ter 10 internacionais no plantel, que vão ao Mundial. Era uma equipa muito forte. Quase que conquistámos o título. Ainda assim, Angola é muito competitivo. Estive lá em 2017 e o campeonato estava a um grande nível. Havia muitas equipas a lutar pelo título. As equipas medianas estavam muito fortes. Foi um campeonato muito renhido até ao fim. Não fiquei a época toda no Interclube pois havia uma dificuldade muito grande naquilo que eram as divisas. Já tinha um convite dos Emirados, até era para um clube mais fraco, mas fui com garantias que ia receber todos os meses, com um contrato que até era inferior. A Segunda Liga Saudita também é muito boa. Fiz mais alguns jogos que o João Mota, já que fiquei com o outro treinador. Porém, é uma liga muito boa. Temos o exemplo do Al Qadsiah, que foi promovido e fez uma grande campanha. O Míchel é o treinador, tem um staff de 16 pessoas, antes eram 12. Nas outras ligas estive sempre em clubes denominados grandes e as conquistam eram mais fáceis.

Bola na Rede: Esse problema das divisas é algo recorrente?

Marco Delgado: Já fui convidado mais do que uma vez para voltar ao Interclube e eu pergunto sempre como está. Dizem-me que está melhor, mas ainda não está bom. Eu prefiro não ir. Gostei de estar em Angola, o clube era bom. Eu vivo muito em função do que é o treino e o jogo. Vivo muito para o clube e muito pouco fora do clube. Não dedico 24 horas, mas 20 horas… deixo as outras quatro para dormir (risos). A família também está longe e isso prende-me ao trabalho. O Vítor Pereira falou disso recentemente. Que os dias são todos iguais e eu dou-lhe razão, muito focado no trabalho.

Bola na Rede: Sentes que o crescimento económico que existiu no futebol saudita, por parte do PIF, tem afetado toda a região?

Marco Delgado: A Arábia Saudita está a fazer este investimento para cumprir com o seu projeto, o 2030. Eles têm essa meta. O país não perde nada em trazer o Ronaldo, bem pelo contrário. Aquilo aumenta imenso a visibilidade da liga, os patrocínios, tudo o que anda à volta destes jogadores. O Cristiano Ronaldo e o Benzema são exemplos disso, mas há muitos mais. Atenção, que eu não acho que isto torna a liga muito boa. Acho que estão bastante longe daquilo que é um futebol de qualidade que se pratica na Europa, mesmo em Portugal, nos clubes grandes. Estão é a aproximar-se. Apesar de termos um Al Hilal ou o Al Nassr ter jogadores top, a cultura do próprio país e do jogo ainda não lhes permite aproximar-se ao que se faz por exemplo numa Alemanha. A cultura está muito enraizada. Dou como exemplo o antijogo. O antijogo está muito enraizado. Costumo dizer a brincar que quando começa o jogo que o pior que pode acontecer é haver um golo. Vai tudo para o chão, até o médico quando entra se manda para o chão (risos). É uma coisa por demais. Na Europa também existe, mas lá é muito notório. Lembro-me em 2007 num jogo contra uma equipa mais pequena. O jogo começou e o guarda-redes atirou-se para o chão. Não estava habituado a nada daquilo. Tinha saído da Liga Portuguesa e questionei o que se estava a passar. Hoje já não existe um choque cultural tão grande.

Bola na Rede: Já trabalhaste no futebol de formação. Acreditas que a formação pode ser parte da solução para o crescimento destes países?

Marco Delgado: Esse é o ponto. Quando começaram a ir jogadores para a Arábia Saudita eu deixei o alerta. Disse para investirem em bons treinadores e em bons staffs, de maneira a melhorar a formação desportiva dos sauditas. A minha maior dificuldade no mundo árabe é o jogador conhecer o jogo, mas isto também acontece em Portugal. O jogador tem que entender o jogo. O árabe vê muito os 90 minutos e o que é o erro. Os videoanalistas analisam tudo, mas não analisam o essencial. Há coisas que não acontecem sempre, é algo circunstancial. A análise não pode ser feita em apenas um jogo, mas em 10 jogos. Tem que se investir em baixo. No último ano têm-se abastecido de bons treinadores, eu tenho conhecido alguns. O Neom tem uns 25 portugueses na formação. Penso que é por aí. Mas eles têm que perceber que a resposta não vai surgir agora e eu não sei se eles vão ter paciência. A resposta vai chegar daqui a 10 ou 15 anos.

Bola na Rede: Tocaste no futuro e estás em busca de um novo desafio para a tua carreira. Gostavas de continuar por aí ou pensas num regresso a Portugal?

Marco Delgado: Eu cheguei a Portugal há um mês. Claro que gostaria de ficar por aqui um tempinho, para estar perto da família. Começo a ver o mercado. Para a Primeira Liga é complicado de entrar. Tenho trabalhado como adjunto, mas é difícil. Na Segunda Liga também há um pouco essa sensação. Considero que da Liga 3 para baixo é mais fácil. Quero progredir. Quando chego a uma reunião com o presidente, acredito que a primeira pergunta vai ser como estou e a segunda em relação ao estilo de jogo. Porém, a primeira pergunta é sobre investidores e se eu tenho algum investidor para o clube. Por acaso, até podia arranjar. Conheço três ou quatro pessoas interessadas em querer fazer girar o dinheiro. Mas eu não perspetivo a carreira de treinador em ser o técnico do investidor e não do clube. Faz-me muita confusão. É assim que isto funciona agora e se calhar tenho que me habituar. É evidente que eu gostaria de ficar cá em Portugal, mas até tenho contactos lá de fora. Era para ir para Malta, mais precisamente para o Floriana, com o Daniel Portela, mas por uma questão familiar não tive essa possibilidade. Estou numa luta gigante para ficar em Portugal. É muito mais fácil para mim ir lá para fora. Hoje em dia o CV não interessa muito, o que interessa é quem indica. A experiência também já não interessa para nada. O que interessa cada vez mais é ter alguém que indica, esse QI tem que ser igual a 100. Vi alguns jogos, não vou dizer quais, achava que ia ver bons jogos, mas não me impressionou. Ia em busca de sair impressionado. Vou falar aqui de um nome, que gostei de ver. Gostei muito de ver o Lusitano de Évora. Tinham identidade, tinham perfil, o treinador sabe perfeitamente o que está a fazer dentro e campo.

Bola na Rede: Falas muito da parte de ser adjunto. Fechas a porta a uma carreira como treinador principal?

Marco Delgado: Não fecho a porta. Ainda ontem disse a brincar a um treinador que está na Coreia do Sul que sou o melhor técnico adjunto, mas isso não faz de mim um bom treinador principal. Ele fez a mesma pergunta que tu. A oportunidade a surgir terá que aparecer por ela própria e eu não a proporcioná-la. Trabalhei dois anos com o Fanã e ele dizia sempre que mais valia ser um bom adjunto do que um mau principal. Disse para me manter no caminho, para não fazer da procura uma obsessão. Sempre me vi nessa situação. Eu digo a brincar que sou o melhor do mundo. O José Mourinho nunca me conheceu, mas eu até tenho uma boa história com ele. Ele vai treinar o Benfica e eu vi a constituição da equipa técnica. Eu estava a acabar de estudar e eu percebi que havia qualquer coisa de diferente, a vê-los jogar, não era igual aos outros. Naquela altura víamos que ele tinha algo de especial. Cheguei ao antigo Estádio da Luz e o Benfica ia treinar à porta fechada, que nem era bem porta. Escrevi uma carta para entregar ao José Mourinho. Queria trabalhar com ele. Eu era sócio do Benfica, mas não tinha acesso ao treino. O porteiro disse que não podia entrar nem para entregar a carta. Disse que a ia entregar. Claro que nunca a entregou. Tentei chegar com ele a Leiria, mas ele já tinha ido buscar o Rui Faria. Isto tudo para dizer que houve alguns treinadores que tentei aproximar. Os do mundo árabe porque podia dar uma ajuda acima de tudo na integração. Eu conheço os jogadores todos da Liga dos Emirados, conheço os campos, a dificuldade, tudo. Sei tudo sobre os países onde passei, se calhar menos do Sudão, que aquilo agora não tem liga. Se a Jordânia fosse um país atrativo e os grandes treinadores fossem para lá, eu estava perfeitamente integrado e podia ajudar. Há dirigentes que não sabem quem querem para o lugar de treinador e dizem-me que gostariam que eu fosse o adjunto e isto é muito difícil. Os treinadores têm as suas equipas técnicas e pessoas de confiança. Eu tentei algumas vezes. Cheguei ali a 2015 e desisti disso. Tenho 24 anos de carreira e apenas há três anos trabalho com o João Mota e nunca é a mesma equipa técnica. Não tenho tido a possibilidade de me estabilizar numa equipa técnica, tentei mesmo muito, mas ainda não foi possível. Porém, não vou desistir.