Canis lupus. Eis o nome em latim do lobo cinzento, com a primeira palavra a determinar o género a que pertence e a segunda a espécie. Atualmente, existem perto de 40 subespécies de animais que tiveram origem neste canídeo de grande porte. O cão doméstico, ou Canis familiaris, a subespécie que tão bem conhecemos, começou a pisar a Terra há, pelo menos, 15 mil anos, tornando-se no primeiro animal que amansámos. A Federação Cinológica Internacional, sedeada na Bélgica, já reconheceu de forma definitiva 368 raças de cães, sendo que o português Cão de Gado Transmontano foi o último a entrar na lista, em fevereiro deste ano.
Pastorear o gado, ajudar na caça, servir de guarda ou apenas fazer companhia. A relação entre o cão doméstico e o Homo sapiens (a espécie humana) sempre foi muito próxima e diversa, existindo registos históricos que remontam à antiga Mesopotâmia, no Médio Oriente, região considerada o berço da civilização, onde estes canídeos também estavam conotados com a simbologia religiosa e mágica.
Todavia, perceber como é que esta relação a dois evoluiu ao longo de milénios, e quais os momentos em que cães e humanos seguiram caminhos iguais, é algo ainda envolto em mistério, assim como as duas maiores questões: quando e onde surgiram, pela primeira vez, os primeiros cães domésticos.
Nos últimos anos, surgiram investigações que tentaram ajudar a dar resposta, algumas com mais sucesso do que outras. Houve uma a afirmar que os cães foram domesticados duas vezes ao longo da história, primeiro na Ásia, há mais de 14 mil anos, sendo que um pequeno grupo migrou desse continente, mais tarde, para a Europa e Próximo Oriente, mas o estudo (de 2016) foi criticado por falta de evidências suficientes. Um outro, publicado em 2017, dá conta de vestígios destes animais numa remota ilha da Sibéria, os quais têm milhares de anos, mas nada se sabe sobre como e quando foram lá parar. Em 2018, uma pesquisa indicou que existem sinais deles na América que faziam remontar a sua presença, nesse continente, até há dez mil anos, só que estes cães desapareceram sem deixar um rasto genético.
Mais recentemente, a atenção recaiu sobre um estudo publicado a 30 de outubro na Science, apontado pela própria revista científica como “a mais abrangente comparação alguma vez feita de ADN antigo de cães e humanos”. Os cientistas envolvidos no estudo sequenciaram o genoma – o conjunto completo de genes existentes num organismo – de 27 cães de raças antigas, cujos vestígios foram encontradas em múltiplas localizações que estavam perto de sítios onde, pela mesma altura à dos cães, existiam humanos.
“Ao analisar estes genomas, em conjunto com outros genomas antigos e modernos de cães, os autores descobriram que os cães, provavelmente, tiveram origem numa população de lobos já extinta”, surge descrito no estudo. Além disso, “há cerca de onze mil anos, pelo menos cinco grandes linhagens ancestrais diversificaram-se, mostrando uma profunda história genética dos cães durante o Paleolítico”. Mais: “análises comparativas com os genomas humanos revelam aspetos da história dos cães que mimetizam as dos humanos” em diferentes geografias, incluindo a zona do leste de África banhada pelo Mar Mediterrâneo e as zonas da Europa onde a agricultura surgiu pela primeira vez.
Diversidade encontrada prova que os cães foram domesticados há mais de 11 mil anos
Greger Larson, um biólogo evolucionista da Universidade de Oxford, e Pontus Skoglund, paleogeneticista do Instituto Francis Crick, ambas as instituições do Reino Unido, perscrutaram o ADN de dois mil conjuntos de ossadas de Canis familiaris datadas de até há 11 mil anos. Foi desta forma que obtiveram 27 genomas antigos de raças de cães, aos quais acrescentaram outros cinco genomas que já tinham em arquivo. O passo seguinte passou por compará-los com os 17 genomas de seres humanos que viveram no mesmo período temporal e local geográfico dos cães estudados.
Se nos concentrarmos apenas no ADN dos canídeos, a equipa descobriu que há 11 mil anos já existiam cinco linhagens distintas de cães: no Próximo Oriente, no Norte da Europa, na Sibéria, na Nova Guiné e no continente Americano. Este nível de diversificação, por volta do período em causa, mostra, para os investigadores que conduziram a análise, que a domesticação de cães ocorreu muito antes de há 11 mil anos, conclusão que está em linha com descobertas arqueológicas encontradas na Alemanha, onde foram encontrados os vestígios mais antigos no mundo de Canis familiaris, de há entre 15 mil e 16 mil anos.
A título de curiosidade, há que referir que o grupo de Larson e Skoglund também encontrou pedaços do genoma antigo que ainda hoje são possíveis de encontrar em algumas raças modernas, tendo assim concluído, por exemplo, que parte da ancestralidade dos Chihuahuas remonta aos cães americanos, ou que os Huskies descendem em grande medida dos cães siberianos.
Humanos que migravam traziam os seus cães… e adotavam outras raças no novo lar
Uma das descobertas surpreendentes, ao comparar os genomas dos cães domésticos com o ADN antigo e moderno dos lobos, é que estes últimos ‘apanharam’ material genético dos primeiros, ao acasalarem, mas o mesmo não se passou no sentido contrário – o Canis familiaris não ganhou novo ADN ao acasalar com os lobos.
O motivo? Para os pesquisadores, a culpa é dos humanos, que apenas selecionavam (deixavam sobreviver) os cães que não evidenciavam comportamentos mais selvagens – traços que podiam ter por um dos seus progenitores ser um lobo –, pois isso era fundamental para ter cães que eram bons guardas, melhores companheiros de caça e amistosos para com o dono humano.
Por sua vez, quando se comparou o ADN dos canídeos domesticados com o humano, procurou-se construir a história genética que poderiam, ou não, ter em comum. Tal como resumiu Pontus Skoglund à revista Science, “é como se tivéssemos um texto antigo em duas línguas diferentes, e estamos a ver como é que as duas línguas mudaram ao longo do tempo”. Os resultados obtidos parecem não deixar dúvida que os humanos levavam os cães consigo para onde quer que migrassem. Na Suécia, por exemplo, os agricultores de há cinco mil anos e os seus companheiros de quatro patas têm uma ancestralidade comum que remonta ao Próximo Oriente. Ou seja, à medida que a agricultura se espalhava pelo continente europeu, os agricultores continuavam a levar os seus cães para novas paragens.
Não obstante, a história genética nem sempre coincide. Há sete mil anos, os agricultores na Alemanha, que também vieram do Próximo Oriente, já tinham cães que pareciam ter maiores similaridades com os ‘quatro patas’ que acompanhavam os caçadores-recolectores que vieram da Sibéria e de outras partes da Europa. Isto poderá querer dizer que muitas populações migrantes adotavam os cães locais quando chegavam a uma nova região, por estarem mais bem-adaptados a esse meio-ambiente.