Florbela Coroas da Costa trabalhou no desenvolvimento dos motores que controlam a inclinação das pás do helicóptero Ingenuity, o primeiro a sobrevoar Marte. Este engenho motorizado faz parte de uma missão especial da NASA que só deve terminar no início da próxima década e que pretende descobrir se há ou houve vida fora da Terra.
A portuguesa nascida em França, há 32 anos, tinha apenas 11 quando foi viver para Portugal, onde estudou em Águeda e se licenciou em Engenharia Aeronáutica na Universidade da Beira Interior, na Covilhã, tendo concluído o mestrado em 2011. Foi nesse ano que começou a trabalhar no Centro de Engenharia CEiiA, em Matosinhos, no desenvolvimento do KC-390 da Embraer. Em meados de 2017, mudou-se para Lucerna, na Suíça, onde trabalha na Maxon Group, como gestora técnica de projeto.
Foi nesta empresa que Florbela Costa ajudou a desenvolver o Ingenuity que está agora na atmosfera de Marte. Estivemos à conversa com ela.
Qual é o maior desafio quando se trabalha em projetos desta envergadura?
Diria que são os desafios técnicos do cliente, ou seja, ter a certeza que o nosso produto responde às especificações pedidas, seja em termos de potência, volume ou peso... O objetivo é tentar que todas as variáveis combinem com os requisitos exigidos e que seja um produto robusto. Tudo isso torna estes projetos muito complexos.
Isto porque as atmosferas onde estes equipamentos viajam são também altamente complexas.
Exatamente. Não é somente a atmosfera em Marte, mas também o transporte para Marte. Neste caso, os motores desenvolvidos para o Ingenuity sofrem imensas vibrações e choques durante a descolagem e aterragem em Marte e têm de sobreviver durante vários meses em vácuo. Em Marte, têm de resistir a vários ciclos de temperaturas negativas... Um equipamento normal não seria capaz de aguentar estes requisitos ambientais. Por isso, os motores que desenvolvemos têm de estar altamente reforçados para poderem trabalhar depois de sobreviver a todos os estes impactos.
"O estudo do espaço ajuda-nos a saber mais sobre o mundo e a entender melhor o nosso planeta"
O que é o Ingenuity e para que serve?
É o primeiro helicóptero enviado para Marte. É um helicóptero pequeno, com cerca de 50 cm de altura, 1,8kg e foi criado pela NASA para demonstrar que era possível ter um voo motorizado a partir de superfície de Marte. Isto já foi provado, porque já fez cinco voos a partir da superfície de Marte. A missão está a correr tão bem, que a NASA decidiu aumentar a missão do helicóptero para demonstrar que tipo de operações de voo de outras aeronaves poderão realizar em Marte. Vão prolongar a missão mais um mês e nesse período o helicóptero estará a ajudar o Perseverance, o robô, na exploração de Marte.
Como é ouvir este feedback da NASA?
É ótimo (risos). Ficámos muito contentes e orgulhosos por saber que o produto superou as expectativas.
Qual foi o seu papel no desenvolvimento do Ingenuity?
Fui gestora técnica de desenvolvimento dos seis motores que controlam as pás do helicóptero, ou seja, ajudam a guiar e a decidir a direção que o helicóptero deverá percorrer. Este foi o meu primeiro projeto aqui na Maxon Group, na Suíça.
O que são pás de motor?
O helicóptero tem quatro pás que criam a sustentação do helicóptero. O nosso motor não é o motor principal do helicóptero, que é de maior dimensão e que gera a propulsão do helicóptero. O que os nossos motores fazem é simplesmente movimentar o ângulo das pás, fazendo com que ele se mova para a esquerda ou para a direita, para cima ou para baixo.
Estamos a falar de tecnologia de ponta. Essa tecnologia é usada em aparelhos do dia a dia?
Não diretamente, mas todos estes avanços tecnológicos desencadeados no âmbito de projetos de exploração de Marte são depois reutilizados em outras indústrias, nomeadamente no setor médico, porque tal como a indústria aeroespacial, esta área também tem requisitos e padrões de exigência altos. No fundo, os benefícios da exploração de Marte estendem-se a outras áreas. O motor que desenvolvemos para Marte tem apenas 10 mm de diâmetro e a Maxon Group consegue fazer motores até 6 mm de diâmetro. Esses motores muito pequenos são usados na indústria médica. Uma das aplicações ocorre na diabetes. As bombas de insulina automáticas que algumas pessoas têm debaixo da pele usam este tipo de motores.
Quanto tempo se demora a desenvolver estes motores tão pequenos?
No caso do Ingenuity, demorou 14 meses, porque já tínhamos tecnologia de outros projetos que pudemos utilizar, mas varia muito do tipo de requisitos. Uma colega minha trabalhou noutro projeto relacionado com o Perseverance e nesse caso o desenvolvimento do produto demorou três anos.
Acompanhou o primeiro voo do Ingenuity?
Tanto na aterragem em Marte, como no primeiro voo, eu e toda a equipa que trabalhou nesses projetos acompanhámos ao vivo a transmissão da NASA. Foram dois momentos extremamente emocionantes. Tenho acompanhado os restantes voos através das notícias.
É praticamente um filho?
Sim, aliás eu costumo dizer que é o meu segundo filho. O primeiro foi o KC-390, no qual trabalhei em CEiiA durante cinco anos e meio.
O que distingue o Ingenuity de outros projetos de exploração espacial?
Este é importante por ser a primeira vez que é possível fazer voar algo a partir de uma superfície de outro planeta. É um efeito inédito. Não tínhamos a certeza se iria funcionar. A densidade do ar em Marte é tão baixa que não sabíamos se era possível gerar a propulsão e a sustentação da nave. Não tendo esse ar, foi um desafio muito grande. É isso que distingue este projeto e é por isso que há tanta atenção mediática. É um feito conseguir este feito na exploração espacial. Abre-nos muitas portas para conseguirmos uma exploração espacial mais rápida e obter mais informações sobre outros planetas.
Porque é importante obter essas informações?
O estudo do espaço ajuda-nos a saber mais sobre o mundo e a entender melhor o nosso planeta. Todos estes avanços tecnológicos no âmbito da exploração espacial são depois reutilizados noutras indústrias. Estas duas componentes são os fatores mais importantes neste tipo de projetos.
Pensa que estaremos mais próximo de uma expansão terrestre no Espaço?
Tudo indica que sim, que haverá humanos a viver fora da terra no futuro. Há projetos para enviar novamente humanos à Lua por volta de 2030 e criar lá uma base lunar, como preparação para a ida a Marte. Há projetos para ter humanos a pisar o solo marciano, mas ainda não há data prevista... Portanto, tudo indica que sim, que caminhamos na direção de vida humana fora da Terra.
Quando?
Espero estar viva quando a primeira pessoa pisar Marte e acho que isso vai acontecer.
E acha que há vida fora da Terra?
Essa é a grande pergunta à qual o Perseverance vai tentar dar resposta. Este robô é a primeira parte de uma missão de três partes. A primeira parte pretende recolher amostras de solo marciano através do Perseverance. A segunda missão está prevista para 2026 e pretende recolher essas amostras e enviá-las para a órbita de Marte. A terceira missão pretende recolher as amostras de Marte e trazê-las para a Terra. Isso não será antes de 2031. Isso quer dizer que vai demorar 10 anos até termos amostras do solo marciano aqui nos nossos laboratórios e realmente responder a essa pergunta: se há vida ou se houve vida em Marte. Se houve, provavelmente saberemos através de vestígios de microorganismos, uma vez que as amostras estão a ser retiradas de uma área onde se pensa ter havido um rio ou um lago. Portanto será aí que haverá maior probabilidade de encontrar vestígios de vida.
"Tal como outras pessoas, sou fascinada pelo facto de pôr algo a voar. Isso é um grande feito da engenharia conseguido há muitos anos"
O que a encanta na engenharia aeronáutica?
Desde pequena que sou fascinada pela aeronáutica e pelo espaço. Gostava muito de matemática e física e por isso foi fácil escolher Engenharia Aeronáutica. Tal como outras pessoas, sou fascinada pelo facto de pôr algo a voar. Isso é um grande feito da engenharia conseguido há muitos anos. Desde que me lembro que gostaria de participar no desenvolvimento deste tipo de produtos, sejam aviões ou componentes para o espaço e para a avião civil.
Quando era mais nova chegou a pensar em ir para a Força Aérea?
Sim, porque na altura, para mim, parecia-me o caminho que fazia mais sentido, porque para além de estudar engenharia aeronáutica, iria ter outra componente que era o treino militar e o treino físico. Para mim isso era a combinação ótima. Infelizmente não entrei. Só havia duas vagas e eu fiquei em quarto lugar. Hoje fico contente por não ter entrado, porque levou-me a percorrer este caminho.
E antes disso, sonhou ser astronauta?
Sim (risos). Esse era o sonho número um. Mas quando eu era ainda muito pequena, várias pessoas me disseram que não era possível porque não era norte-americana (risos). Havia essa ideia de que só os americanos é que podiam ser astronautas porque foram os primeiros a pisar a Lua. Na altura, desisti e nunca mais pensei no assunto.
Mas agora é portuguesa e está a colocar uma construção sua em Marte.
Sim, sim, pelo menos isso (risos).
Como chegou à Maxon Group?
Antes de me candidatar à Maxon Group, trabalhei cinco anos e meio em Matosinhos, no CEiiA, para o projeto do KC-390. No final era responsável de desenvolvimento do produto e responsável do projeto. Foi graças a esses conhecimentos que adquiri com a Embraer que me candidatei para este novo desafio. Candidatei-me para várias empresas em vários países e surgiu esta oportunidade. Foi uma oferta que encontrei entre outras.
Porque decidiu sair de Portugal?
Decidi sair para continuar o meu percurso nesta área.
Tenciona regressar?
Neste momento, não está nos meus planos, mas no futuro não quero dizer que não. Dependerá sempre das oportunidades que surgirem.
Em que outros projetos está a trabalhar na Maxon Group?
Já trabalhei em mais de 10 projetos diferentes na Maxon nestes quatro anos. Um dos projetos grandes em que tenho trabalho e que posso revelar, porque os outros ainda estão em segredo, é o International Berthing Docking Mechanism (IBDM). Estamos a desenvolver atuadores – que são dispositivos que movimentam cargas - para fazer a atracagem de naves espaciais na estação internacional espacial.
Nesse caso não é para a NASA?
Não, este projeto é com a Agência Espacial Europeia (ESA). Nós estamos a trabalhar nos motores e nas caixas de velocidades destes atuadores.
Vai ser o seu terceiro filho?
Sim (risos). E neste caso a dimensão é bastante diferente. O motor e a caixa de velocidades pesam dois quilos. Ou seja, são componentes bastante maiores que estas que desenvolvemos para a NASA.
Quais as diferenças entre Portugal e Suíça - boas e más - na cultura de trabalho?
Em Portugal as pessoas são mais abertas, mais dadas, e conversam mais facilmente. Aqui as pessoas são mais reservadas. Mas não me posso queixar em relação ao ambiente de trabalho. Fui muito bem recebida apesar de não falar alemão. Esse era um dos requisitos para entrar, por isso comprometi-me em estudar a aprender alemão. Mas quando cheguei não falava uma palavra. Tiveram muita paciência comigo, falam devagar e usavam o computador e o telefone para traduzir e para conseguirmos comunicar. A minha equipa é multicultural. Temos um chefe inglês, um colega alemão e uma outra colega que é suíça e norte-americana. Portanto, este ambiente multicultural e paritário do ponto de vista do género gera um ambiente de trabalho ótimo.
Do que sente saudades em Portugal?
Das pessoas que ficaram em Portugal, ou seja, da minha família e amigos. Mas sinto muita falta da comida. Sempre que vou a Portugal encho a barriga até não poder mais.