
O artista serra-leonês Julianknxx e os portugueses Tristany Mundu, Diana Policarpo e Francisca Rocha Gonçalves são os autores dos quatro projetos que o renovado Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, reuniu para contar histórias que remetem para realidades concretas em Portugal.
"Todos estes artistas de origens distintas e práticas interdisciplinares variadas têm em comum a forma como constroem os seus projetos em colaboração com outros artistas, cientistas ou comunidades locais, acreditando numa forma coletiva de criar conhecimento", sublinhou Ana Botella, diretora adjunta do CAM, numa visita pré-inaugural para jornalistas.
Em "Coro em Rememória de um Voo", o poeta, artista e realizador africano Julianknxx cria um retrato cinematográfico para exprimir a experiência negra a partir da sua passagem por várias cidades portuárias europeias, incluindo Lisboa.
Por seu turno, o artista português de ascendência angolana Tristany Mundu evoca a realidade quotidiana da Linha de Sintra, na área Metropolitana de Lisboa, onde cresceu e vive, através da exposição "Cidade à volta da Cidade".
"Ciguatera", de Diana Policarpo, apresenta monumentais rochedos de um arquipélago atlântico que contam histórias verdadeiras de uma doença, e uma ficção inspirada em mitos e lendas antigos, enquanto Francisca Rocha Gonçalves, em "Interferências no Tejo", apresenta uma instalação sonora que procura sensibilizar o visitante para a vida das criaturas marinhas, numa atmosfera aquática que reproduz os ecossistemas do rio Tejo.
As quatro novas exposições são "uma constelação de diferentes histórias e perspetivas que se cruzam", descreveu Ana Botella, criadas por artistas que também têm em comum "uma prática que se baseia em contextos físicos específicos, através dos quais desvendam conexões sociais, culturais, políticas e ambientais contemporâneas".
"Todos eles acreditam no trabalho colaborativo", sublinhou a curadora, apontando a participação de outros campos de conhecimento, sobretudo nos projetos de Diana Policarpo e Francisca Rocha Gonçalves, que juntam arte e ciência, "para dar voz a outras espécies e formular novas perguntas".
Julianknxx tem desenvolvido o seu projeto de recolha de histórias não contadas da diáspora africana em cidades portuárias europeias -- Amesterdão, Antuérpia, Barcelona, Berlim, Hamburgo, Liverpool, Marselha e Roterdão -- trabalhando com políticos, bailarinos e ativistas locais, recolhendo performances e testemunhos que deram origem aos filmes agora exibidos no CAM.
Em Lisboa, o artista - que trabalha habitualmente os temas da herança colonial, perda, pertença e reconstrução da identidade - criou dois novos vídeos marcados pela frase "Learning how to wear black under the sun" ("Aprender a vestir a pele negra sob o sol"), inspirada pelo músico Oseias Xavier.
Aos jornalistas, Julianknxx disse que "a Europa tem ainda um longo caminho a percorrer" face à "precariedade da vida dos negros" no continente: "Visitei um bairro nos arredores de Lisboa onde todas as casas estavam degradadas. Só um edifício era novo, uma igreja", disse, na visita em que participaram todos os artistas das exposições e o diretor do CAM, Benjamin Weil.
Encomendado pelo Barbican, Londres, e pela WePresent by WeTransfer, em parceria com a Fundação Gulbenkian (CAM e Programa Gulbenkian Sustentabilidade e Equidade), "Coro em Rememória de um Voo" foi apresentado no Barbican Centre entre setembro de 2023 e fevereiro de 2024. Em setembro deste ano viajará para La Casa Encendida, em Madrid, segundo a organização.
Os arredores de Lisboa, em particular a Linha de Sintra, também são protagonistas da primeira exposição individual de Tristany Mundu, inspirada na vida quotidiana das comunidades ali residentes, a partir das quais o artista questiona as noções de "centro" e "periferia", unindo o documental e a ficção.
A instalação de "Cidade à volta da Cidade" reúne uma tripla projeção vídeo, que dá título à exposição, e um conjunto de objetos têxteis, às quais o artista chama "bandeiras": "Este trabalho fala sobre vidas e a capacidade e o poder imaginar. Mas o mais importante é o processo que liga quem imagina, quem fez e quem vê", declarou o músico e produtor que cresceu na Linha de Sintra e é membro fundador do coletivo Unidigrazz.
Já Diana Policarpo e Francisca Rocha Gonçalves debruçam-se sobre as ecologias da água, centrando-se, respetivamente, nas Ilhas Selvagens e no rio Tejo, num processo criativo enraizado na investigação, para abordar a saúde do ambiente, dando voz a rochas, peixes e outros organismos marinhos.
A instalação, que tem como ponto de partida as Ilhas Selvagens - localizadas entre o Arquipélago da Madeira e as Ilhas Canárias --, surge como exemplo de como a investigação sobre uma doença -- a Ciguatera -- pode ser transformada no maior conjunto de esculturas, em forma de rochas, que a artista visual e compositora Diana Policarpo fez até à data.
Depois de ter estado durante três semanas nas ilhas a colaborar com investigadores, a artista - cuja prática assenta na investigação interdisciplinar, explorando as estruturas económicas, a saúde e as relações entre as espécies - juntou som e imagens às esculturas, e uma voz que ficciona passados e futuros alternativos.
"Interessam-me os habitats extremos e a forma como os humanos e os outros animais lidam com eles. Não procuro respostas, mas a oportunidade de fazer mais perguntas e criar uma ficção", disse a artista à Lusa.
A água é o elemento principal da instalação de Francisca Rocha Gonçalves - "Interferências no Tejo" - investigadora e artista interdisciplinar nascida no Porto, a viver em Berlim, com formação em Ciências Biológicas e Media Digitais.
Numa sala do CAM recriou um ninho do peixe charroco, abundante no Tejo, numa instalação sonora imersiva que capta as características acústicas e vibracionais do ambiente subaquático do rio, onde os sons das espécies se misturam com ruídos produzidos pelo homem, "que tem vindo cada vez mais a impactar negativamente a vida das criaturas marinhas", lamentou a artista.
O projeto foi desenvolvido durante uma residência de investigação na qual recolheu gravações, em colaboração com cientistas, para "ouvir profundamente" a vida subaquática.
O seu objetivo, disse Francisca Gonçalves, é "sensibilizar e alertar as pessoas para a necessidade de preservar as condições sonoras do ambiente para as espécies aquáticas poderem comunicar, caçar e navegar".
Este projeto foi desenvolvido no âmbito da residência "A Call to the Sea", no Aquário Vasco da Gama, integrada no programa europeu Bauhaus of the Seas Sails.
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