A dramática demolição de barracas ocorrida em dois concelhos da Grande Lisboa liderados por autarcas socialistas, levou José Luís Carneiro a pronunciar-se, apelando a soluções equilibradas "com humanismo e sensibilidade social", adicionando que "a construção clandestina não é solução para os problemas de habitação".

O ministro das Infraestruturas e Habitação afirmou que o Governo está a acompanhar o caso, dizendo que a "preocupação é grande, mas não basta estar preocupado", considerando que é necessário agir, sendo isso que "o Governo tem vindo a fazer, com políticas públicas para atacar esses problemas".

O líder do Chega afirma na sua página do Facebook que não se deve dar casas aos “coitadinhos responsáveis pela construção ilegal e pela onda de criminalidade”.

Causa comoção pública que, mais de três décadas depois da presidência aberta de Mário Soares na Área Metropolitana de Lisboa, através da qual, entre outros aspectos, se expôs a indigência habitacional então existente, haja recrudescimento de situações indignas para uma governação feita em democracia.

O stress social causado por tão indecoroso espectáculo propícia o aproveitamento pela direita radical populista, que, com uma paulada, colhe dois objectivos: estigmatizar mais uma camada populacional por ela considerada espúria e descartável e, complementarmente, atacar os partidos do centrão político que têm governado em Portugal. Acresce que, como as organizações partidárias desse núcleo governativo se reivindicam da social-democracia e do socialismo, pumba, mais uma mocada: a desgraça do país deve-se à esquerda, dizem aquelas falanges populistas!

É necessário clarificar: não existem seres humanos que tenham social, étnica e culturalmente uma atracção atávica por se acoitarem em abrigos inseguros, insalubres e precários. Fazem-no apenas em condições extremas e quando a isso são compelidos.

Hoje, o stress habitacional projectou-se a outros níveis atingindo camadas socioeconómicas intermédias que, apesar de acederem a créditos hipotecários, ficam sujeitas a dois níveis de sobrepressão: por um lado uma enorme taxa de esforço (superior a 50% em mais de 75 concelhos do país) e, por outro, a uma tensão acrescida pelos litígios ocorridos nos edifícios onde se inserem as fracções próprias ou alugadas, motivados pelos crescentes usos não habitacionais dados aos apartamentos e, também, ao impacto de obras irregulares feitas ao abrigo do conceito de Simplex urbanístico, que, em muitos casos, resultam em diverso tipo de incomodidades, discussões e perigos potenciais.

Durante boa parte da ditadura fascista, mormente a partir dos anos cinquenta, os portugueses tiveram a necessidade de, como única via para tentarem uma vida melhor, migrarem para as regiões de Lisboa e do Porto, ou, então, a emigrarem para França, Suíça, Luxemburgo e Alemanha. Tanto num caso, como, bastas vezes, no outro, tiveram de recorrer a quartos, partes de casa, a pátios e ilhas, a prédios inacabados e ao acolhimento clandestino em barracas e bidonvilles.

Embora não sendo por livre vontade que uma família, um estudante ou um trabalhador escolhem viver partilhando espaços exíguos, insalubres e sem privacidade, é isso que hoje, de novo, tem vindo a acontecer, tanto a portugueses como a imigrantes de outras geografias onde as condições de vida são piores do que em Portugal.

A crise de habitação, que se vem assanhando nos últimos dez anos, é, no fundamental, uma crise de preços e rendas elevadas a níveis especulativos. Não é um problema determinado pela falta de alojamentos reais existentes, como, aliás, tem sido exaustivamente informado pelas entidades oficiais competentes (ver “Territórios com falta ou desadequação da oferta habitacional em Portugal”, Relatório IRHU). Há, de facto, dezenas de milhares de casas vagas e devolutas.

Apesar de tanta vez tal se ouvir e ler, a solução para a crise não passa por intensificar a edificação de mais edifícios habitacionais. Necessário, e prioritário, é criar estímulos legais, financeiros e fiscais, que determinem um aumento da oferta de casas que, existindo fisicamente e com condições de habitabilidade, estão vagas e vêm sendo mantidas numa expectante e oportunista busca de mais-valias. Num balanço democrático e civilizado entre os direitos e deveres da propriedade, e considerando a vertente social conferida constitucionalmente à habitação, não existem motivos válidos para a arrastada incapacidade ou inércia dos governantes e deputados.

A necessidade real do aumento da oferta de habitação nova, isto é, construída de raiz, está num outro domínio de actuação: o da iniciativa pública e num regime de Habitação a Custos Controlados (HCC), que conduzisse, por via de uma oferta suficientemente densa, à baixa dos preços e rendas. Só que isto não resulta se feito titubeantemente e às pinguinhas, e, portanto, estará condenado ao fracasso.

Durante cerca de uma década, no período final do século XX, a intensidade de edificação de novas habitações foi crescente e, nesse período, sem que que houvesse grandes aumentos no plano demográfico (procura) e dos factores de produção, os preços no mercado imobiliário foram sempre crescendo significativamente. Depois, já durante o primeiro quartel do presente século, houve descidas no ritmo de construção e, depois, subidas que, embora mais ténues do que na década referida, permitem verificar uma clara desconexão entre os níveis da oferta e os preços transacionais. Isto é, as vertiginosas subidas dos preços e rendas, principalmente nas áreas de Lisboa e Algarve, são devidas a muitas outras razões bem identificadas e estudadas, que não a relacionada com a muitas vezes mal citada “lei do mercado perfeito”. Até porque o mercado imobiliário é consabidamente caracterizado por falhas, poderes e sinuosidades que, por isso mesmo, determinam a indispensabilidade de regulação assertiva e intervenção pública directa.

Sabe-se que este objectivo, para ser alcançável, exige diversas condições financeiras e legislativas, mas, sobretudo, requer vontade, perenidade e assertividade política por parte dos actores políticos já referidos. O que continua a não se verificar. Apesar de terem surgido formulações muito interessantes nos programas eleitorais, programas de governo e normas legais, principalmente nesta última década e meia do séc. XXI, os avanços objectivos nas políticas públicas e sociais para a habitação foram pouco evidentes, acabando por eclodir o actual surto inflacionário.

Há sempre algo a falhar ou a faltar, frustrando sistematicamente as intenções benignas e as deliberações democráticas. Assim, aqueles que parecem ser os melhores programas de governo esbarram sistematicamente numa forte e sub-reptícia impedância.

Com o actual governo as condições pioraram, tendo-se revertido decisões anteriores com potencial correctivo da financeirização e turistificação da habitação, além de se ter acrescentado uma pífia revisão do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão do Território (RJIGT), que ficou erradamente conhecida por “alteração à Lei dos Solos”.

A situação dos municípios e dos autarcas é particularmente crítica porque expostos na primeira linha onde ocorrem as principais deflagrações sociais. Com meios escassos, e com dificuldades resultantes de quadros legais e de políticas públicas funcionais anacrónicas - que, em geral, resultam no contrário do que prometam nos preâmbulos –, os autarcas devem saber evitar as ratoeiras. No caso concreto, teria sido indispensável não terem caído na tentação de aplicarem medidas musculadas e, em acréscimo, sem solução à vista.

Mesmo que tais medidas estejam muito presentes nos discursos da extrema-direita que, recentemente, recebeu muitos votos, seria bom não ceder à tentação do facilitismo porque as massas populares não votam em imitações do diabo.