
Como tem sido a sua experiência como diretor clínico para os CSP? Já eram ULS, mas não havia este cargo…
A anterior presidente do Conselho de Administração (CA), Conceição Margalha, era médica de família e acumulava a função de diretora clínica para os cuidados de saúde primários (DC-CSP) – foram dois mandatos. Nos dois CA anteriores houve também DC-CSP (Horácio Feiteiro e Jorge Santo), apesar de existir o Conselho Clínico e de Saúde do agrupamento de centros de saúde (ACeS). Sempre tem havido uma articulação, por isso tem sido uma experiência pacífica. Pessoalmente, admito que prefiro a atividade assistencial à de gestão, mas faltando médicos mais velhos interessados nestas funções, acabei por aceitar este desafio.
Já há uma tradição de articulação de cuidados…
Sim, facilitou muito o facto de a ULS, em 2008, ter sido criada por um médico de família. Obviamente, teve-se as ‘dores’ normais de adaptação às diferentes culturas de cuidados primários e hospitalares, mas também tivemos muito mais tempo para nos habituarmos do que as novas 31 unidades locais de saúde (ULS), criadas no ano passado. Esta ULS sempre foi um projeto local. Teve, inevitavelmente, as suas oposições internas, mas foi um processo de baixo para cima e não o inverso como nas novas ULS – dessa forma acaba por dar mais ‘dores’ de crescimento.
Uma das queixas das novas ULS está na integração, por exemplo, das equipas de suporte. Como resolveram essa situação?
No nosso caso, foi relativamente fácil integrar os serviços de suporte, apesar de ainda haver problemas, que estão muito relacionados com a dispersão geográfica. O serviço de instalações e equipamentos está sediado, atualmente, no Hospital de Beja, e quando há uma rutura de uma torneira em Mértola, Moura ou Barrancos não é fácil dar uma resposta rápida, apesar do apoio importante das autarquias.
“São duas culturas diferentes. Se há 20 anos nos conhecíamos – era uma geração que tinha vindo para Beja para fazer o Serviço Médico à Periferia – e comunicávamos uns com os outros, atualmente isso já não acontece tanto”
E em relação aos serviços clínicos?
A integração desses serviços tem sido complicada… São duas culturas diferentes. Se há 20 anos nos conhecíamos – era uma geração que tinha vindo para Beja para fazer o Serviço Médico à Periferia – e comunicávamos uns com os outros, atualmente isso já não acontece tanto. A primeira geração saiu e não foi substituída de forma adequada. O mais difícil tem sido mesmo a escassez de recursos humanos, nomeadamente na área médica. Os outros profissionais de saúde estão razoavelmente bem, apesar de dificuldades pontuais. A falta de profissionais também não nos permite atingir totalmente os objetivos que queremos em termos de integração de serviços. O Percurso Assistencial Integrado é algo muito importante, mas como o podemos aplicar quando temos centros de saúde sem médicos e a resposta hospitalar tem carências profundas de médicos?
Em termos de governação clínica, é mais fácil trabalhar hoje em dia sem o Conselho Clínico e de Saúde?
Quando entrei, era diretor clínico, mas também presidente do Conselho Clínico e de Saúde. Entretanto, passados uns meses transitámos para modelo de departamento de cuidados de Saúde Familiar e Comunitária. Nesta região, a situação do Conselho Clínico e de Saúde não era fácil… Por motivos de doença e falecimento do anterior presidente estivemos algum tempo sem representante. Por isso, hoje em dia, não está a ser mais complicado. A transição para modelo de departamento é, na minha opinião, mais clara. O conselho Clínico e de Saúde fazia mais sentido no modelo ACeS, não em ULS.
As novas ULS queixam-se de falta de autonomia, nomeadamente nos recursos humanos. Também o sentem, já que têm estas dificuldades em recrutar médicos?
A nossa maior dificuldade não é a falta de autonomia, mas sim atrair e fixar médicos. Estamos condicionados pelos concursos nacionais, principalmente nos CSP… No último semestre decorreu um concurso local, que supostamente iria promover a autonomia das unidades, mas claramente não resultou. Este modelo de concurso nacional parece, pelo menos, ser mais célere e provavelmente deverá ter melhores resultados. O nosso grande problema é atrair profissionais para a região! O país, nas últimas 3 a 4 décadas, foi-se tornando gradualmente mais litoral e menos interior. Temos poucos internos e, dos que vêm, muitos não ficam.
“Neste último concurso, felizmente, conseguimos fixar cinco médicos no conselho de Beja, no sentido de criarem uma USF”
No último concurso, no Alentejo houve mais de 50% de vagas que não foram preenchidas, apesar dos candidatos terem capacidades para exercer Medicina, segundo a ACSS. Qual é o problema? É a interioridade em si que não permite captar e fixar médicos para esta região?
No Baixo Alentejo, a questão central está na reforma dos CSP. Em 2007, quando se criaram as unidades de saúde familiar (USF), tínhamos uma unidade que transitou do Regime Remuneratório Experimental (RRE) para USF – no início de 2009 – e é a única até hoje. Isto deve-se a questões locais, políticas e ideológicas, mas também porque os colegas não mostram grande vontade em apresentar propostas. Os recursos humanos foram diminuindo e continuamos a ter unidades de cuidados de saúde personalizados (UCSP) com baixa atratividade. Neste último concurso, felizmente, conseguimos fixar cinco médicos no conselho de Beja, no sentido de criarem uma USF.
É muito complicado atrair jovens para UCSP e transitar de UCSP para USF, porque os médicos que cá estão, vão ficando mais velhos. Além disso, muitas vezes, para se poder prestar cuidados temos que recorrer a prestadores de serviço sem especialidade, nomeadamente a um grupo que veio há cerca de 15 anos de Cuba. Temos ainda o apoio de alguns dos médicos de família que, entretanto, se aposentaram e que voltámos a contratar. Em Beja é um pouco mais fácil, o pior são os concelhos em redor.
Mas por que razão não se quis apostar em USF?
Houve um projeto em Serpa há cerca de 10 anos, mas surgiram obstáculos a nível da própria direção do ACeS e da ULS, acabando por não se avançar. Há 4 anos, foi apresentado mais um projeto para criação de USF, mas voltou a haver vários entraves. Além disso, a maioria dos colegas das gerações anteriores não tinham vontade.
Além da criação das USF, que outras medidas considera serem importantes para atrair profissionais?
Temos que os conseguir fixar na altura em que estão a formar família e a desenvolver projetos profissionais pessoais. Com a especialidade, já temos, atualmente, a possibilidade de lhes dar uma melhor remuneração, quer pelas vagas carenciadas quer pelo regime de Dedicação Plena, mas o dinheiro não é tudo…
No caso do Internato médico, tem havido várias queixas nas novas ULS, porque são culturas diferentes. No Baixo Alentejo também se sentiu isso?
Não o temos sentido. Nesta região, a questão é conseguir-se que façam a formação toda no Baixo Alentejo. Por exemplo, no meu tempo, o estágio de Dermatologia era em Évora, atualmente, têm de ir para Lisboa. Mesmo nos estágios obrigatórios – Pediatria e Ginecologia-Obstetrícia – é cada vez mais difícil pela carência de médicos nestes serviços. A dinâmica de um grupo de internos pequeno é diferente… Temos que lutar contra o isolamento destes profissionais.
Além do envelhecimento da população e do isolamento, atualmente, também enfrentam, na região, uma vaga de imigrantes, que são muitas vezes alvo de tráfico de seres humanos. Como se gere isto com falta de médicos?
Com muita dificuldade. Temos um grande grupo, particularmente nos concelhos irrigados pelo Alqueva, onde se aposta em mão-de-obra barata imigrante. É uma população flutuante, com níveis de literacia muito baixos, grandes dificuldades de comunicação, com problemas de saúde diferentes dos do nosso país, como patologia infeciosa. Há mais casos de IST e de tuberculose. Há muita exclusão social, prostituição…
“Há mais-valias financeiras por causa das vagas carenciadas e da dedicação plena – é quase o dobro do vencimento do salário base do assistente de MGF – e temos um alojamento francamente mais barato do que no litoral (compra e arrendamento)”
O Governo tem um projeto-lei para dificultar ainda mais o acesso destes imigrantes aos cuidados de saúde. Vários médicos se manifestaram contra esta ideia. Qual é a sua posição?
Também estou contra. Não vejo que isso tenha benefícios. Pode haver, de facto, algum turismo de saúde, mas é marginal comparativamente com estes imigrantes. Se eles não tiverem acesso a cuidados, os portugueses também serão prejudicados, sobretudo quando se trata de doenças infeciosas.
São, de facto, vários os problemas que têm enfrentado. Mas, que aspetos positivos é que tem o Baixo Alentejo?
Há mais-valias financeiras por causa das vagas carenciadas e da dedicação plena – é quase o dobro do vencimento do salário base do assistente de MGF – e temos um alojamento francamente mais barato do que no litoral (compra e arrendamento). Também temos seis conselhos que têm regimes municipais de apoio a fixação de médicos de família – são 500-600 euros para apoio para casa. Temos qualidade vida, apesar de não haver a oferta cultural que desejaríamos. É uma região segura, com escolas perto de casa… e os colegas têm a possibilidade de desenvolverem projetos profissionais sem serem condicionados, já que estamos numa fase de querer apostar em USF.
Face a estes anos de ULS, considera que este modelo deve ser nacional ou deveria ter sido adotado em determinadas regiões, consoante as suas necessidades locais?
Até pode fazer sentido… Penso que houve erros na forma como se avançou, foi tudo muito abruto, não se envolveram os profissionais de saúde. Não se lhes permitiu fazer um trabalho prévio. Mas faz todo o sentido que haja integração de cuidados primários e hospitalares. Todavia, não basta ser por decreto-lei. É precisar trabalhar mais na integração das equipas, especialmente na área clínica. Fez-se tudo à pressa.
Maria João Garcia
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