A experiência de ver as Fado Bicha ao vivo teve um "impacto forte" em Justine Lemahieu. "Fiquei muito comovida com a beleza e o talento delas. Estava à frente de duas artistas muito potentes, que estavam a mexer com barreiras e linhas de poder", recordou em declarações à Lusa.

Ao tomar consciência de que o trabalho de Lila Tiago e João Caçador "era de facto muito importante", sentiu "uma grande vontade de lhe dar visibilidade".

Além disso, achou que a dupla a podia "fazer crescer" no que diz respeito a questões ligadas com os padrões de género, e interrogações que podia ter relativamente à sua condição de mulher.

"Elas estavam a ter um papel político em relação a estas questões. Questões sobre as quais também era importante para mim refletir, e partilhar com o público", disse.

No início de 2019, decidiu contactar Lila Tiago e João Caçador para lhes apresentar o projeto, tendo a cantora inicialmente mostrado alguma resistência.

"O João é que insistiu para que aceitássemos encontrar-nos com ela. Por um lado, houve em mim um certo lugar de humildade - isto aconteceu quando o projeto era muito recente, pensava que não fazia sentido haver já alguém a seguir-nos para fazer um filme sobre nós -, por outro lado também desconforto, de haver alguém sempre a filmar-nos", recordou.

No primeiro encontro, Lila e João ficaram "com uma ótima impressão" da realizadora e acharam "curioso e interessante que fosse uma mulher que não nasceu e cresceu em Portugal" a ter interesse em fazer um filme sobre as Fado Bicha.

O projeto Fado Bicha surgiu em 2017 e o primeiro 'single', "Namorico do André", foi divulgado dois anos depois. O 'cartão-de-visita' da dupla apresenta bem o projeto que, através do fado, procura dar visibilidade às histórias da comunidade LGBTQIA+ (Lésbica, Gay, Bissexual, Trans, Queer, Intersexo, Assexual e todas as diversas possibilidades de orientação sexual e identificação de género que existam).

Trata-se de uma adaptação de um conhecido fado - "Namorico da Rita", imortalizado na voz de Amália Rodrigues -, mas no qual as Fado Bicha cantam sobre o 'namorico' "entre o André que é peixeiro e o Chico que é pescador".

Ao longo de quatro anos, Justine Lemahieu foi acompanhando Lila e João em concertos, tanto em palco como nos camarins, mas também em cenários mais pessoais.

"A Justine teve sempre uma postura, além de discreta e suave, atenta, curiosa, disponível para ouvir e entender", referiu Lila, lembrando que ao longo do tempo a presença da realizadora "foi-se tornando cada vez mais invisível".

Embora não seja percetível para quem vê o filme, Lila consegue perceber, porque se lembra de todos os momentos, a partir de quando se esqueceu que Justine estava a filmar.

"Isso tem que ver com a competência dela enquanto documentarista, cineasta, mas também com a relação que desenvolvemos e a minha tranquilidade em saber que aquele material ia ser tratado de uma forma muito cuidada; também em saber para onde nos encaminhávamos, que género de obra é que ela queria fazer sobre nós e aquilo que eu queria", disse.

As filmagens aconteceram entre 2019 e 2023, com uma pandemia pelo meio, e ao longo desse tempo Justine Lemahieu acumulou 60 horas de filmagens.

Até chegar ao resultado final, com quase uma hora e meia, a realizadora foi partilhando o trabalho com as artistas.

"A relação foi-se construindo também através de visionamentos. É muito difícil retratar pessoas, conseguir ver e perceber melhor as pessoas, o que estão a dizer-me. Foi importante partilhar, mostrar. Montei o filme sozinha, mas sempre com o olhar da Lila e do João a guiar-me nas histórias que eu fazia", contou.

Criar "As Fado Bicha" foi para Justine Lemahieu "uma experiência muito transformadora", que a levou a regressar à universidade, para estudar Antropologia, e a escrever uma tese de mestrado sobre o processo do filme.

"Senti que é muito importante educar-me sobre as questões de género e também aprender sobre a história do Fado. Fui aprendendo muito através deste filme", partilhou.

Depois de ter sido apresentado em três festivais (IndieLisboa e Queer Lisboa, em Portugal, e Festival Internacional de Documentários de Salónica, na Grécia), o filme "As Fado Bicha" tem agora estreia comercial e a realizadora tem um objetivo "muito claro" para ele: "chegar a um público o mais vasto possível".

"Foi nesse sentido que construi o filme, para ver visto por todas as pessoas", afirmou.

Lila gostava que o filme "pudesse chegar a pessoas que à partida não estariam muito para aí viradas", mas "que de repente se emocionam com o que veem e sentem que há uma ponte de Humanidade em comum".

"São duas pessoas queer a falar sobre a sua infância, a violência que sofreram, as famílias, sobre amizade, sobre amor. Cria uma possibilidade de empatia muito forte e isso é a grande estratégia, o grande recurso e a grande beleza de um filme como este. Possibilitar a uma pessoa que não tem qualquer relação com a comunidade, o pensamento, as pessoas, que acha que não conhece pessoas queer, de poder emocionar-se, comover-se, com as vidas de duas pessoas queer, que são portuguesas", afirmou.

JRS // MAG

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