Lá para dezembro verifiquem por favor se as pessoas que se comprometeram a ler 30 ou 40 livros ao longo do ano estão bem. Custa imaginar alguém a falhar o objetivo literário. (O horror de ler apenas 20 livros em 2025!) Todos sabem que o gosto pela leitura se mede pelo número de livros que um leitor consome num determinado período – e que nada mais revela.

A leitura tornou-se num jogo e é dos competitivos. A sua gamificação é real e espera-se que se intensifique, porque convoca constantemente novos leitores, que aparentemente têm mais satisfação em superar os seus próprios números do que em ler um livro sem pressas ou pressões, apenas pelo prazer da leitura, que se quer bem demorado.

Ler deve descansar e não é obrigatoriamente um jogo. Trata-se de uma atividade quase sempre lúdica, que obedece a costumes muito próprios, muitas vezes inaplicáveis a outros passatempos. A perspetiva de acabar o ano com 30 ou 40 livros lidos é maravilhosa, mas a ideia de esses 30 ou 40 livros resultarem de uma obrigação autoimposta é – e permitam-me a tomada de posição – uma grandessíssima chatice: decorre de uma obsessão que, por sua vez, gera uma obrigação contínua, que pesa durante a leitura e que incomoda o leitor que lê para estar verdadeiramente despreocupado.

De qualquer modo, cada um sabe de si, da sua vida e da forma como gere a sua biblioteca pessoal. As metas compreendem-se. São úteis porque situam quem as define no tempo (essencialmente) e no espaço. Acho apenas que não se dão bem com a leitura – e em especial com o leitor que já tem capacidade e disponibilidade para ler três ou quatro dezenas de livros. Talvez ajudem mais o leitor que ainda não é leitor mas quer muito ser.

A leitura é um processo longo e plácido que não merece contactar com forças exteriores potencialmente nefastas que enfraquecem o poder dos livros. A obrigatoriedade de ler um determinado número de livros rouba o protagonismo ao livro lido no presente. O leitor lê para neutralizar o tempo – ele pega num livro e brinca com o tempo, fazendo com que ele avance ou pare a ritmos imprevisíveis, produto do génio do autor.

O bom leitor é (ou deve ser) fiel ao livro que lê. Falha se, enquanto lê um, pensa noutro só porque há objetivos numéricos para cumprir. Mas há leitores que fazem da leitura, trabalho – e são tantos os que estão bem com isso, como se os livros pudessem ser analisados a partir de KPI’s. Não podem. Os livros merecem mais e melhor. Os livros pedem compromissos genuínos que se fundem num tipo de amor muito especial.

Todo o livro escolhido merece a atenção absoluta de quem o lê, mesmo que seja ou venha a ser um suplício. Nenhum leitor tem legitimidade para deturpar as leis da leitura, cuja essência tem mesmo de ser preservada e protegida do leitor que come livros, não porque está esfomeado, mas porque tem mais olhos do que barriga.

Falaremos quando o ano acabar. Mantenham-se atentos. Vai ser interessante perceber quantos ensinamentos reveladores e quantas novas perspetivas é que o leitor – que confunde a leitura com a maratona – interiorizou. Quem lê 30 ou 40 livros num ano terá muito para contar. Há-de ficar alguma coisa na cabeça. Ou então o número de livros interessa apenas para o Goodreads, a rede que gosta tanto de empreender desafios de leitura.

Não é certo que a informação fique na cabeça, mas é certo que fica no telemóvel. Esta é uma coisa muito nossa: consumimos sem pensar no que consumimos e com o objetivo, pouco ponderado, de partilhar os nossos dados no digital. E não se trata de um comportamento que se dá apenas com a leitura. Da mesma forma que esta geração lê, também vê filmes e define quilómetros que têm de ser feitos sim ou sim. Ao fim do dia, o Goodreads, o Letterboxd e o Strava são a mesma aplicação – dependem da obsessão una que geram no espírito dos utilizadores que revelam ser um pouco de tudo: leitores, cinéfilos e corredores.

Lêem, vêem filmes e correm porque traçam objetivos. Nem lhes apetece muito, mas, já que está toda a gente a fazer o mesmo, siga. Quase literalmente, «à conta dos telemóveis», tudo é um jogo e todos são jogadores. Este instante da era digital está a fazer com que a competição seja a base da ação. Ela sabe ser saudável, mas tem-se mostrado capaz de espezinhar o propósito dos tempos livres e, em particular, dos livros. Para quê tanta pressa? Devíamos todos parar por um pouco e pegar num livro. Os livros não se vão embora e estão sempre à nossa espera. São calmos. São muito melhores do que quem os lê.