“Você abusou, tirou partido de mim, abusou…” – cantava Maria Bethânia na versão imortal de uma canção de Antonio Carlos e Jocafi. A letra parece escrita para Lula da Silva, o ex-sindicalista do ABC paulista que transformou a fome e a esperança do povo brasileiro num património pessoal de poder – e num álibi para uma história política marcada por populismo, corrupção, alianças duvidosas e uma retórica falsa de estadista.

Esta semana, o tweet que se tornou viral mostra, mais uma vez, a essência de Lula. Respondeu ao mundo e a Trump de forma directa, em tom professoral, que a democracia brasileira não aceita "tutela" nem interferência externa – justamente ele, que dias antes fazia campanha pública na Argentina pela “liberdade” de Cristina Kirchner, condenada por corrupção pela Justiça do seu país. João Amoêdo (ex-candidato à presidência do Brasil) resumiu bem: “Lula tem razão, mas não tem credibilidade.”.

O problema é precisamente esse: Lula fala de democracia como quem fala de amor eterno depois de ter traído repetidamente os seus próprios princípios. É o mesmo que se apresenta nos BRICS para criticar o Ocidente e a Ucrânia, enquanto se rodeia de líderes autoritários, de regimes que desprezam liberdades, matam opositores e esmagam direitos humanos. Lula prefere apertos de mão com Putin, Xi – que nem lá puseram os pés – ou Ramaphosa, desde que o tratem como estadista ou lhe garantam a ilusão de protagonismo numa nova ordem mundial.

Para compreender Lula, é preciso recordar o Brasil de onde ele emergiu. Um país que saía, em 1985, de uma das mais longas ditaduras militares das Américas. Um país que abriu a sua economia ao comércio internacional em 1992 com Collor de Mello e que, nos anos 90, consolidou a estabilização monetária com o Plano Real, de Fernando Henrique Cardoso. Quando Lula chegou ao Planalto em 2003, o Brasil não era mais um “país condenado ao fracasso” – era uma potência emergente com indicadores económicos em ascensão, inflação sob controlo e um capital político precioso: confiança internacional.

Lula surfou essa onda. Transformou programas sociais em instrumentos eleitorais e políticos e consolidou a sua imagem de “pai dos pobres”, mas, na verdade, foi a política de Fernando Henrique Cardoso — carinhosamente chamado de FHC pelo povo brasileiro — que deu resultados concretos e ajudou a retirar muitos brasileiros do limiar da pobreza.

Mas foi também com a sua complacência – ou com a sua ignorância deliberada – que se montou o maior esquema de corrupção alguma vez visto na América Latina, e um dos maiores do mundo: o famoso Petrolão. Não foi apenas um escândalo de envelopes e comissões: foi uma máquina institucionalizada de saque ao Estado brasileiro, para financiar campanhas, comprar apoios no Congresso e consolidar o poder do PT.

Foi condenado por corrupção e branqueamento de capitais, em mais de uma instância e por vários juízes federais e tribunais superiores (Operação Lava Jato – TRF-4, STJ). A sua libertação não decorreu de uma absolvição plena dos crimes – mas de anulações processuais decretadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), um órgão político onde o PT plantou as suas sementes (Lula indicou a maioria dos juízes) e cuja actuação continua a ser fonte de instabilidade social, política e de desconfiança mútua no Brasil polarizado.

Só em Portugal, onde parte da esquerda ainda vive na bolha romântica que acha que o Brasil é feito de caipirinhas em Porto de Galinhas e pequenos-almoços de novela, se continua a pintar Lula como um redentor. Muitos desses entusiastas nunca ouviram falar de Celso Daniel, o ex-tesoureiro do PT assassinado num caso nunca cabalmente explicado. Preferem ignorar o verdadeiro preço das amizades de Lula, dos contratos opacos em Angola e Moçambique, das ligações a ditadores africanos, a Cuba, à Venezuela e a velhas oligarquias latino-americanas.

A reunião dos BRICS esta semana foi mais um exemplo dessa deriva. Lula sonha com um protagonismo global que ele próprio não consegue suportar. Fala em paz na Ucrânia enquanto culpa Kiev pela invasão russa, repetindo como papagaio as teses de Moscovo. Faz-se amigo de Putin e Xi como se o Brasil fosse um anti-imperialista coerente – quando, na verdade, é apenas mais um cliente geopolítico em busca de financiamento e influência fácil.

A grande tragédia é que o Brasil merece mais. A sua economia, o seu povo, a sua cultura, a sua força demográfica e territorial são gigantescos – mas o seu Presidente voltou a ser o mesmo sindicalista do ABC que, incapaz de perceber o seu próprio tamanho no mundo, acha que basta discursar para que as realidades se transformem. Ao contrário de líderes que conseguem engrandecer a nação que governam, Lula encolheu perante a grandeza do Brasil. Tornou-se menor do que o país que o elegeu, incapaz de estar à altura do seu povo e do seu destino.

Entre ele e Bolsonaro – outro troglodita da política – o Brasil ficou condenado a uma escolha impossível. Mas isso não é desculpa para esquecer quem é Lula hoje. Já não representa o homem humilde que deu voz aos descamisados. Representa o pior da política: o cinismo, a retórica vazia, o autoritarismo envergonhado, a corrupção negada mas não apagada. Representa o populismo que se mascara de virtude e que se sente em casa com ditadores e cleptocratas, desde que isso sirva para manter o poder e o mito.

No fim de contas, como na canção, Lula abusou – do poder, da esperança, da história. E não se arrepende. O Brasil, e o mundo, pagam o preço dessa farsa.