Para a doutrina cristã, um dos pilares da fé reside na Santíssima Trindade, constituída pelo Pai, o Filho (Jesus Cristo) e o Espírito Santo, três entidades que, segundo esta religião, se fundem numa só: Deus, um ser absoluto, único, superior e poderoso. Por sua vez, o domínio militar global dos Estados Unidos da América, a única superpotência mundial após a dissolução da União Soviética, assenta, de acordo com um estudo de 2020, num arsenal nuclear de 1750 ogivas nucleares estratégicas, igualmente divididas numa tríade todo-poderosa.
Começamos pelos Mísseis Balísticos Intercontinentais (conhecidos pelo acrónimo ICBM), compostos por 400 ogivas guardadas em silos subterrâneos em território dos EUA, seguem-se os Mísseis Balísticos Lançados de Submarinos (SLBM), correspondentes a 900 ogivas, e depois os Bombardeiros Estratégicos (300 ogivas prontas a usar nestes aviões). A tudo isto juntam-se, em bases militares norte-americanas espalhadas por cinco países europeus,180 bombas nucleares táticas, sendo que um terço destas últimas estavam, pelo menos até 2019, na base aérea de Incirlik, no sul da Turquia, a poucos quilómetros do Mar Mediterrâneo.
Mas há muito mais. Além destes 1750 engenhos prontos a ser disparados, existem mais 2050 ogivas nucleares em reserva, pelo que o país tem um total disponível de 3800. Retiradas e à espera de ser desmanteladas encontram-se mais duas mil ogivas, o que puxa o inventário para 5.800 bombas do género. Não se sabe se alguma vez um deus, seja ele de uma religião monoteísta ou politeísta (isto, se acreditarmos em entidades divinas), alguma vez teve tanto poder atómico de destruição. Na Bíblia dos cristãos, por exemplo, efabula-se que Deus demorou seis dias a criar o mundo, incluindo plantas e animais, mas é um facto de que existe, atualmente e no mundo real, uma só nação que detém um número suficiente de armas capazes de destruir a civilização humana, como a conhecemos, numa questão de minutos.
A nova arma, que a força aérea dos EUA está a desenvolver e que terá de estar pronta a usar até 2029, estando previsto que sejam construídas 600 unidades, é composta por um míssil do tamanho de uma pista de bowling – capaz de percorrer dez mil quilómetros, um quarto da circunferência da Terra – e uma ogiva nuclear com uma capacidade de destruição vinte vezes maior do que a bomba largada sobre Hiroxima, em 1945.
A fatura, para pagar estas máquinas de guerra, terá um valor final de 100 mil milhões de dólares, vindos diretamente dos cofres públicos, refere o Boletim de Cientistas Atómicos, uma publicação da organização norte-americana sem fins lucrativos com o mesmo nome, fundada pouco depois de as primeiras bombas atómicas atingirem o Japão e que também é responsável, todos os anos, por dizer onde estão os ponteiros do famoso Relógio do Juízo Final. Esse mesmo relógio, de momento, diz que faltam cem minutos para a meia-noite (hora que simboliza o momento de uma detonação cataclísmica), sendo usado como indicador para a vulnerabilidade do nosso mundo face a catástrofes vindas de armas nucleares, das alterações climáticas, de “tecnologias disruptivas” e não só: para 2021, por exemplo, a pandemia global provocada pelo novo coronavírus entrou nos cálculos.
Os 600 novos mísseis estão classificados como armas de Dissuasão Estratégica Terrestre (GBSD) e destinam-se a substituir todos os atuais Mísseis Balísticos Intercontinentais (ICBM) que estão em silos nucleares. Os GBSD ficarão espalhados por três grupos e ao longo de cinco estados norte-americanos.
Um contrato inicial foi entregue à empresa de defesa aeronáutica Northrop Grumman, a 8 de setembro de 2020, ainda durante a administração do presidente Donald Trump, no valor de 13,3 mil milhões de dólares, mas até 2029, quando todos os mísseis previstos estiverem prontos, o valor chegará, então, à centena de milhares de dólares. Foi a primeira vez que um contrato desta envergadura só teve uma empresa a concurso, com outras a desistir pelo caminho, um caso que fez erguer a sobrancelha a vários congressistas norte-americanos, não só devido à estranha falta de concorrentes – levantando a suspeita de que o concurso estava feito para favorecer um dos candidatos –, mas também por causa dos elevados custos envolvidos, numa altura em que o país enfrentava (e ainda enfrenta) a crise causada pela pandemia de COVID-19. Em cima da mesa existia a possibilidade de estender o tempo de vida dos Minuteman III, os atuais mísseis balísticos Intercontinentais dos EUA, para lá de 2030 e por um preço mais baixo, mas a ideia acabou por ser excluída pelos militares da Força Aérea e pelo Departamento de Defesa do governo.
Tal como salienta o Boletim de Cientistas Atómicos, na base desta decisão está todo um jogo de bastidores que vai para além da ameaça militar russa ou chinesa, com muito lobby e dinheiro pelo meio, destinado a influenciar as palavras e decisões de políticos e membros do Congresso, assim como a opinião pública: através, por exemplo, da promessa de postos de trabalho e toda uma prosperidade económica, para certas regiões, assente na indústria do armamento nuclear. Basicamente, existe toda uma teia de complexidades, com bastante opacidade, muitas meias-verdades e velhas crenças bastante enraizadas em determinadas comunidades, capaz de garantir que este tipo de contratos multimilionários chegue às mãos de empresas como a Northrop Grumman, denuncia a investigação realizada pelo Boletim de Cientistas Atómicos.
Na prática, o negócio das armas nucleares rende muito dinheiro aos privados, nos EUA, só que o dinheiro que o governo norte-americano terá de gastar com o seu arsenal nuclear, nas décadas vindouras, pesará cada vez mais no erário público.
Antes de irmos a esta história, há outras que é preciso contar, mais antigas e que ajudam a narrar como começou esta estranha fé, uma crença quase religiosa de que os Estados Unidos precisam do poder destrutivo do átomo para se afirmar e distinguir das restantes nações. Começa com o pai da bomba atómica americana, um cientista atormentado pelo espetáculo dantesco que foi a primeira detonação nuclear alguma vez feita e pelo suicídio, um ano antes, da mulher que fora a sua paixão, uma intelectual que fazia parte do Partido Comunista.
“Tornei-me na Morte, o destruidor de mundos”
Robert Oppenheimer, um físico teórico nascido em Nova Iorque, filho de pais judeus que migraram da Alemanha, liderou, durante a Segunda Guerra Mundial, o laboratório de Los Alamos, o centro de investigação que era a peça-chave do ultrassecreto Projeto Manhattan, destinado a criar a bomba atómica norte-americana, a primeira de todas. A 16 de julho de 1945, quando faltava um minuto para as seis e meia da manhã (hora local), os militares e cientistas envolvidos, com o consentimento de Oppenheimer, fizeram explodir no deserto da Jornada del Morto (que se pode traduzir para Jornada ou Caminho do Morto), no estado do Novo México, a poucas dezenas de quilómetros da cidade de Socorro, um engenho nuclear a que deram o nome de Trinity, ou seja, Trindade. Os sugestivos nomes dos locais e da própria bomba parecem tirados de um sombrio livro de ficção científica, daqueles bastante distópicos, onde sagrado e profano se misturam. Porquê Trindade para uma máquina que seria replicada e, três semanas depois, a 6 de agosto, deflagrada no céu da cidade japonesa de Hiroxima, matando, imediatamente e ao longo dos meses seguintes, entre 90 mil a 150 mil pessoas?
A crer no próprio Oppenheimer, a fonte de inspiração para o nome foi um poema sobre Deus da autoria de John Donne, um dos seus poetas preferidos, assim como de Jean Tatlock, com quem teve uma relação de amor – estiveram à beira de se casar. No ano em que Hitler mandou invadir a Polónia, em 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial, Tatlock, que era psicóloga, escritora e membro do Partido Comunista dos EUA, pôs termo ao romance. Todavia, os dois continuaram a comunicar e a ver-se até ao verão de 1943, altura em que Tatlock terá confessado que ainda amava Oppenheimer e queria viver com ele. Todavia, os serviços secretos dos EUA, devido às ligações de Tatlock ao movimento comunista e porque Oppenheimer fazia parte do Projeto Manhattan, tinham os dois sob vigilância. O pai da bomba atómica, como ficou conhecido para a história, nunca mais voltou a vê-la, depois deste episódio.
Um ano depois, Tatlock, que sofria de depressão, suicidou-se. Há historiadores que acreditam, portanto, que o nome de Trinity surgiu como uma espécie de tributo à sua antiga amante, mas o físico norte-americano nunca o confirmou, nem tampouco foi claro no motivo para o nome de Trinity se adequar a uma bomba nuclear experimental, uma arma como nunca antes se vira.
Aliás, quando a viu explodir pela primeira vez, no deserto do Novo México, toda a experiência o impressionou. A bomba arrasou uma área com 300 metros de raio e fez erguer no céu a sua icónica nuvem em forma de cogumelo, esticando-se para lá dos 12 quilómetros de altitude. O barulho da onda de choque que gerou foi ouvido a 120 quilómetros de distância e um enorme clarão, mais forte que a luminosidade do sol em todo o seu esplendor, encandeou tudo e todos durante breves segundos. No solo, a areia do deserto derreteu e formou pedaços de vidro verde radioactivamente perigosos, a que depois se deu o nome de trinitita, um resíduo vítreo formado pelo calor infernal e pelo plutónio usado no engenho – as duas bombas que atingiram o Japão recorreram ao urânio como material para a fissão nuclear. E isto foi só um teste, o primeiro.
Ao ver todo aquele cenário, diante dos seus olhos, Oppenheimer, lembrou-se de uma citação do Bhagavad-Gita, um texto religioso hindu datado de há 2400 anos (a filosofia era outro dos seus grande interesses): “Agora tornei-me na Morte, o destruidor de mundos”.
“Nós sabíamos que o mundo não seria o mesmo”, recordou, mais tarde. Dos que estavam presentes, no momento do teste, “algumas pessoas riram, algumas pessoas choraram, a maioria ficou em silêncio”.
No mesmo ano, após as duas bombas largadas em Hiroxima e Nagasaki, vários cientistas ligados ao Projeto Manhattan criaram o Boletim de Ciências Atómicas, em jeito de penitência por aquilo em que estiveram envolvidos, mas também porque eles, melhor do que ninguém, perceberam que um novo tipo de poder, como nunca antes existira na história da humanidade, tinha sido libertado e entregue a nações que procuravam, a todo o custo, manter-se como potências globais ou ascender a um papel de hegemonia. Já não existia forma de voltar a meter o génio dentro da lâmpada. O mundo nunca mais foi o mesmo.
Na corrida pelas armas nucleares, quem não está connosco está contra nós
Oppenheimer, por sua vez, e ainda trabalhando para o governo dos EUA, foi uma das vozes mais proeminentes a favor de um controlo internacional apertado do poder nuclear, da cooperação entre países, para que se evitasse a proliferação de armas nucleares e uma corrida a este tipo de armamento, assim como a criação de engenhos mais avançados e com uma capacidade mais letal. Nadava contra a corrente, e ser uma voz do contra valeu-lhe a perseguição por políticos e militares que conviviam bem, por diferentes motivos, com a nova era atómica. Em 1954, face a esta sua posição e usando como argumento as ligações, no passado, que teve com figuras e grupos comunistas (a sua relação com Jean Tatlock veio, obviamente, à baila), o governo passou a negar-lhe o acesso a qualquer tipo de informações consideradas secretas e confidenciais. Ostracizado e difamado, acabou, na prática, despido da forte influência política e moral que até aí tinha tido.
A filosofia, fosse ela de origem hindu ou ocidental, na qual Oppenheimer procurava sentido e respostas para algumas das suas inquietações, nada podiam contra uma nova doutrina adotada nas relações internacionais, uma espécie de nova religião, plena de dogmas, que começava a tomar lugar como fonte de poder, à medida que a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, as duas únicas superpotências que restavam, se tornava mais quente e causava uma sensação constante de ameaça e medo por todo o globo.
A ideia, explicada de forma simples, era a de que na nova era inaugurada pelo lançamento da bomba atómica sobre Hiroxima, em 1945, a nação que dispusesse de um arsenal nuclear teria na sua posse, igualmente, uma ferramenta militar e política de dissuasão, capaz de evitar um ataque por parte de outros estados, inclusive os que tivessem armamento nuclear.
A doutrina MAD (Mutually Assured Destruction, ou seja, Destruição Mútua Assegurada), como ficou conhecida, um acrónimo que, traduzido para português, significa ‘louco’, defendia que se um país fosse atacado por armas nucleares, então este teria de ter a capacidade de responder ao atacante na mesma moeda. Dito de outra forma, quem atirasse a primeira pedra arriscava-se, depois, a levar com a segunda e a ficar, igualmente, com a cabeça partida ou moribundo, simplificando de forma grosseira. Deste modo, criava-se um efeito de dissuasão, em que nenhuma das potências nucleares atacaria uma outra ou os seus aliados, devido ao medo de represália e de uma destruição nuclear capaz de matar milhões e atirar a civilização humana para a idade da pedra.
Dinheiro dava para pagar milhões de professores, milhões de bolsas de estudo e tratar milhões de infetados com COVID-19
Estamos em 2021 e, neste preciso momento, os EUA ainda gastam uma fortuna em armas nucleares para fins de “dissuasão”, como é o caso dos 600 mísseis GBSD. A despesa anual do país com armas nucleares vai chegar aos 50 mil milhões de dólares entre o final da década de 2020 e início da de 2030 – o equivalente a um quarto do Produto Interno Bruto de Portugal em 2020 – estima o gabinete para o orçamento do Congresso dos EUA, a agência federal do Governo responsável por providenciar informação económica e orçamental aos membros do Senado e da Câmara dos Representantes (as duas câmaras legislativas que formam o Congresso).
Fazem sentido estes gastos nos dias de hoje, finda a Guerra Fria e a tão badalada ‘ameaça vermelha’, com a dissolução da União Soviética há mais de três décadas? A resposta depende da perspetiva com que se aborda a questão e se olha para as necessidades do futuro.
“Outros estados com armas nucleares, nomeadamente a Rússia e a China, estão a atualizar os seus arsenais e testaram, produziram e implementaram mais novos sistemas que os Estados Unidos, na última década”, informa um relatório de 2018 da Associação para o Controlo de Armas, organismo sedeado nos EUA que disponibiliza informação relacionada com as políticas de controlo de armas, a nível mundial, e sobre os programas que os países têm ou estão a desenvolver na área do armamento. “Todavia, o exército dos Estados Unidos atualizou e renovou quase todos os seus sistemas estratégicos e de resposta tática, assim como as ogivas nucleares que carregam, para que durem muito além do tempo de vida para o qual estavam originalmente planeados, estando agora nos estágios iniciais de substituição de muitos destes sistemas antigos por novos sistemas”, acrescenta o documento. “Apesar de ter décadas” de existência, o complexo de armas nucleares dos EUA encontra-se modernizado e é mais avançado, em termos de capacidade de defesa e ataque, do que inicialmente. Mesmo assim, os novos sistemas, que estão e vão ser construídos, terão novas capacidades que os atuais não têm.
Olhando para tudo isto, o saldo final, feito pela Associação para o Controlo de Armas, é este: “O atual e planeado investimento financeiro dos EUA em forças nucleares não consegue ser rivalizado por nenhum outro poder nuclear”.
Por sua vez, e segundo os cálculos do Boletim de Cientistas Atómicos, os dólares que que vão ser aplicados nos GBSD poderiam ter outros fins que, neste momento, parecem bem mais urgentes:
“Cem mil milhões de dólares podem pagar o salário, durante um ano, de 1,2 milhões de professores do ensino básico, providenciar 2,8 milhões de bolsas universitárias de quatro anos e cobrir 3,3 milhões de estadias em hospitais a doentes com COVID-19. É o suficiente para construir um muro gigantesco e mecanizado que proteja a cidade de Nova Iorque do aumento do nível do mar. É o suficiente para ir até Marte.”