
Houve um tempo em que a diplomacia era a linha ténue entre o apocalipse e a sobrevivência. Hoje, arrisca-se a ser apenas o eco educado de um teatro onde já ninguém ouve, porque os motores dos tanques, os algoritmos do ódio e as narrativas do ressentimento falam mais alto.
Durante meio século, convencemo-nos de que a guerra era um episódio ultrapassado. Uma aberração do século XX e um erro histórico que o progresso trataria de arquivar. A Europa acreditou na paz como dogma, os Estados Unidos confiaram na dissuasão tecnológica e resto do mundo oscilou entre a sobrevivência e a resignação. A diplomacia, nesse intervalo, tornou-se um lugar de conforto: uma arte cortês, recheada de fórmulas e salamaleques, que substituía o confronto pela conversa e a ameaça pela ambiguidade calculada.
Mas hoje, em 2025, essa diplomacia encontra-se desarmada diante de um mundo que deixou de fingir que acredita nela. A Rússia invadiu. A China ameaça. O Irão testa. O Ocidente hesita. E a ONU observa, como quem assiste a um incêndio através de uma janela blindada.
Não se trata de um colapso repentino, mas sim de um declínio por cansaço. A diplomacia não falhou de um dia para o outro; foi-se esvaziando de significado à medida que se foi convencendo da sua própria retórica. Confundiu a ausência de guerra com a paz. Esqueceu-se de que a paz não é um estado natural, mas sim uma construção delicada, sustentada por força, vigilância e uma capacidade fria de perceber que nem todos os intervenientes desejam conversar.
Sun Tzu afirmava: “A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar.” No entanto, isso pressupõe preparação, disciplina e visão estratégica. Hoje, assistimos ao oposto, uma paz preguiçosa, baseada em automatismos diplomáticos, sustentada por economias que se habituaram a depender de agressores e por sociedades que vivem no conforto da ignorância voluntária.
O que falhou não foi apenas a diplomacia enquanto ferramenta. Falhou o seu suporte cultural, a capacidade de distinguir entre compromisso e cedência, entre contenção e cobardia, entre prudência e paralisia.
O Ocidente tornou-se, em parte, refém da sua própria superioridade moral. Partiu do princípio que deter a razão basta, supondo que os outros compreenderão, eventualmente, à luz da democracia ou do comércio. E, enquanto se distribuem notas de condenação, os que jogam com outras regras movem peças no tabuleiro. Uns com mísseis. Outros com mapas. Outros manipulando as massas através de redes sociais mais eficazes do que qualquer tratado.
Taiwan não é apenas uma ilha. É uma provocação estratégica em curso. A Ucrânia não é apenas um campo de batalha. É uma falha tectónica no conceito de segurança europeu. Gaza, Israel, o Irão – são espelhos estilhaçados onde se refletem todas as promessas quebradas da ordem internacional.
O que torna este tempo mais perigoso não é só a frequência dos conflitos, mas também a normalização do absurdo. A ideia de que a guerra pode ser contida, localizada ou higienizada. Como se fosse possível bombardear seletivamente os pilares da ordem global sem que esta entrasse em colapso. Como se o mundo não estivesse interligado em todos os aspetos: económico, digital e ideológico.
A questão já não é "onde falhou a diplomacia?", mas sim, será que ela ainda percebe o mundo que tem à sua frente? E, mais importante, terá autorização política e força moral para o enfrentar? A resposta possível não está na rendição, mas na reinvenção. A diplomacia precisa de reaprender a ser incómoda, mas também a ser eficaz. Para tal, são necessárias três mudanças fundamentais.
Em primeiro lugar, a diplomacia tem de ser respaldada por poder real. Sem capacidade de dissuasão, seja militar, económica ou tecnológica, a diplomacia não passa de protocolo. A negociação só funciona quando o outro lado sabe que a sua inação tem um preço. A razão moral, sozinha, nunca impediu a passagem de tanques.
Segundo, as estruturas multilaterais precisam de ser repensadas. A ONU tornou-se um espelho embaciado: reflete intenções, mas já não ilumina nada. A reforma do Conselho de Segurança é urgente, mas talvez não seja suficiente. Precisamos de mecanismos alternativos de legitimidade, regionais, flexíveis e rápidos, que substituam o impasse por ação coordenada.
Terceiro, a diplomacia precisa de sair do século XX. Ainda opera em modo analógico, enquanto os conflitos se movem à velocidade dos “cliques”. É necessário criar estruturas diplomáticas digitais, com capacidade de resposta em tempo real, que disputem as narrativas, combatam a desinformação e falem a linguagem do mundo atual. Isso implica formar uma nova geração de diplomatas que saibam lidar com tecnologia, redes, psicologia coletiva e geopolítica híbrida. Implica, sobretudo, lideranças políticas com visão estratégica e coragem moral, capazes de fazer o que é necessário, não apenas o que é consensual.
A paz não é o ponto de partida. Nunca o foi. É um equilíbrio instável, conquistado diariamente, num mundo onde a brutalidade continua à espreita. Se a diplomacia quer sobreviver, tem de deixar de pedir autorização para existir. Tem de voltar a ser o que era, o lugar onde se evitam guerras, não porque se confia na razão e boa-fé dos outros, mas porque se mostra que há consequências.
Tudo o resto são palavras. E as palavras, como já sabemos, não travam mísseis.