Quando surge a notícia da morte de Aurélio Pereira, olha-se para uma estante de livros. Lá está "Ver para Crer", o livro editado em 2021. "Memórias de descoberta e formação de talentos" é o subtítulo da obra de Aurélio Pereira com Rui Miguel Tovar. Daí que o instinto seja, imediatamente, pedir para falar com o jornalista nascido em 1977.

Tovar diz que já liga, que falamos dentro de pouco. E cumpre a palavra. Problema: quando chega a chamada, o telefone está ocupado por Paulo Futre. É um Bola de Prata, um campeão europeu, é o ídolo do Atlético de Madrid, pelo que a chamada de Rui Miguel é rejeitada por uns minutos. "Foi por um motivo superior", concede Tovar quando a chamada é devolvida.

"Fazer um livro com alguém implica conhecer muito melhor a pessoa e a família" diz o autor logo a abrir a conversa com a Tribuna Expresso.

Foi durante um almoço no restaurante Tipiky, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa, que surgiu o convite para "Ver para Crer". O senhor formação ainda não participara em qualquer livro que servisse de registo futuro da vida e obra, uma espécie de biografia oficial com a participação do próprio. "Ele levou a família toda e convidou-me. Apareci no restaurante e estavam lá as duas filhas dele, o irmão, toda a gente. Convidou-me para ser o autor do livro. É uma amostra do que era este tipo de pessoa, que combinava um almoço de família para falar do projeto que era, finalmente, fazer o livro. Convidou-me como se eu fosse parte da família", lembra, com carinho, Tovar.

Mas, na verdade, havia um elo bem mais antigo entre ambos.

Dani foi descoberto enquanto brincava na praia, em 1984, num jogo onde também estava Rui Miguel Tovar
Dani foi descoberto enquanto brincava na praia, em 1984, num jogo onde também estava Rui Miguel Tovar Tony Marshall - EMPICS

O episódio é relatado logo no arranque do livro. Rui Miguel escreve que a cena era "contada repetidamente" pelo seu pai, Rui Tovar, histórico jornalista de desporto. Em 1984, o menino Rui Miguel estava a jogar na praia em Troia. No mesmo encontro de brincadeira estava Dani, Daniel da Cruz Carvalho. A partida chamou a atenção de Aurélio Pereira, já então olheiro de profissão e vocação.

O futuro craque rebelde de Sporting, Ajax, West Ham, Benfica ou Atlético de Madrid tinha 8 anos. "O mister Aurélio viu-me a jogar e pediu para dar uns toques com a bola. Devo ter chamado aí a sua atenção, pois, a seguir, pediu-me para o levar a falar com o meu pai. Nessa noite ficou logo ali acertado ir ter com ele no fim das férias à porta 10A do Estádio José Alvalade", conta o canhoto no livro.

O trio reencontrou-se muitos anos depois. A 24 de março, Rui Miguel Tovar levou Danià casa de Aurélio para uma conversa que virará entrevista a publicar no "ZeroZero". "O Aurélio estava ótimo. O Dani teve mais posse de bola, falou mais, mas o Aurélio, quando tinha a bola, falava sempre com piadas. O Dani partia-se a rir e eu também", lembra o jornalista.

O ex-internacional A chegou cerca das três e meia da tarde. Precavido, meteu muitas moedas no parquímetro, tantas que daria para ter o carro estacionado até às 9 da manhã do dia seguinte. Tovar disse que seria "um exagero", mas Dani é que tinha razão: "Foram três horas e tal de conversa, saímos de lá às 8 da noite. O Dani até levou para o Aurélio a caneta do primeiro contrato assinado pelo Sporting."

O fim de semana de Cadete e as cartas para os sócios

Certo dia, durante o processo que levaria à publicação do livro, Tovar sentou-se com a família de Aurélio a fazer contas aos miúdos que foram detetados por aqueles olhos e chegaram à seleção A. "Eram 61 ou 60 e tal", diz o jornalista, sem ter a certeza. Uma coisa é certa: "Ele tinha uma visão que ninguém tinha."

A paixão pela deteção de talento não tirava descanso. Ou tirava, mas os olhos acabavam, de certa forma, por esbarrar no talento.

Certo fim de semana, Aurélio foi, com a mulher e um casal amigo, passar um fim de semana fora. Pararam num café na viagem, ouvindo que havia um jogo de futebol ali perto às 11 da manhã. Iam "só ver 10 minutos". "O Aurélio viu lá um tipo, interessou-se por ele e, contas feitas, foi capitão do Sporting, melhor marcador da I Liga, melhor marcador da Escócia. Era o Jorge Cadete e foi descoberto num sábado de manhã, de férias", lembra Tovar.

Cadete foi descoberto durante um fim de semana de passeio
Cadete foi descoberto durante um fim de semana de passeio Getty Images

O revolucionário Aurélio Pereira sempre quis alargar a base de recrutamento. A 2 de agosto de 1988 foi aberto o departamento de prospeção do Sporting Clube de Portugal, o qual chegou com uma ideia ousada.

"Ele escreveu uma carta para todos os sócios do clube. A ideia era que os sócios fossem aos campos do país e vissem o jogador X ou Y e referenciassem ao clube. Um tipo qualquer na Madeira, em Chaves ou em Sagres podia indicar que viu um tipo jeitoso, preencher um formulário e pronto. Ele lançou estas bases. Saiu daquela cabeça escrever uma carta para todos os sócios, é lindo. Escrever à máquina, tirar fotocópias, escrever não sei quantos subscritos de cartas. Uma trabalheira do caraças, tudo para recrutar o melhor possível", relata Tovar.

As cartas enviadas, conforme reproduzidas nas páginas 75 e 76 de "Ver para Crer".

A questão não era só recrutar o talento. Era preciso convencê-los a irem para o Sporting. Casos houve como o de Hugo Leal, cujos "pais eram muito benfiquistas", dizia Aurélio, segundo conta Tovar. Houve um outro rapaz que assinaria por um rival e que também caiu na rede de Pereira. Chamava-se Ruben Amorim e conta em "Ver para Crer" que sentiu "um orgulho enorme" ao ser convidado para um treino no Sporting, o qual viria a ser cancelado. "Ainda insistiu comigo para que voltasse dois dias depois, mas acabou por não acontecer", conta quem reencontraria, anos depois, o senhor formação nos corredores de Alcochete.

Outra história de convencimento envolve um dos "Aurélios". A palavra é dada a William Carvalho, que narra o sucedido na página 143 do livro.

"Jogava no Mira Sintra quando participei num jogo contra o Sporting. Estávamos em 2005 e o meu ídolo era o Nani [...]. O mister Aurélio Pereira falou comigo sobre uma eventual transferência e falei-lhe do interesse do Benfica. Ato contínuo, perguntou-me qual era o meu jogador preferido no Sporting. Respondi Nani. Passados uns minutos, liga-me o Nani para casa. Nem queria acreditar, a sensação foi indescritível. Ainda por cima, disse-me que estava à minha espera em Alcochete. Claro, assinei pelo Sporting [...]. Onze anos depois, sou campeão europeu com o Nani ao meu lado."

No contacto pessoal, Rui Miguel Tovar lembra uma pessoa "irrepetível", adjetivo que alarga ao irmão, Carlos Pereira, antigo jogador e técnico do Sporting. E deixa o lamento de não se ter feito "a justa homenagem em vida". "Mesmo se se fizesse muita coisa, seria pouco. Era preciso haver nome de rua, era preciso haver mais homenagens. Ele também não era muito dessas coisas, não gostava, era tímido. Preferia estar no seu canto, sobretudo com os seus amigos."

No final de "Ver para Crer", impressiona o desfile de declarações de agradecimento e homenagem a Aurélio Pereira. Cristiano Ronaldo. Luís Figo. Nani, Futre, Simão. Carlos Queiroz, Manuel José, José Couceiro, Jorge Jesus. Jorge Cadete, João Mário, Cédric, Adrien, Rui Patrício e Dani.

"Os jogadores que têm essa reverência é porque sabem que houve um momento decisivo. O Dani estava a brincar com miúdos em Troia, tinha 8 anos, não tinha idade para integrar qualquer quadro do Sporting. Ou o Quaresma. A dica era que o irmão do Quaresma era muito bom. Mas o Ricardo deu ali uns toques e o Aurélio levou os dois. O Quaresma é campeão europeu, isto muda uma vida", reflete Rui Miguel Tovar, o menino que jogava na praia e virou biógrafo.