O artigo em seis pontos:
- A experiência da "língua dos sinais"
- A comunidade que usa a LGP e a sua importância
- As singularidades da Língua Gestual e as diferentes línguas pelo mundo
- A história: como começou a desenvolver-se esta língua?
- Os tradutores e intérpretes de LG: o impacto nos média, instituições e na comunidade
- O MEO quer que a música chegue a todos
“Levo ao mundo dos surdos e dos que ouvem aquilo que sou. A minha palavra e o meu coração. A minha vontade de comunicar, de unir os dois mundos. Do fundo da minha alma. Sou uma gaivota que ama o teatro, que ama a vida, que ama os dois mundos. O dos filhos do silêncio e o dos filhos do ruído. Que os sobrevoa e pousa em ambos com a mesma alegria.” Em 1993, aos 22 anos, a francesa Emmanuelle Laborit ofereceu ao mundo das letras o seu livro O Grito da Gaivota. No subtítulo da obra, hoje integrada no catálogo do Plano Nacional de Leitura português, expressa-se o manifesto que perpassa todo o discurso de Laborit: Biografia de uma Surda Profunda, do Berço ao Êxito nos Palcos do Teatro Francês. Nas páginas do seu livro, a premiada atriz, nascida em 1971, em Paris, surda de berço, relembra as suas memórias de infância e traça-nos uma vivida memória da aprendizagem da língua gestual.
De início, os seus pais não entendiam a razão para o seu silêncio. Contudo, quando uma porta se fechava ou alguém batia palmas, Emmanuelle prestava atenção. A criança sentia as vibrações no solo. Um dia, quando Laborit tinha sete anos, o seu pai ouviu alguém a falar da “língua dos sinais”. Na cidade de Vincennes a criança aprendeu a língua gestual. Ensinou-a à sua irmã e fez dela sua confidente. Emmanuelle ganhou uma identidade, uma “voz”, encontrou uma comunidade de falantes em silêncio, de gestos arquitetados numa gramática complexa, carregada de sentidos, uma língua processada através de gestos sistematizados e uma captação é visual. Uma língua que, tal como as línguas faladas, possui estrutura gramatical, cultura e identidade própria.
A língua gestual completa-se em si mesma, dispõe de recursos expressivos suficientes para permitir aos seus utilizadores expressarem-se sobre qualquer tema, em qualquer situação, domínio do conhecimento e esfera de atividade. Nos gestos tece-se poesia, contam-se histórias, discute-se filosofia, política, assuntos triviais. “Permite a expressão de qualquer conceito descritivo, emocional, racional, metafórico, concreto e abstrato”, escreveu a linguista brasileira Lucinda Ferreira Brito na obra Por Uma Gramática de Línguas de Sinais.
“Para mim, a língua gestual corresponde à voz, os meus olhos são os meus ouvidos. Sinceramente, não me falta nada. É a sociedade que me torna deficiente, que me torna dependente daqueles que ouvem: a necessidade de pedir a alguém que traduza uma conversa, a necessidade de pedir a alguém que telefone, a impossibilidade de contactar diretamente com o médico, precisar de legendas na televisão, tão raras em França”, enfatiza Emmanuelle no seu livro-manifesto.
Tal como para os ouvintes, a comunicação para as pessoas surdas é fundamental para uma vida plena, não só para o próprio, mas para todo o meio que o envolve. A afirmação é também enfatizada pela brasileira Karin Strobel, professora e investigadora de estudos surdos, no trabalho Surdos: Vestígios Culturais Não Registados na História: “O respeito à surdez significa considerar a pessoa surda como pertencente a uma comunidade minoritária com direito à língua e cultura própria.”
No nosso país, a Língua Gestual Portuguesa (LGP) é uma das três línguas oficialmente reconhecidas na Constituição, na revisão de 1997, nomeadamente na alínea h) do n.º 2 do artigo 74.º onde lemos: “na realização da política de ensino incumbe ao Estado (...) proteger e valorizar a língua gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades”. Anualmente, a 15 de novembro, comemora-se o Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa. Uma celebração que tem a sua origem nos esforços da Comissão Para o Reconhecimento e Proteção da Língua Gestual Portuguesa e Defesa dos Direitos das Pessoas Surdas.
“A língua gestual é absolutamente vital para nós”
Antes de enveredarmos pelo caminho da Língua Gestual Portuguesa, há que traçar o perfil da sua comunidade que preponderantemente a utiliza. De acordo com o último Censo da População, datado de 2021, estima-se que existam em Portugal cerca de 120.000 pessoas com algum grau de perda auditiva (um número que inclui os idosos com perda gradual de audição) e cerca de 30.000 surdos utilizadores nativos de língua gestual portuguesa (LGP), na sua maioria surdos severos e profundos.
Sublinhe-se que a LGP não é utilizada apenas pela comunidade surda, mas também pela comunidade envolvente, como familiares de surdos, educadores, professores, técnicos, entre outros. É disso exemplo a realidade vivida há mais de três décadas na casa de Maria Manuel Fróis: “A LGP é muito importante para as pessoas surdas pois é um ponto de contacto dos surdos com outros surdos e com os ouvintes, nomeadamente com a família.”
Maria Manuel é mãe de Rita Vieira Marques, atualmente com 33 anos. Uma meningite aos seis meses empurrou Rita para a surdez. “Quando chegou à idade escolar, a minha filha foi para um NACDA – Núcleo de Apoio às Crianças Deficientes Auditivas – que aplicava o método materno-reflexivo, baseado no ensino da oralidade, juntamente com o ensino de alguns gestos. Dou-lhe um exemplo de uma ferramenta que usávamos: um diário com desenhos, da vida da criança, feito pela própria criança ou com os pais e professores. O que estava na página do dia anterior servia para trabalhar o conceito abstrato do ‘ontem’, com o som da palavra e o respetivo gesto, assim como as outras palavras das coisas físicas”, confidencia Maria Manuel ao SAPO.
No seio familiar, como nos relata Maria Manuel Fróis, “acontecia aquilo que é comum a todas as línguas gestuais do mundo. Mantínhamos uma comunicação entre nós, um conjunto de sinais que nos era próprio. Naturalmente, este código era completado com a aprendizagem na escola, que obedecia a toda uma gramática da língua”.
O percurso escolar da Rita prosseguiu numa outra escola, “a Quinta de Marrocos onde havia a integração de pessoas surdas a partir do 5.º ano e, para algumas disciplinas, a presença de um intérprete de LGP”. De acordo com Maria Manuel Frois, “não era suficiente. A minha filha contava fora da escola com uma professora de apoio ouvinte, uma outra professora de apoio surda que lhe explicava as matérias, uma terapeuta da fala e uma professora de treino auditivo”.
Hoje, Rita é uma adulta integrada. Exerce a sua profissão na Suíça, viaja por todo o mundo. Sobre a integração escolar da crianças e jovens surdos, Maria Manuel Fróis sublinha a importância de contar com intérpretes para todas as disciplinas: “privilegiamos, por exemplo, a história e o português, em detrimento da matemática e das ciências, sem compreendermos que o ensino se faz como um todo”.
Em conversa com Rita Vieira Marques e com duas amigas, a Rafaela Soares e a Débora Pereira, percebemos-lhes o entusiasmo de terem uma língua comum em que os gestos, as expressões faciais e a intensidade do olhar acontecem de forma rápida, animada e espontânea e um certo desânimo por tão poucas pessoas fora da comunidade surda a saberem usar.
“A língua gestual é absolutamente vital para nós”, sublinham enfaticamente as três amigas”, e acrescentam: “em todas as situações, desde as mais óbvias e quotidianas - como fazer-nos entender em família, na escola, nas lojas, nos transportes, nos médicos, para fazer a carta de condução ou tirar um curso, no trabalho ou quando viajamos - a outras, mais esporádicas, mas que podem tornar-se verdadeiras crises e porem-nos em desvantagem - como lidar com um acidente de carro, explicar o sucedido à polícia, preencher em conjunto uma declaração amigável, fazer uma entrevista de emprego, ou explicar uma situação a um advogado”.
"Faço o símbolo da união. O lindo gesto que eu amo e que está nos cartazes dos Filhos do Silêncio. [...] Recomeço a fazer o gesto e de repente vejo uma pessoa, e depois outras, e por fim todo o público! De braços no ar, as mãos como borboletas, e os dedos polegares entrelaçados." Emmanuelle Laborit, a partir do livro O Grito da Gaivota.
Débora refere que na empresa onde trabalha, “quando há reuniões, chamam um intérprete de língua gestual, pois com pessoas sentadas à volta de uma mesa não é possível perceber o que estão a dizer e muitas vezes nem sequer quem está a falar. A sua empresa assume o custo de contratar o intérprete, mas na maior parte dos casos, isso não acontece”.
Ainda de acordo com Débora, “quando era pequena, primeiro aprendi a oralidade e não sabia língua gestual. Quando mudei de escola e aprendi LGP tudo passou a ser diferente. Ganhei a capacidade de aprender mais palavras e com isso passei a compreender tudo muito melhor, aumentei a minha capacidade criativa e a imaginação”.
Rita segue-lhe o raciocínio e afirma que tudo isso lhes traz “mais confiança para fazerem a sua vida autonomamente, em vez de evitarem certas situações com medo que corram mal, que possam ser embaraçosas ou que as pessoas não as compreendam. “Pois é", diz Rafaela, "se pensarmos que o nosso pensamento é feito com palavras, quanto mais palavras soubermos, melhor pensamos e até nisso a língua gestual é tão importante”.
“Devia haver mais intérpretes", dizem. "Há serviços de interpretação prestados por videochamada, mas são poucos e com um número reduzido de pessoas e é difícil ser-se atendido. Os intérpretes não fazem ‘só’ a tradução para gestos e palavras, eles podem também explicar o que se está a passar e explicar algumas palavras ou termos com que os surdos não estejam identificados. E é importante não só que haja mais intérpretes, que o seu trabalho seja valorizado, como também tornar fácil para a comunidade surda o acesso a esses serviços. Muitos surdos nunca chamaram um intérprete na vida e isso pô-los em desvantagem muitas vezes”, explicam.
Do que falamos quando nos referimos a um estado de surdez: “quando o indivíduo possui uma perda auditiva profunda, resultando daí uma forte escassez ou até perda total de audição. Este estado resulta de uma patologia orgânica do aparelho auditivo causando uma alteração sensorial”, escreve Pedro Daniel Vasconcelos Gomes Marques Lopes, da Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação – Universidade Europeia, no trabalho A Divulgação da Língua Gestual Portuguesa Através de Campanha Publicitária.
Pontos nos Is
O Dia Nacional da Língua Gestual Portuguesa é também a oportunidade para esclarecer e abalar preconceitos. Sobre a LGP também pende o desconhecimento. Desde logo, há que não confundir o “L” da sigla LGP (de Língua Gestual Portuguesa) com “linguagem”. Linguagem refere-se a qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais. Por exemplo, referimo-nos à linguagem das artes, digital, das flores, das cores, entre tantas outras. Língua, por seu turno, distingue-se por ser um sistema de representação constituído por palavras e por regras que as combinam em frases que indivíduos de uma comunidade linguística usam como meio de comunicação. E isto acontece no seio da comunidade de utilizadores da LGP. Aqui, os sinais não são meros gestos, antes símbolos arbitrários, legitimados e convencionados pelos falantes desta língua de sinais, assim como as palavras o são numa língua oral.
Ponto dois: não podemos confundir a LGP com um alfabeto Datilológico, ou alfabeto manual. Este trata-se de um código de representação das letras alfabéticas, cuja função é soletrar palavras das línguas orais.
Terceiro aspeto não menos importante: a língua gestual não é universal. “As várias línguas gestuais possuem gramáticas complexas e expressões ‘literárias’ diversas, tais como a poesia, as narrativas, o teatro e as anedotas”, sublinha o já citado Pedro Marques Lopes. Inclusivamente, no seio da comunidade de falantes da língua portuguesa, as línguas gestuais diferem entre si. Por exemplo, no Brasil designa-se de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), em Angola é LAS (Língua Angolana de Sinais), em Moçambique é LMS (Língua de Sinais Moçambicana). Vale-nos de exemplo a informação que recolhemos no site Ethnologue: Languages of the World: à escala global há mais de 140 línguas de gestuais. São línguas completas, com a sua própria gramática e léxico.
A língua gestual que atualmente é usada em Portugal recebeu influência, no século XIX, do Norte da Europa, em concreto da Suécia. Um estudo de 2020 publicado na revista Royal Society Open Science (Evolutionary Dynamics in the Dispersal of Sign Languages), sublinha a origem e evolução das várias versões de língua gestual na Europa. Os investigadores dão nota de cinco linhagens principais concluindo que, mesmo com ocasionais contactos, são marcadamente independentes umas das outras. “A evolução das línguas faladas é um assunto muito explorado pelos investigadores, mas, infelizmente, o mesmo não se pode dizer sobre as línguas gestuais. ‘Até ao momento, nenhum dos estudos publicados tentou usar dados de linguagem para inferir relações entre línguas gestuais em larga escala’, constatam os investigadores que assinam o artigo sobre as dinâmicas evolutivas na dispersão das línguas gestuais”, lemos em artigo publicado no jornal Público de 5 de fevereiro de 2020, assinado pela jornalista Andrea Cunha Freitas. A mesma peça acrescenta que “a principal conclusão do estudo é o desenvolvimento independente de cinco linhagens europeias de língua gestual: de origem austríaca, britânica, francesa, espanhola e sueca”.
Ponto quatro: a LGP, tal como as outras línguas gestuais, está em constante evolução. Servimo-nos das palavras da linguista Ana Mineiro, da Universidade Católica Portuguesa, no canal da RTP Ensina, a propósito da evolução da língua portuguesa: “as línguas desenvolvem-se em comunidade, desde que haja falantes e gestuantes. Morrem quando deixam de ser faladas ou utilizadas. Veja-se o latim, hoje entre as chamadas línguas mortas, usada por uma questão de aprendizagem da gramática. É claro que o latim foi evoluindo para outras línguas. Com a língua gestual acontece a mesma coisa, enquanto houver gestuantes, ela continuará o seu caminho. Hoje, é interessante verificar que há uma gestuação unimanual, com apenas uma mão, porque os utilizadores estão, por exemplo, ao telemóvel numa videochamada. É interessante ver como a tecnologia e a sociedade vão mudando as línguas. Os empréstimos de outras línguas também afetam as alterações gramaticais da língua”.
Acrescente-se que uma sociedade em acelerada mutação e dinâmicas implica a criação de novas palavras e conceitos. Há três anos foi preciso encontrar novos gestos para o acrónimo COVID-19. Sobre esta questão, refere a estudante de medicina Mariana Couto, no programa de televisão já referido: “há que criar gestos para termos técnicos. Tem de haver pessoas a trabalhar nessa área. Procurar juntar indivíduos da área da saúde e criar esses gestos. Também pela necessidade de informar os doentes”.
"Percebi enfim que tinha identidade. EU: Emmanuelle. Até então eu falava de mim como de uma outra pessoa, uma pessoa que não era 'eu'. Diziam sempre: 'A Emmanuelle é surda'. Era assim: 'Ela não te ouve, ela não te ouve'. Não havia 'eu'. Eu era 'ela'." Emmanuelle Laborit, a partir do livro O Grito da Gaivota.
Outra questão a não desmerecer prende-se com os regionalismos que encontramos na LGP. “Como é uma língua natural, a LGP possui variedades dialetais, socioletais, idioletais [uma variação de uma língua única a um indivíduo] e diafásicas [diferenças entre os tipos de modalidade expressiva. Ex. poesia, prosa]. As pessoas surdas que vivem em várias cidades do país (regionalismos), também se confrontam com variedades lexicais, duas palavras diferentes para o mesmo conceito dependendo da região (...) Verifica-se também que os gestos do sul tiveram uma influência forte e que expandiu pelo país, embora haja algumas diferenças devido ao regionalismo”, lemos no estudo Um Primeiro Passo Para a História da Língua Gestual Portuguesa: Perspetiva Diacrónica, trabalho assinado por Patrícia Santos e Isabel Correia da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto/Escola Superior de Educação de Coimbra.
“Embora sejam expressos por gestos, pelo movimento das mãos, do rosto, do corpo e da expressão facial, os componentes da língua gestual são essencialmente elementos manuais, ou seja, revelam-se pela produção motora das mãos. Podemos considerar três tipos de gestos: os icónicos, os referenciais e os arbitrários. Os primeiros, são representados através do delinear do objeto, ou pela configuração das mãos para representar o próprio objeto, atribuindo-lhe dimensão e forma, ou para representar uma ação sobre o objeto. Os gestos referenciais, são utilizados para representar todos os pronomes pessoais, partes do vestuário ou do corpo, e por último, os gestos arbitrários incluem todos aqueles que não apresentam qualquer relação direta com o conceito que representa”, destaca Pedro Daniel Vasconcelos Gomes Marques Lopes.
Pär Aron Borg e a LGP
O desenvolvimento de instituições educacionais para surdos, que começou durante o Iluminismo na Europa no final do século XVIII e início do século XIX, contribuiu para a formação de comunidades de sinais estáveis e para o surgimento de línguas de sinais convencionais (LSs) generalizadas. Desta forma, enveredar pela história da LG implica conhecer-lhe os antecedentes, aqueles que diretamente contribuíram para a sua afirmação, mas também perceber alguns dos entraves ao reconhecimento de uma língua no seio da comunidade surda.
Ainda no século XIX, o oralismo afirmou-se como um método de ensino para surdos defendido, entre outras personalidades, pelo inventor britânico, naturalizado norte-americano, Alexander Graham Bell. O oralismo constitui-se, durante décadas, a única forma aceitável de e para a comunicação de pessoas surdas.
Neste contexto, o Congresso de Milão de 1880, teve um impacto negativo para as línguas de sinais. A língua falada oralmente foi imposta às pessoas surdas. O oralismo, entendia-se então, devia constituir a única forma de ensino. Estas recomendações foram aceites pelas delegações alemã, italiana, francesa, inglesa, sueca e belga. Só o grupo americano se opôs. Dos 255 participantes, só um era surdo. Em consequência, as línguas de sinais foram banidas dos espaços escolares por cerca de 100 anos, particularmente na Europa.
Um passo atrás num caminho que vinha a ser trilhado desde o século XVIII por homens como o filantropo e educador francês Charles Michel de l’Épée que, em 1776, publica Institution des Sourds-muets par la Voie des Signes Méthodiques. Antes, abrira a primeira escola pública para surdos em Paris. Fê-lo em sua casa a expensas próprias. Era sua intenção que, em França, todos os surdos aprendessem a ler e a escrever. O projeto expandiu-se para os Estados Unidos e para o Brasil. Em 1776, inventou l’Épée os “signos metódicos”, baseados em gestos, que correspondiam à ideia das palavras, o que permitiu incorporar a gramática na comunicação manual.
Em 1807, o dinamarquês Peter A. Castberg fundou a primeira escola para crianças surdas na Dinamarca, onde utilizou o método francês. Já o francês Jean-Marc Itard publica em 1821 um tratado (Traité des Maladies de L'oreille et de L'audition) que sublinha a ideia de que a língua gestual é a língua natural dos surdos e pode proporcionar as mesmas vantagens da língua falada. E se tal não sucedia, devia-se a que os surdos viviam entre ouvintes e não na comunidade de surdos. Itard mantém que os surdos devem também aprender a expressar-se pela fala e a compreender a linguagem oral.
Em Portugal, no século XIX, D. João VI chamou o sueco Pär Aron Borg, fundador no seu país de um instituto para a educação de surdos, para gerir, no ano de 1823, a primeira escola portuguesa com essa valência. O alfabeto das línguas gestuais portuguesa e sueca, embora diferentes, contam desta forma com um tronco comum. O Instituto de Surdos-Mudos e Cegos, na Casa Pia de Lisboa, inaugurou com quatro alunos do sexo masculino e oito do sexo feminino, com idades entre os seis e os 14 anos.
"Acredito firmemente na possibilidade do diálogo entre os dois mundos, as duas culturas. Vivo com pessoas que ouvem, comunico com elas, vivo com surdos e ainda comunico melhor, é natural. Mas o esforço que é necessário fazer para se conseguir essa comunicação, somos sempre nós que o fazemos. Pelo menos é essa a minha impressão pessoal. Procuro ainda, obstinadamente, a união nessas relações. Gostaria de ver desaparecer a desconfiança. Mas não consigo." Emmanuelle Laborit, a partir do livro O Grito da Gaivota.
“Entre 1870 e 1877 foram abertas duas escolas em Lisboa e uma no Porto, pelo Padre Pedro Maria de Aguilar”, sublinha Andreia Salgadinho Machado, em Evolução da Língua Gestual Portuguesa e o Impacto no Quotidiano da Pessoa Surda, trabalho de mestrado integrado em medicina. A mesma fonte refere que “em 1913, o provedor da Casa Pia, António Aurélio da Costa Ferreira, promove um curso de especialização de dois anos para professores (...) Foram criadas várias instituições para a educação dos surdos, nomeadamente o Colégio de S. Francisco Sales em 1957, o Instituto de surdos de Bencanta em 1965, no Funchal, em Ponta delgada e no Porto em 1968 e o de Beja no ano seguinte (...) Só a partir de 1981 é que se investiu na formação profissional de surdos na área da LG (...) Mais tarde em 1995, dá se a criação da Comissão para o Reconhecimento e Proteção da LGP, que logo após um ano cria a declaração sobre a LGP, um dos documentos mais decisivos ao reconhecimento desta língua (...) À data de 1997, Maria Augusta Amaral e Raquel Delgado Martins realizaram um estudo na área da LGP, que veio a constituir o fundamento científico para o devido reconhecimento da mesma na Constituição da República Portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação”.
Em 1998, o Ministério da Educação criou as Unidades de Apoio Educativo a Alunos Surdos, fundando assim os princípios da educação Bilingue. “Porém, a etapa decisiva na educação de alunos surdos tem lugar apenas em 2008 com a criação de escolas de referência para a educação bilingue, que não só reconhece a LGP como primeira língua dos alunos surdos, como reconhece a língua portuguesa escrita e eventualmente falada como a sua segunda língua. Assume ainda uma política educativa que visa conceber condições para a igualdade de oportunidades no acesso ao currículo e no sucesso educativo, apostando no desenvolvimento linguístico cognitivo, emocional e social”, adianta Andreia Salgadinho Machado.
Também em 1988, o Parlamento Europeu reconheceu o uso da LG pelas pessoas surdas. “De entre as medidas apresentadas, destaca-se o apelo à abolição de quaisquer obstáculos ao uso desta e ao incentivo de programas de emprego direcionados a surdos (...) Relacionado com a prática da LG, dá-se o reconhecimento da profissão e da formação a tempo inteiro dos intérpretes de LG”, adianta Andreia Salgadinho Machado.
Os intérpretes de LGP
“Até ao fim da Idade Média, princípio da Idade Moderna, o facto de a maioria da população ser analfabeta e de haver uma economia fundamentalmente baseada na agricultura e em outras atividades essencialmente físicas facilitava a integração das pessoas surdas na sociedade, onde facilmente encontravam um lugar útil na estrutura das suas comunidades, tornando‑se produtivas. Os séculos XVII a XIX vieram alterar esta situação, com a Revolução Industrial e a consequente migração das populações para as cidades. O crescimento urbanístico e a nova conceção do trabalho vieram enfraquecer o papel das pessoas surdas na sociedade. É aqui que começam a surgir várias instituições de vocação religiosa, educativa, social ou de ajuda em geral, que procuram evitar o isolamento dos/as surdos/as, oferecendo‑lhes vários serviços. Deste modo, começam a surgir familiares de pessoas surdas, assumindo o papel de mediador/a entre estas e a comunidade ouvinte. Tratava‑se de um trabalho sem qualquer remuneração, que normalmente assumia um caráter assistencialista, muitas vezes de superproteção”, lemos no trabalho O/A Intérprete de Língua Gestual Portuguesa e o Voluntariado, assinado por Susana Barbosa, Teresa Martins, Vera Macedo e Ana Luísa Sousa, da Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto.
“No nosso país, durante muitos anos, a interpretação para pessoas surdas era uma tarefa desempenhada por pessoas que tinham alguns conhecimentos de LGP, normalmente familiares, amigos/as, colegas ou filhos/as de pais e mães surdos/as, em situações pontuais e sem cariz profissional. Este panorama foi evoluindo e até à publicação da Lei nº 89/99, com o objetivo de regulamentar a atividade do intérprete de LGP”, lemos no trabalho já citado.
Teresa Figueiredo e Sandra Faria, intérpretes de LGP, proprietárias da Handsvoice, empresa de Tradução e Interpretação de/para Língua Gestual Portuguesa, adiantam ao SAPO que “embora seja uma profissão que se tornou mediática com a COVID-19, não tem o reconhecimento que lhe é devido. Deparamo-nos diariamente com questões onde percebemos que ainda há um caminho a percorrer no que respeita a condições de trabalho. Isto, fruto do desconhecimento que existe em relação ao trabalho dos Intérpretes de LGP, e porque também a lei 89/99 que regula a nossa profissão continua a aguardar uma regulamentação específica. Por isso continuamos desprotegidos”. Uma atividade que Teresa Figueiredo e Sandra Faria sintetizam nas seguintes palavras: “A nossa profissão consiste em sermos um veículo de transmissão de informação de e para LGP. Para tal, é-nos exigido profissionalmente a licenciatura de três anos.” No que respeita à Handsvoice, a empresa “completou dez anos em junho de 2023. Neste percurso trabalhamos não só em televisão, como também contextos culturais, como visitas guiadas, teatros; assim como em contextos políticos, nomeadamente debates políticos, assembleias de câmara, Assembleia da República, entre outros”.
Entre as diferentes entidades que congregam os intérpretes de LGP, encontra-se a Associação de Tradutores e Intérpretes de LGP. De acordo com a sua presidente, Susana Barbosa, em declarações ao SAPO, a associação que dirige “conta com 120 associados de norte a sul do país e também das ilhas. Atuamos no sentido de se sentirem representados enquanto classe profissional. Há que recordar que não há sindicatos representativos da profissão”.
Na prática, a Associação de Tradutores e Intérpretes de LGP, “esclarece dúvidas relativas a questões profissionais, dinamiza todo um conjunto de atividades e formações junto dos associados, entre outras valências”, sublinha Susana Barbosa, que acrescenta: “de certa forma, equiparamo-nos a uma empresa prestadora de serviços. Fazemos a ponte entre os associados e um conjunto de entidades que procuram tradutores e intérpretes de língua gestual portuguesa. Em determinadas situações recorremos ao serviço de terceiros, para além da nossa bolsa de associados”.
"A minha mãe diz que a família se consolava com lugares-comuns: 'É surda, mas é tão bonitinha!'. 'E vai ser muito mais inteligente!'." Emmanuelle Laborit, a partir do livro O Grito da Gaivota.
Quanto aos referidos serviços, estes abarcam uma multiplicidade de áreas como nos relata a dirigente: “Dou-lhe alguns exemplos. Somos contactados para prestar apoio em entrevistas de emprego, reuniões com empresas, conferências nacionais e internacionais, espetáculos culturais, visitas a museus, televisão, atividades desportivas, aulas no ensino superior, exames de código, missas e casamentos”.
No que toca ao número de tradutores e intérpretes de LGP com curso superior no nosso país, Susana Monteiro recorre aos números que regularmente compila a partir dos dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência. “Nos anos de 2019/2020 há a assinalar 615 licenciados. Não quero com isto dizer que estejam no mercado de trabalho estritamente como tradutores e intérpretes de LGP. Podem, por exemplo, complementar esta valência com outras áreas como a terapia da fala ou a psicologia”.
Tema recorrente quando se fala da relação da pessoa surda com a sociedade, Susana Barbosa revela-se crítica das dinâmicas de inclusão: “muitas vezes as pessoas e instituições dizem que fazem inclusão e, verdadeiramente, não a estão a praticar. Não basta ter o intérprete, é preciso ter outros fatores a concorrer para a inclusão. Por exemplo, será que na televisão ter um ‘quadradinho’ com um intérprete de LGP é suficiente? Deixo a pergunta. Perante a Entidade Reguladora para a Comunicação Social - ERC cumpre-se a lei, mas será que se está a praticar a inclusão? Dou-lhe um outro exemplo: imagine dois pais surdos com um filho não surdo numa escola regular. Pense o que será uma reunião de avaliação sem acesso a um intérprete de LGP. Estes pais não estão incluídos no contexto da escola”.
Terminemos como começámos, com as palavras sentidas e esclarecidas de Emmanuelle Laborit: “Pertenço a uma comunidade, tenho uma verdadeira identidade. Tenho compatriotas. [...] Agora sei o que fazer. Faço como eles, uma vez que sou surda como eles. Vou estudar, trabalhar, viver, falar, pois eles fazem-no também! Vou ser feliz, pois eles também o são”.