Em novembro de 2018, o Pentágono anunciou que o número de efetivos do exército dos EUA em África – o Comando dos Estados Unidos para África, mais conhecido por Africom – sofreria um corte de 10% nos anos seguintes, para se concentrar em outras zonas do globo e fazer face ao que considera ser ameaças militares por parte da Rússia e China. Na prática, esta redução de efetivos iria afetar os sete mil soldados do Africom, os quais participam em operações conjuntas com os exércitos nacionais de diversos países africanos, nomeadamente contra grupos jihadistas que operam no continente, assim como os outros dois mil que dão treino militar em quase 40 estados.
Todavia, desde que o anúncio foi feito ele tem dado que falar. Existem vozes nos partidos Republicano e Democrata que se mostram contra uma menor presença militar dos EUA, embora a administração do presidente Donald Trump tenha garantido que nenhuma decisão foi tomada: por agora, o Pentágono está a privatizar algumas das operações da Africom. Mas, e ao mesmo tempo, parece existir indícios que contradizem o discurso de ter uma presença mais ligeira em África. Conforme descobriu o site noticioso The Intercept no início deste ano, após ter conseguido aceder, legalmente, a documentos internos do exército norte-americano, os EUA têm uma rede de 27 bases espalhadas por África, sendo 15 delas de carácter “permanente” e outras 12 “menos-permanentes”. Acima de tudo, os documentos destacam, de acordo com o The Intercept, que “a Africom está a procurar ativamente aumentar a sua presença e está preparada para se expandir no futuro”.
Isto talvez explique, em parte, porque poderá a China querer aumentar a sua presença militar no continente, e, desta forma, atirar para debaixo do tapete o seu tão afamado ‘princípio de não-interferência’ nos assuntos internos de outros países. Em 2017 entrou em atividade a sua primeira base militar em território internacional, precisamente em África, no Djibuti – onde também existe uma dos EUA, assim como de outras nações –, estrategicamente localizada no Golfo de Áden, sendo que a China também dá formação militar a alguns países da região e marca presença em operações conjuntas de combate à pirataria.
Em África “há mais negócios chineses, mais interesses e mais ameaças e ataques a esses interesses e pessoas”, resume David Shinn, especialista em assuntos sino-africanos pela Universidade George Washington, nos EUA, à radioemissora alemã Deutsche Welle (DW). “Há uma intenção de proteger os interesses e pessoal chinês no continente", acrescenta.
Portos no estrangeiro militarizados e mais tropas fora de casa?
Tudo pode estar prestes a mudar com a Nova Rota da Seda da China (conhecida por Belt and Road Initiative, em inglês), um projeto ambicioso que incluirá 60 países e terá uma rota terrestre, a ligar a China à Europa (via Ásia Central e Ocidental), e outra marítima, que a ligará a outros países da Ásia, África e Europa - daí a importância de uma base militar no Golfo de Áden. O objetivo declarado é o de transportar, ao longo dessas novas rotas, desde matérias-primas a produtos eletrónicos, fortalecendo a China como potência económica mundial.
Todavia, há cada vez mais especialistas a afirmar que a Nova Rota da Seda vai abrir portas, em território estrangeiro, a uma militarização dos portos controlados pela China, assim como à construção e proliferação de novas bases militares. Por exemplo, um artigo publicado em 2019, por dois académicos da Universidade de Jiao Tong de Xangai, referem que “a China precisa de começar a construir bases militares no exterior, para proteger os seus interesses em expansão no estrangeiro e cumprir melhor as suas responsabilidades internacionais”, defendendo, para isso, que “o estatuto legal das bases militares no exterior são reconhecidas pelo direito internacional”. Sobretudo, acrescentam que “a construção de bases militares no estrangeiro é um passo necessário para a China crescer e tornar-se numa verdadeira potência mundial”, embora salvaguardem que elas “vão servir propósitos pacíficos”.
Face a este último cenário, o qual inclui África, é normal que as potências que mais se envolvem nos assuntos africanos, como os Estados Unidos, França – o exército gaulês tem à volta de 7500 militares no continente, especialmente na região do Sahel – e o Reino Unido se sintam preocupadas.
Cobus van Staden, do Instituto das Relações Internacionais da África do Sul, explica à Deutsche Welle o jogo duplo protagonizado pelas tradicionais potências, sem deixar de apontar o dedo à China: "Eles tendem a acusar a China de tentar exportar o sistema comunista para África, mas acho que não há provas disso”, frisa. “Ao mesmo tempo, penso que as preocupações com as empresas chinesas que exportam material de vigilância, ou ajudam os governos africanos a vigiar o povo africano, são realistas. Mas as empresas ocidentais, tanto americanas como europeias, fazem exatamente o mesmo", acrescenta.
Ainda de acordo com Cobus van Staden, a presença militar chinesa ainda não é mal vista pelas populações dos países africanos, embora abra reservas sobre como podem depois reagir se houver um aumento da presença de soldados chineses no continente.
Nações africanas sabem o que é ser o peão de uma Guerra Fria
Não é de agora que se fala do retorno de uma Guerra Fria, com os EUA outra vez como coprotagonista, sendo que, desta vez, do outro lado da barricada estaria a China. No discurso de abertura da 75ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, a 22 de setembro deste ano, o secretário-geral António Guterres frisou que “estamos a mover-nos numa direção muito perigosa" com a divisão de forças a nível global, numa era em que é cada vez mais essencial a união, para fazer face a desafios pandémicos, como a de Covid-19, ou as alterações climáticas com origem humana, o maior teste à humanidade a médio e longo-prazo. Para Guterres, não pode existir uma situação "em que as duas maiores economias dividam o globo numa ‘grande fratura’, cada uma com as suas próprias regras comerciais e financeiras, e capacidades de Internet e inteligência artificial".
O continente africano tem bem patente, na sua memória histórica recente, o que é estar no meio de uma Guerra Fria entre duas potências mundiais. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) e até à queda do Muro de Berlim (1989), as nações africanas foram palco das chamadas guerras por procuração, com os Estados Unidos e a União Soviética a apoiarem diferentes fações nos mais diversos conflitos, a maior parte guerras civis, que devastaram África.
A título de exemplo, o Programa de Dados de Conflitos de Uppsala, um projeto de monitorização ligado à universidade sueca de Uppsala, indica que o número de conflitos em África que resultaram em mil ou mais pessoas mortas, em cenário de batalha, entrou em franco declínio após o fim da Guerra Fria, tendo passado de uma média de 12 por ano, no final da década de 1990, para uma média de 3,5, a partir de 2010.
Voltar atrás não parece solução, para muitos líderes de África, mas não é fácil decidir quando se é pressionado por um dos maiores parceiros das nações africanas, a China, e a maior potência – ainda sem rival – do globo, os EUA. Fica no ar, apesar do cliché, a velha pergunta: África, quo vadis?