Melancolia em Tempos de Perturbação, de Joke J. Hermsen
A obra, publicada em 2017 (chegou a Portugal em 2022), está no topo das sugestões que lhe fazemos, talvez porque a filósofa neerlandesa soube, como poucos, oferecer uma visão e solução para que, mesmo imbuídos por um estado de melancolia (“esse sentimento tão característico da condição humana”), o possamos usar para navegar – através da criatividade, diferentes formas artísticas e com determinação – nas águas turvas de um novo e incerto mundo que está a formar-se. Todavia, no início do século XX a palavra “melancolia” passou a ser um sinónimo de “depressão”, levando à medicalização dos estados melancólicos. Atenção: a depressão é uma patologia que não pode ser negligenciada, e que, em muitos casos, requere terapia ou até medicação, só que, como alerta a autora, jamais pode ser misturada com o que pode ser um sentimento de “melancolia saudável”.
“Neste sentido estabelecerei, tal como Platão, uma diferença entre a melancolia patológica – alimentada, entre outras coisas, pelos tempos turbulentos em que vivemos – e uma melancolia saudável, que pode conduzir à reflexão, à compaixão e à criatividade. Ninguém perde sem dor um ente querido e ninguém deixa para trás, sem pesar, um ideal ou o que conseguiu com muito esforço, mas a questão é quando e por que motivo, em determinadas circunstâncias sociopolíticas, se começa a impor uma forma de melancolia em detrimento de outra, como parece estar a acontecer agora”, reflete Hermsen.
Onde tem origem a melancolia, questiona a filósofa. Eis uma das grandes questões que a mesma procura desenvolver e explicar-nos:
“Se admitirmos que os estados de espíritos melancólicos têm sido um fator mais ou menos constante na história da humanidade, devemos apontar como causa única a consciência da morte e do carácter transitório da vida, ou será possível identificar também algum tipo de perda como fator igualmente responsável. […] O que perdemos, por exemplo, na transição da infância para a idade adulta, e em que medida essa perda determina a nossa melancolia?”
Tenha calma, as 190 páginas do livro de Hermsen não se destinam a deixar o leitor ainda mais perdido em relação ao que sente. Com a ajuda do legado de ideias de vários pensadores, atuais e antigos, a filósofa mostra-nos como na melancolia está a esperança, um sentimento que pode catalisar uma humilde e rica aproximação ao nosso interior íntimo, e, também, a tudo o que nos cerca.
“Ser humano, para [o filósofo alemão Ernst] Bloch, significa avançar com determinação em direção a um sítio que ainda não se materializou e que, assim que nos aproximamos, volta a afastar-se de nós. Isto alimenta, naturalmente, a nossa melancolia, mas também cria o campo de tensão entre o possível, o dizível e o indizível, a melancolia e a esperança, uma tensão que não só devemos manter, mas também reafirmar, com o objetivo de pôr fim ao distanciamento relativamente a nós mesmos e aos outros, e poder gerar novidade. Só dentro desse campo de tensão podemos crescer, desenvolver-nos e sentir-nos parte do mundo e, por isso – que não é de somenos nestes tempos –, diferenciar-nos das coisas acabadas.”
Elogio da Lentidão, de Lamberto Maffei
“A palavra latina otium, à letra «ócio», é contraposta à palavra negotium, «negócio», entendida como atividade laboral. Ainda que ao longo do tempo a palavra se tenha tornado sinónimo de preguiça, de inércia, no entanto, o ócio nem sempre foi interpretado negativamente, e está muito menos associado aos piores vícios, dos quais seria inclusivamente o pai; era, ao invés, entendido como tempo livre para a reflexão, para o estudo, para o pensamento. Scholé, diziam os gregos, tempo de reflexão para falar com Sócrates e com a arte da maiêutica [método socrático onde se fazem e respondem a várias perguntas] para fazer emergir de nós mesmos as verdades escondidas.”
É desta forma, no capítulo inicial deste ensaio de 130 páginas, que o neurocientista e pensador italiano Lamberto Maffei começa o seu elogio ao pensamento lento, o qual, atualmente, parece estar em contraciclo com o que a sociedade (pelo menos a Ocidental) exige de nós, dos empregos que temos às tecnologias que usamos: tudo tem de ser rápido, porque vivemos tempos velozes, e quem não acompanhar o ritmo fica para trás, no pelotão dos vencidos.
Esta lógica não convence Maffei, quanto mais não seja porque passou grande parte da sua vida (tem quase 90 anos) a estudar o cérebro humano, ao mesmo tempo que deitava para o lixo muitos dos mitos que existem em torno da forma como este órgão opera – durante vários anos foi diretor do Instituto de Neurociências do Conselho Nacional de Investigação de Itália, assim como presidente da Academia Nacional dos Linces, considerada a mais antiga academia científica do mundo.
“Esquecemo-nos de que o cérebro é uma máquina lenta e este desejo de imitar as máquinas velozes criadas por nós torna-se fonte de angústia e de frustração, uma vez que, como escrevia Goethe, a felicidade suprema do pensador é sondar o sondável e venerar em paz o insondável”, diz.
Tal como explica neste livro, é verdade que “o cérebro humano possui mecanismos ancestrais rápidos de resposta ao ambiente, automáticos ou quase automáticos, mas também mecanismos mais lentos, que apareceram mais tarde”. E são, precisamente, esses processos mentais lentos que nos permitem elaborar reflexões, raciocínios, e, inclusive, duvidar e recordar (através da memória).
“Num mundo que corre vertiginosamente, com lógicas amiúde incompreensíveis, o problema da lentidão surge na mente com prepotência, como meta do pensamento e do caminho a percorrer. Andar mais rápido não significa conhecer mais do que aquilo que o caminho oferece e ninguém quer chegar antes do tempo ao fim do seu percurso”, acrescenta.
“Se a realidade presente significa correr para metas não claras ou, até, misteriosas, escrever tweets ou sms, saber de notícias através da televisão sem sequer ter tempo de verificar se a informação é verdadeira ou manipulada, então assalta-me o desejo de voltar para trás, de percorrer o tempo em sentido inverso, fugir de uma cultura centrada na rapidez da comunicação visual e voltar ao ritmo lento da linguagem falada e escrita.”
Meditações, de Marco Aurélio
Aceder aos pensamentos filosóficos mais íntimos do imperador romano Marco Aurélio, que governou no século II, é deambular pelos princípios que dão base ao Estoicismo, uma escola filosófica que defende que a renúncia às paixões, a autodisciplina, a aceitação daquilo que o mundo nos traz e a indiferença para com a dor e os reveses da vida, são o caminho para a felicidade humana.
Um breve contexto histórico. Durante as quase 20 décadas em que ocupou o lugar de líder máximo da maior potência (à altura) do mundo, Marco Aurélio enfrentou diversas disputas internas pelo poder imperial, raides de tribos germânicas às fronteiras situadas a leste e, pior, uma epidemia (a chamada Peste Antonina) que fustigou todo o mundo romano: durou 15 anos e, especula-se, poderá ter sido a causa da morte de Marco Aurélio, no ano de 180.
“Não organizes a vida como se tivesses dez mil anos para viver. O destino pende sobre ti. Enquanto vives, sê bom, enquanto ainda podes”, escreveu o imperador.
Provavelmente, nunca terá imaginado que as ideias que redigia apenas para si (para reler e recordar quando necessitasse) – em jeito de diário, sem nunca o ter mostrado a alguém ainda em vida –, fosse mais tarde descoberto e reunido num só tomo, tornando-se num clássico que ainda hoje é lido por muitos como um exemplo de resiliência em tempos de adversidade.
Dividido em 12 partes, estas Meditações surgem sob a forma de pensamentos fragmentados ou soltos, uma lista de máximas que, não obstante, seguem uma linha filosófica.
“Os homens procuram afastar-se para o campo, para a costa, para as montanhas. Também tu anseias frequentemente essas distrações, mas é, decerto, uma grande loucura, pois podes retirar-te para dentro de ti mesmo sempre que o desejares. Em lado algum pode o Homem encontrar um retiro mais tranquilo e sossegado do que na sua própria alma, principalmente quando tem no seu interior aquilo para que basta olhar para ficar imediatamente descansado. E o repouso, entendo eu, não é mais do que uma ordem perfeita na alma. Permite-te, pois, constantemente este retiro, para assim te renovares. Tem também à mão pensamentos breves e fundamentais, que prontamente possam surgir, suficientes para bloquear o clamor dissonante do mundo e para te enviar de volta, sem preocupações, à tarefa a que regressas.”
Pelo meio, alguns conselhos que, talvez, façam sentido para quem usa as redes sociais para destilar ódio e rancor: “Dentro de dez dias, se regressares aos cumprimentos dos princípios morais e ao culto da razão, parecerás um deus àqueles que hoje te consideram um animal selvagem ou um macaco”.
O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati
Umberto Eco, o famoso escritor, filósofo e linguista, definiu a obra de ficção do seu compatriota italiano como “um dos romances mais importantes da história da literatura mundial”. Foi publicado em 1940, mas é grande a probabilidade de muitos de nós nos revermos no protagonista, Giovanni Drogo, um jovem oficial enviado para a inóspita (e desnecessária) Fortaleza Bastiani, situada no limite de um deserto que, em tempos idos, pertenceu ao mítico povo tártaro.
Uma vez aí chegado, descobre que não há inimigos à espreita, que nada existe capaz de dar sentido à sua presença, ou à dos seus camaradas soldados, naquele local isolado: mas subsiste a obrigatoriedade, irracional, de cumprir rituais burocratizados e performativos, numa espécie de “faz de conta que é preciso”. Drogo depressa elabora planos para transferir-se da fortaleza, mas a natureza humana (o objeto de estudo de Dino Buzzati) leva-o a procrastinar, ano atrás de ano, incapaz de tomar decisões que alterariam a sua vida. Sobe na hierarquia militar, enverga novas fardas (de corte tosco) ajustadas aos postos que vai ocupando, mas nada verdadeiramente muda.
“Entretanto, o tempo passa a correr, a sua batida silenciosa marca, cada vez mais apressada, o compasso da vida; não pode parar nem por um instante, nem sequer para olhar para trás. 'Pára, pára!', apetece-nos gritar, mas percebemos que é inútil. Tudo se afasta a correr.”
O tempo vai-se consumindo, juventude e sonhos são devorados. Mas porquê? Para quê? E se tivéssemos decidido de outra forma? Porque não o fizemos?
A premonição de que aquele não era o seu lugar, desde o primeiro momento que se fez assinalar. Drogou sentiu-o nas vísceras.
“Parecia-lhe, a Fortaleza, um daqueles mundos desconhecidos aos quais nunca pensara a sério poder pertencer, não porque lhe parecessem odiosos, mas porque infinitamente distantes da sua vida habitual. Um mundo muito mais exigente, sem qualquer esplendor a não ser o das suas leis geométricas.”
Pobre Giovanni, porque não voltaste logo para trás, quando esse foi o teu primeiro instinto: “Oh, regressar”, gritaste tu para dentro antes de transpor as portas da fortaleza. Tarde demais.
O Homem que Passeava Livros, de Carsten Henn
“Percorreu a livraria a que ele chamava a sua casa. Procurava os livros chegados recentemente, que queriam encontrar o caminho para os seus clientes. Sentia-se como um colecionador de conchas na praia. E logo à primeira vista reparara em vários achados que só esperavam que alguém pegasse neles e os libertasse da areia. […] Aos 72 anos, era um homem magro, mas continuava a usar a sua roupa de sempre, apesar de lhe ficar demasiado grande. O seu antigo chefe afirmava que a sua aparência atual dava a ideia de que se alimentava exclusivamente das palavras dos seus livros, e que estas tinham poucos hidratos de carbono. Mas muita substância, retorquia sempre Carl.”
É com esta descrição que o escritor e jornalista Carsten Henn nos apresenta Carl Kollhof, um dos protagonistas do seu romance, o solitário livreiro que todos os dias, de mochila às costas, distribuí histórias sob a forma de páginas encadernadas até à porta dos seus clientes habituais: do “milionário recluso” à “jovem melancólica”, passando pela “última freira do convento”.
De cada vez que sai da livraria, “Carl dizia que ia fazer o seu giro, mas o percurso mais parecia um polígono pelo centro da cidade, sem ângulos retos, sem simetria”, é-nos contado. “O seu mundo terminava onde os restos da muralha da cidade eram esparsos, como as ruínas dos dentes de um ancião. Há 34 anos que não passava os seus limites, porque dentro deles encontrava tudo aquilo de que precisava para viver.”
Esta é a ilusão de Carl, como se depreende logo de início. A obra de Henn é um retrato de um mundo em que as livrarias e os livreiros procuram espaço de existência, apesar de terem o poder de nos alimentar a alma com a sua “comida”; uma época de solidão e isolamento, sejamos velhos ou novos; mas também onde se pode aprender, com persistência e candura, o que é a amizade e o amor; mas, acima de tudo, onde podemos reaprender a conectar-nos com os outros, pois só juntos conseguimos ir mais longe na exploração e cura da nossa alma, das nossas dores e perdas.
Tudo começa quando a pequena Schascha, do nada, interpela o velho vendedor de livros que tanta vez viu passar pela janela da rua:
“- Tu és o Passeador de Livros. É assim que te chamo.
- Carl suspirou. Se já me observas há muito tempo, sabes que ando sempre sozinha.
- Está bem, tu vais sozinho, e eu vou sozinha ao teu lado.
- Não – disse Carl – Isso não é possível.
Embora gostasse de crianças, não as compreendia. A sua própria infância era já tão remota que só se lembrava dela como polaroides desbotadas. E enquanto ele ficava cada vez mais velho, as crianças permaneciam crianças, o que aumentava mais e mais a distância entre ele e elas. Agora já não sabia como ultrapassar essa diferença. E deixou Schascha. No dia seguinte, Schascha estava novamente à sua espera. Começou por não dizer nada, limitando-se a caminhar ao seu lado e a observá-lo.”
Façamos esta simples e não inocente pergunta: quantas vezes caminhamos ao lado de uma pessoa, amiga ou não, e a observamos com cuidado, antes de começar a tecer palavreado sobre nós próprios ou colocar questões que de perspicaz têm pouco? Não é uma crítica, somente a observação de que há algo que podemos voltar a aprender com as crianças, uma simplicidade – uma ingenuidade positiva – que nos faz confiar em desconhecidos, e que se perdeu quando nos disseram que tínhamos de sair da infância, crescer e “lutar” contra outros por um lugar (muitas vezes solitário) no grande e complexo cosmos da vida.
A sinopse da obra faz a súmula perfeita do que se segue:
“Schascha começa a fazer perguntas: o que leva nessa mochila? Que histórias são essas? A quem se destinam? E começa ali uma inesperada relação. Ela, órfã de mãe, passa os dias sozinha, aborrece-se; ele vive preso a rotinas, envelhece. Juntos descobrem, nos passeios pela pequena cidade, um novo sentido para as suas vidas e para as vidas de quem visitam. E enquanto ambos arriscam um itinerário diferente, o horizonte carrega-se de nuvens cada vez mais pesadas e ameaçadoras. O Homem que Passeava Livros, de Carsten Henn, é um romance inesquecível sobre vidas que são transformadas pela magia dos livros.”