
Durante muito tempo, a direita falou pouco de si. A sua presença bastava. Havia nela a ideia de que a ordem precedia a política, de que a autoridade não precisava de justificação e de que o bom senso, esse termo sem definição mas com prestígio, era suficiente para atravessar o tempo.
Era aí que assentava o seu realismo: num certo desdém pelas guerras culturais, um quase pudor diante da linguagem do corpo, da memória, da pertença. Chamava “folclore” ao que lhe parecia sentimental, “identitarismo” ao que lhe soava excessivo, e atribuía à razão a capacidade de resolver tudo aquilo que lhe parecia ruído. Era uma posição de conforto, mas também de desmobilização.
Mas esse lugar começou a parecer-lhe estreito. Ou, pelo menos, insuficiente.
A nova direita reaparece com um vocabulário mais íntimo, menos técnico, menos contido. Fala como quem também sofreu um apagão da história que outros terão escrito. Reabilita palavras antigas — pátria, tradição, raízes —, mas fá-lo sem pudor tecnocrático. Usa-as com a gravidade de quem as considera sagradas, como se fossem vestígios de um mundo anterior à erosão.
É fácil reagir com ironia. Mais difícil é perceber que não estamos apenas perante uma viragem política. O que se constrói, com cuidado, é uma tentativa de refundação simbólica, uma identidade de perda. A direita já não se limita a combater a política identitária. Compõe a sua própria, o seu próprio altar, mas com datas diferentes, mártires novos, bandeiras repostas. Acusa a esquerda de relativismo enquanto usa o mesmo léxico de pertença. Só troca os enredos. E os santos.
O centro desta construção é o Ocidente. Às vezes vítima, outras vezes promessa traída. A ameaça pode variar (o islão, a imigração, o marxismo cultural, a globalização), mas o enredo repete-se: há algo que conspira contra nós e há um nós que resiste. Trata-se de uma estrutura narrativa que já não procura surpresa. Basta-lhe a repetição. Porque é na repetição que se consolida a identidade.
O mais desconcertante é a simetria. A direita, que outrora proclamava a alergia aos “ismos”, começa a parecer-se com aquilo que dizia combater. Não imita os meios, mas recupera a lógica: um mundo organizado pela pertença, pela culpa, pela salvação. O moralismo da nova direita é a sombra invertida do moralismo que despreza.
Há, aqui, um fundo religioso. O desejo de origem, de ordem, de pureza reaparecem, só que sem transcendência. No lugar da fé, ergue–se o ressentimento. No lugar da Igreja, practica-se a ideia de civilização. No lugar dos profetas, surgem rostos de mártir com canal no YouTube. Charlie Kirk. Candace Owens. Ben Shapiro. Matt Walsh. Todos filhos do algoritmo, todos herdeiros de uma indignação performativa, todos com Bíblia na mão ou Constituição na lapela.
É uma liturgia sem céu. Só com um chão perdido, e a tentativa de o recuperar através do culto. Os valores deixam de ser guias e transformam-se em relíquias em vitrines. São citados, estampados, tatuados. Imóveis como peças de museu. Intocáveis como dogmas. Sagrados porque ameaçados.
É neste altar que se instala a estética do colapso. O discurso organiza-se como um lamento: a infância das nossas crianças já foi sequestrada pela ideologia; o homem tradicional foi despido da sua gravidade; a Europa e os Estados Unidos deixaram de ser cristãos. Tudo se diz como se já fosse demasiado tarde. “Já nem se pode dizer homem e mulher”, ouve-se, como se a civilização estivesse a ser desfeita num formulário escolar ou num cartaz de supermercado.
E talvez essa seja a armadilha mais eficaz. Quando o fim parece consumado, a ideia de que tudo chegou tarde é o que permite que tudo se diga agora. Até a brutalidade. A linguagem radical justifica-se como instinto. A dureza como lucidez. Há uma aura de resistência no modo como se afirma o óbvio, como se o óbvio tivesse sido proibido. Não foi. Mas o truque resulta.
O que aqui se constrói não é uma alternativa. É uma narrativa de salvação. Uma teodiceia política. Um enredo que diz: “a dor tem uma causa, e nós sabemos o nome”. Não oferece futuro, oferece respostas fáceis à vaga suspeita de que o mundo está em declínio.
E, no fim, é disso que se trata. De uma história que se conta como se fosse inevitável. De um regresso anunciado que nunca se explica. E de uma identidade que se forma mais pelo que perdeu do que pelo que propõe. A força desta nova direita radical, que seduz a tradicional, não está na sua coerência. Está na sua capacidade de nomear a perda. Mesmo quando não sabe muito bem o que perdeu.
Não há alternativa, dizem. Só esta fábula de declínio com heróis à medida. Só que uma fábula, mesmo bem contada, continua a ser isso: uma história que alguém escolheu contar.