O ano de 2024 foi atravessado por uma profunda clivagem entre os partidos das esquerdas e das direitas parlamentares. Os primeiros afirmando que não está provado que a imigração seja fonte de insegurança, que a perceção deve ser combatida com os dados conhecidos; os segundos, a indicarem, de forma mais ou menos velada, que os imigrantes, principalmente os do Oriente, trazem, pela sua prática de vida e pela forma como chegam à Europa, novos tipos de criminalidade.

Olhando a realidade, ambos os lados têm razão, os imigrantes ainda não trouxeram grandes problemas de segurança, mesmo que a perceção seja outra e importe tomar medidas extraordinárias. E também é a partir do combate à imigração ilegal que se verificam novas formatações na criminalidade que importa atalhar e combater ferozmente.

Mesmo que os mais recentes dados confirmem que Portugal é o sétimo país mais seguro do mundo, as perceções são, nas questões da vida comum dos cidadãos, mais importantes do que a estatística. Elas implicam decisivamente nas opções eleitorais, como se viu nas legislativas de há um mês. Sempre foi assim e vai continuar a ser.

Há duas semanas, um ator português foi espancado à entrada de um teatro. Foi um ataque bárbaro, perpetrado por energúmenos alcoolizados que tinham acabado de sair de uma iniciativa promovida por um movimento neonazi.

Uns dias depois, mais um acontecimento no Porto e outro em Guimarães. Organizações de natureza fascista são há muito conhecidas das polícias portuguesas. O assassinato de Alcindo Monteiro, em 1995, abriu novas preocupações por parte das forças de segurança e dos serviços de informações. Portugal tem sabido estar à altura e tem respondido com eficácia.

Foi exatamente para que as forças e serviços de inteligência e de segurança continuassem a ter o melhor controlo da situação, que foram retiradas do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) as partes relativas à criminalidade provocada pelos grupos extremistas com fortes ligações internacionais. Foi sempre essa a minha posição ao longo dos anos em que fui membro do Conselho Superior de Informações.

E para a valorização da intervenção das forças no combate às estruturas que põem em causa o nosso sistema democrático, é urgente formar polícias e magistrados para um possível recrudescimento do “terrorismo ideológico”, que a próxima revisão da Constituição permita o uso de metadados, sempre com a autorização de um magistrado judicial.

A ocorrência de A Barraca trouxe dezenas de pessoas para a rua. Numa dessas manifestações uma personalidade conhecida apelou à resistência. Confesso que fiquei surpreso. Resistência a quê? Está o país a ver entrar os milhares de membros das milícias nazis e fascistas sem controle e sem repressão? Não tem o nosso Estado de Direito as ferramentas para garantir a normalidade da nossa vida de paz e de concórdia?

Foram exatamente as polícias, com a sua capacidade instalada, que deve ser reforçada, quem desmantelou o grupo de insurretos que, iniciando um processo de recrutamento nas forças de segurança, pensava que podia fazer um assalto ao Parlamento e até matar o presidente ucraniano. E foram também os serviços de informações a desativar uma das células de elite das secretas russas. Temos na polícia científica o melhor que existe na Europa.

Importa saber reagir a estas operações afirmando que nenhum grupo está a salvo, que todos terão o mesmo caminho. Não se deve ampliar o medo de um qualquer golpe de Estado solnadiano porque essa possibilidade não existe neste nosso tempo. Se algum ator político ou alguma figura pública se sentir ameaçado deve, de imediato, comunicar às polícias. O país tem todas as condições para determinar medidas e proteger essas pessoas. Proclamar urbi et orbi que alguém recebeu ameaças de morte não é garantir a sua própria segurança. Não mostrar receito, desprezar os insultos e os ataques sem entrar na lama é mesmo o único caminho. A vida pública é feita de coragem e dexteridade.

Perante os mais recentes afloramentos dos grupelhos de fascistas em eventos de natureza cultural, as manifestações pacíficas fazem sentido. Mas elas devem levar-nos a uma análise mais ampla sobre a forma como tratamos a violência. O RASI, por ser uma ferramenta de natureza estatística que só regista os eventos participados, não consegue dar-nos um panorama real.

Em Portugal, há centenas, por vezes milhares, de ocorrências com violência a cada dia. A esmagadora maioria não passa da relação entre pessoas, famílias, pequenas comunidades.

Temos evoluído muito e importa fazer tudo para não haver recuos no que se refere à defesa dos cidadãos que se revelam nas suas orientações sexuais para além do que em tempos era a norma (?), temos garantido um país mais democrático, mais justo, no que à igualdade de género diz respeito. Também temos seguido bem no que tange à proteção das mulheres, mesmo que continuem a verificar-se situações em que o agressor é apoiado pelo sistema judiciário, em que as vítimas são completamente esquecidas. Este é um dos crimes mais difíceis de tratar, porque há muitas cambiantes, há muitas realidades e há, não raras vezes, implicações internas à família e externas vindas do espaço onde vivem e com quem vivem as vítimas. Até tem havido acertos de contas político-partidários à volta deste tipo de crimes.

Mas há vastos universos de violência completamente esquecidos, distantes do debate político, ausentes do trabalho da comunicação. E é aqui que as esquerdas perdem o apoio popular por não lhe darem voz e atenção.

O primeiro universo dessa outra violência é contra os desprotegidos, a violência de classe.

Esta violência está presente nas trabalhadoras domésticas, nos assalariados da agricultura, nos operários de pequenas empresas de construção, nas oficinas mecânicas. Afirma-se numa relação de poder onde os direitos do trabalhador quase não existem, onde a tutela sobre o assalariado se estende à tutela sobre a família.

Não temos, fruto da longa noite do salazarismo, uma população muito exigente nos direitos, as pequenas comunidades continuam a viver em castas. E tudo isto passa ao lado das grandes notícias, não há manifestações, todas as vitimas são incógnitas. Mas estas começam a revoltar-se por ninguém as reconhecer. Este domínio da violência não provoca consternações nem manifestos e os cidadãos afetados passaram a votar no Chega. Edouard Louis, esse escritor francês que fez da sua realidade de vida um manifesto político, explica bem este processo de adesão dos marginalizados à direita populista e radical.

O segundo universo mais presente nos atos de violência conhecidos é o dos sem abrigo, dos muito pobres, dos ciganos. Para além de serem despidos de qualquer dignidade, de serem tratados, por uma certa elite, com desdém e até com aproveitamento para atacar o capitalismo, os muito pobres são agredidos pelos gangs, pelos grupos de jovens das classes altas em busca de adrenalina, pelos novos ricos que os tratam como se fossem lixo. Para estes, o país tem duas linhas de ação – a primeira é a da autorização da antiga caridade que lava a consciência; a segunda, é a da entrega de apoios sociais despidos de sentimento, alguns deles geridos pelas instituições das igrejas caritativamente, que afastam esses pobres das entradas dos prédios nos bairros onde moram as elites, incluindo as das esquerdas. A aporofobia, vinda da direita e da esquerda, é hoje larvar em Portugal. Os elitismos e a xenofobia relativa ao território de origem estão presentes na prática e no discurso público das esquerdas e das direitas. Os sem abrigo feridos e os pobres agredidos não provocam notícias nem abrem telejornais.

O terceiro universo demonstra bem como a nossa sociedade imediatista e relativista está a olhar para os mais velhos. Na mesma semana em que se deu o vil ataque ao ator de A Barraca, a comunicação social dava conta de que estão a aumentar os atos de violência contra os idosos. Só em 2024, 1730 idosos foram vítimas de crime e violência. As instituições públicas apoiaram 136 idosos por mês e passaram a referenciar o dobro destes.

Os idosos não se lamentam. Quando há o registo policial do ato de violência é porque já se ultrapassaram todos os limites, porque há mesmo a referenciação hospitalar, uma denúncia de vizinhos. Mas o mais habitual, para além do abandono e da crueldade psicológica, física, sexual, financeira, são as situações em que os mais velhos perdem o poder de decisão, a autonomia, a liberdade e até a dignidade. A comparação entre o caso de A Barraca e o relatório sobre a violência sobre os mais velhos, olhando as notícias, os debates, os textos de comentário e as excitações partidárias, é como se o crime inaceitável contra o ator Adérito Lopes fosse único neste país. Os mais idosos, sozinhos e desamparados pelas famílias e pelo Estado, ainda conseguem ter um momento em que podem dizer como se sentem. Esse momento é o voto secreto e é por isso que cada vez mais votam no Chega.

Um quarto universo com forte crescimento em Portugal é a violência sobre crianças e jovens. Crianças negligenciadas, abandonadas, sujeitas a maus tratos e estupradas, são cada vez mais comuns na sociedade portuguesa. Jovens que violam e violentam no namoro, que são abusados e marginalizados por razão de estatuto ou por terem necessidades especiais; rapazes e raparigas que são motivo de bullying, de assédio, de provocação e de preconceito. E a abertura que Portugal tem relativamente a outros continentes, já fez com que o tráfico de crianças, de jovens e de órgãos tenha passado a ter o nosso país na mira. E para esta montanha de crimes as esquerdas pouco se mobilizam, a sociedade não se emociona, ninguém clama por resistência.

O quinto universo de violência, que tem vindo a ampliar-se e a ganhar proporções que não tinha desde os anos de 1980, é o do consumo e tráfico de drogas.

Portugal e a Europa estão a entrar numa nova epidemia, há um vasto conjunto de drogas que eram até há pouco desconhecidas, que não existem nas matrizes das polícias e dos tribunais, que estão longe dos laboratórios oficiais. Porém, nas grandes áreas metropolitanas e nas cidades com forte presença de estudantes universitários é já bem visível o impacto deste novo surto.

A droga faz com que os dependentes batam nos pais, lhes roubem dinheiro e património, promovam a insegurança nas ruas e nos transportes públicos, que rebentem novos guetos e se criem novos problemas de saúde pública. É uma chaga que o Parlamento não discute, assunto que também não perfura os telejornais.

Por último, um sexto universo que atravessa o combate partidário de quando em vez e que os atores políticos esquecem no imediato. Trata-se do resultado de décadas de segregação nos bairros sociais camarários, de levas de portugueses de todas as origens que passam a pobreza de país para filhos, que ficam marcados por decorrência do nome da rua e do código postal. Os políticos mais vocais não entendem estas pessoas, nunca entraram no sítio onde vivem, não conhecem a razão de haver uma tal violência física, psicológica, económica e social que cria o desespero. O abandono dos programas de apoio aos bairros problemáticos, medida da troika e que os governos seguintes do PS não renovaram, fez com que as muitas conquistas conseguidas fossem revertidas. O trabalho é hoje dos municípios, é feito tendo em conta uma limitação enorme por não poderem implicar nas políticas de segurança social e de segurança pública.

Temos aqui vários universos de insegurança, violência e crime. E o que está a fazer com que centenas de milhar de portugueses se mobilizem para o voto no Chega é mesmo a visão parcial do problema. Parece que as esquerdas tem uma paleta de crimes que merecem manifestações e outra que merecem desprezo. Se as esquerdas não atualizam o discurso ficarão no sofá a pensar nos seus medos e perderão definitivamente o rumo da História.

Seria ainda conveniente que o combate parlamentar não fosse tão pouco avisado seguindo afirmações como a que alguém proferiu no debate do programa do Governo: “O maior fator de insegurança não é a imigração. O maior fator de insegurança em Portugal é a extrema-direita”. Como diz Luiz Filipe Pondé: “O debate polarizado empobrece a semântica e a atrapalha o conhecimento da realidade.” Este estilo mariadafontista advém de não se entender que entrar no jogo da direita radical e populista é mesmo dar-lhe crédito. Carl Jung, no seu Livro Vermelho, avisa para os argumentos em reflexo que beneficiam o primarismo.

Eu sempre direi que que nem a imigração é hoje o maior fator de insegurança, nem a extrema-direita será algum dia o grande fator de insegurança se nós soubermos tratar dela e dar-lhe o devido enquadramento e o obrigatório desprezo. O maior fator de insegurança será o facto de termos políticos das esquerdas, do centro e da direita democrática que não têm atenção a um vasto conjunto de fatores de violência que existem no país e que são relevantíssimos.

Quando se diz que a democracia está em perigo a pergunta que importa fazer é sobre o que nos trouxe aqui, o que fez crescer a direita radical e populista. Não foram as redes sociais só por si, não foram os ventos vindos de outros países. O que fez o Chega crescer até 60 deputados foi a ação de muitos políticos que clamam agora contra o “diabo”. E como a democracia não é o regime das elites que consideram que o povo é “burro” quando não vota nas suas propostas, o mesmo povo está a dizer-lhe adeus.

Defende-se a democracia com pedagogia, com verdade, com proximidade; defende-se sabendo utilizar os novos meios de comunicação com criatividade, com beleza e com leveza; defende-se a democracia combatendo o elitismo, o amiguismo, a corrupção, a falta de transparência e a má governação. Em suma, defende-se a democracia se tivermos governos que não cometam os erros que estiveram na base dos grandes conflitos do século XX. Os jovens não querem totalitarismos nem guerra, querem liberdade e têm conceitos novos de democracia. Porém, estão fartos de gente trombuda que lhes mete receitas na cabeça, que lhes fala de medos, que lhes coarta o futuro.

Se as esquerdas quiserem estancar a perda de apoios e de votos, têm de olhar para todos os tipos de violência, encontrar as formas adequadas para os prevenir e combater, dotar as instituições públicas, em especial os municípios e as forças de segurança, dos meios para poderem intervir. Não se trata de armar até aos dentes as polícias ou reafirmar políticas securitárias. Trata-se de responder à perceção de insegurança que atinge uma parte significativa da população portuguesa. As esquerdas devem ocupar o campo, preocupar-se com todos os tipos de violência, insegurança e criminalidade para que a direita radical e populista deixe de ter espaço de afirmação política. Os novos fascismos são uma besta que precisa de ser combatida com inteligência e não com infantilidade.