No centro da Via Láctea esconde-se um jardim zoológico de corpos celestes, ou, melhor dizendo, de objetos exóticos. Nuvens de gás a temperaturas que chegam aos milhões de graus Celsius, estrelas de neutrões que giram em torno de si a velocidades incríveis enquanto libertam feixes de energia, como se fossem faróis, anãs brancas do tamanho da Terra, mas com mesma massa do Sol e extremamente compactas, que conseguem sugar a matéria das estrelas de maior tamanho (mas menos densas) que lhes fazem companhia. E, bem no centro de tudo, na região a que se deu o nome de Sagitário A*, reside um monstro galáctico, na forma de um buraco negro supermaciço que tem quatro milhões de vezes a massa do Sol. Este Leviatã adormecido (está relativamente inativo, por agora) encontra-se a 26 mil anos-luz da Terra e tem um diâmetro de 60 milhões de quilómetros, e é tão importante que a sua descoberta valeu o Nobel da Física em 2020.
Toda esta coleção de objetos exóticos, situada em pleno coração do nosso sistema solar, produz radiação eletromagnética que pode ser detetada a partir do nosso planeta, ou recorrendo a telescópios espaciais, sinalizando os tipos de corpos que aí existem. O grande problema, para os curiosos e cientistas que perscrutam e estudam o centro da Via Láctea, são os gases e poeiras que existem pelo meio, dificultando a tarefa de descobrir e analisar o que por lá está.
Nas últimas décadas, vários instrumentos de observação astronómica têm conseguido furar essa barreira visual e dar-nos uma radiografia do que existe na região de Sagitário A* e arredores. Uma dessas máquinas complexas é a eRosita, capaz de detetar radiação na frequência dos raios X, sendo o principal instrumento de observação que está a bordo da sonda espacial russo-germânica Spektr-RG, enviada para o espaço em 2019.
As 1,2 toneladas do Spektr-RG orbitam um dos cinco Pontos Lagrange: batizados a partir do nome do matemático italiano Joseph-Louis de Lagrange, o qual descobriu que existem determinados pontos no espaço em que as forças gravitacionais de dois corpos se equilibram — acabam por se cancelar nesse lugar, dito de outra forma —, fazendo com que um objeto (natural ou artificial) aí posso ficar de forma estacionária. Neste caso, o telescópio eRosita foi colocado a girar em torno do Ponto de Lagrange 2 (o L2, como é mais conhecido), situado perto da órbita terrestre e ao longo da reta que une a Terra e o Sol.
O seu primeiro alvo foi o centro da Via Láctea, observando-o durante seis meses. Existia um bom motivo para este primeiro passo. Em 2010, o telescópio espacial Fermi, lançado pela NASA e equipado para detetar raios gama, captou dois ténues lóbulos sob a forma deste tipo de radiação: um por cima e o outro por baixo do centro galáctico, cada um esticando-se ao longo de 20 mil anos-luz. Um mistério empilhado sobre outro, pois já na década de 1950 tinha sido encontrada uma região, a norte de Sagitário A*, que emitia ondas de rádio. Muito se teorizou e especulou sobre o que estaria na origem destas radiações.
Finalmente, e em junho de 2020, a equipa de investigadores do eRosita consegue criar um detalhado mapa em raios X do núcleo da Via Láctea, embora os resultados e as conclusões só tenham sido publicados em dezembro desse ano, na revista Nature.
Ao prestarmos atenção à imagem obtida, salta logo à vista dois enormes lóbulos que brotam, a norte e a sul, do bojo (a região central) que caracteriza a galáxia em forma de espiral em que vivemos. Estas bolhas atingem uns impressionantes 45 mil anos-luz de altura, e os raios X que emitem devem-se ao gás que lhes dá forma, um gás cuja temperatura vai dos três milhões aos quatro milhões de graus Celsius. Quente, muito quente: a superfície visível do Sol, só para comparar, produz uma temperatura que ronda os 5,5 milhões de graus Celsius. Além do mais, as bolhas descobertas pelo telescópio eRosita estão a expandir-se a uma velocidade que varia entre os 300 e os 400 quilómetros por segundo, salientam os investigadores alemães e russos que divulgaram o estudo.
Quem acordou o comilão que está no centro da galáxia?
Os dados astronómicos não oferecem dúvidas. Houve uma enorme explosão há entre 15 milhões e 20 milhões de anos, “por volta da mesma altura em que as hienas e as doninhas estavam a surgir na Terra”, explica, em tom de brincadeira, a revista online Quanta Magazine, após ter entrevistado o astrofísico Peter Predehl, do Instituto Max Planck, na Alemanha, o principal autor do estudo. Para este investigador, que dedicou um quarto de século da sua vida a desenvolver o eRosita, parece não haver dúvidas sobre o que levou ao surgimento dos dois enormes e quentes lóbulos.
Para o despoletar, era preciso um fenómeno capaz de gerar uma energia tremenda, pelo que o principal suspeito, e após descartar outras hipóteses, com base no tipo de átomos que foram encontrados no gás — faltam átomos pesados em número suficiente para se dizer que o culpado foi uma série de estrelas que explodiram —, recaiu no buraco negro supermaciço que está no centro da galáxia.
Apesar de se mostrar pouco ou nada ativo, atualmente, basta que um corpo celeste de tamanho considerável passe perto dele para o despertar violentamente. Assim sendo, especula-se que, no passado, uma grande nuvem de gás se tenha aproximado em demasia do buraco negro que está em Sagitário A* e tenha operado como um interruptor que o ligou e tornou vorazmente ativo. Em suma, o buraco negro supermaciço, devido à sua tremenda força de gravidade (nada escapa de um buraco negro, se demasiado perto, nem sequer a luz) devorou metade da nuvem de gás, enquanto a energia da outra metade se espalhou por cima e por baixo do centro da Via Láctea, gerando as enormes bolhas captadas pelo detetor de raios X do eRosita, indica Peter Predehl.
Uma curiosidade. Se está a questionar-se sobre o motivo para a região de Sagitário A* ter um nome que inclui um asterisco, aponte o dedo a Robert Brown, um dos cientistas que revelou, em 1974, a descoberta de uma intensa fonte radiação, na frequência das ondas de rádio, vinda desse ponto no espaço. Foi preciso mais de um quarto de século até não haver dúvidas de que o sinal vinha de um buraco negro supermaciço. Entretanto, em 1982, Brown decidiu batizar a fonte de ondas de rádio e incluir um asterisco ao nome, pois era norma, na física atómica, anotar os átomos que estão num estado de alta energia com esse sinal gráfico: no seu entender, era uma boa analogia, tendo em conta a intensidade da radiação que encontrara. Se isto foi uma boa ideia, essa é outra história.