“Deaf Sentence” é um romance sobre a surdez, tema que lhe é familiar.
Sim. Para mim, não é um grande problema. Tenho um aparelho caro que me ajuda, mas em ambientes muito barulhentos pode tornar-se difícil ouvir. É uma condição comum, e está a tornar-se pior, com os níveis de ruído a que os jovens hoje se expõem.
O seu livro também explora o lado cómico do assunto.
Sim. Há uma espécie de slogan que o atravessa: a cegueira é trágica, a surdez cómica. As pessoas acham os surdos engraçados, porque eles cometem erros tontos, trocadilhos não intencionais — como o próprio deaf sentence (jogo de palavras com death sentence, sentença de morte; deaf significa surdo). Já a cegueira é sempre associada com tragédia na literatura. Édipo. Gloucester, no “Rei Lear”. Ficar sem olhos é um destino terrível.
Quando escreve ficção, põe sempre um elemento de comédia?
Acho que sim. Escrevi alguns romances que podem ser descritos como cómicos, que foram concebidos para serem continuamente divertidos, como “Changing Places”, “Small World”... Quando escrevemos esse tipo de livro, podemos usar bastante a coincidência. As pessoas não colocam objeções, porque desfrutam da comédia. Mas quando se escreve um livro sério a comédia tem de ser mais subtil. “Deaf Sentence” é sobre um homem que sofre, profissionalmente e não só, mas contém episódios cómicos. Acho que os leitores surdos acharam um alívio... Bom, não os profundamente surdos. Esses não gostaram realmente do livro, pois têm uma atitude diferente em relação à surdez. Dizem que não é uma tragédia, não é uma doença terrível, e são muito positivos em relação à sua capacidade para funcionar. Muitos vivem com pessoas que têm a doença ao mesmo nível. O meu romance é sobre um fenómeno muito mais comum. Pessoas que já tiveram uma audição perfeita e a foram perdendo gradualmente. O facto de recordarmos quando podíamos ouvir perfeitamente gera um tipo diferente de ansiedade. Causa tristeza. Quando se nasce surdo, nunca se conheceu outra forma de viver. Não se tem pena de si próprio.
Não houve um processo de sucessivas derrotas físicas, por assim dizer.
Atinge um ponto absurdo, acho eu, quando algumas pessoas, ao recorrerem à inseminação artificial para terem filhos, escolhem ter crianças surdas. Uma criança totalmente surda, para fazer parte da sua comunidade. O que é moralmente problemático.
Acha que essa diferença de atitude entre quem sempre teve uma limitação e quem passou a tê-la se estende a outras áreas da vida?
Nunca tinha pensado nisso. Suponho que sim. Se sempre fomos saudáveis e de repente tivermos um ataque cardíaco ou uma trombose, vamos recordar como éramos antes. Já as crianças que nasceram com uma deficiência, por exemplo, não parecem ter o mesmo tipo de ressentimento. Depende do que for afetado. Se alguém tiver um cérebro que continue a funcionar bem mas o corpo ficar paralisado, é terrível. O pior de tudo é aquela situação em que não se consegue mexer absolutamente nada. Ver e ouvir os outros, mas não poder responder. É um pesadelo.
Falando agora do seu último livro. É uma autobiografia que vai até aos seus 40 anos. Disse que a escreveu neste momento porque não tinha uma ideia para um romance e então resolveu explorar a sua vida. Parece uma explicação muito simples.
Bem, há outras razões. Estou com 81 anos. Era melhor escrevê-la enquanto a memória ainda está boa. Ela tende a decair com a idade. E, afinal, já estou bem entrado na velhice. Não sei quanto tempo mais vou andar por cá. As pessoas vivem cada vez mais tempo, mas não estou particularmente interessado nisso. Não quero chegar aos 100 anos. Achei que era a altura de a escrever. Pôr em papel a minha própria ideia da vida que tive. Não dar a outra pessoa a oportunidade de escrever a minha primeira biografia [risos]. Suponho que existe aí alguma vaidade. Gostava de escrever outro romance, e vou tirando notas. Falta relacionar os pedaços uns com os outros de um modo que eu veja que funciona. Escrever ficção tornou-se mais difícil para mim, como para muitas pessoas.
Porquê?
Ficamos com mais dúvidas sobre as nossas capacidades. E, de certa forma, começamos a desconfiar da ficção. Confiamos mais nos factos quando ficamos velhos. Não leio tantos romances como costumava. Leio mais livros de não ficção. Isto é uma tendência geral. Quando são romances, releio mais do que leio. A vida criativa é finita.
Martin Amis, julgo, disse que os grandes livros são escritos até aos 50.
Até aos 60... Ele pode ter dito os grandes livros, sim. Mas agora, que ele próprio está nos 60, já não diz isso tantas vezes [risos].
Deu exemplos como Tolstoi...
Bem, Tolstoi é uma das exceções, um fenómeno extraordinário. Não há ninguém como ele. A maioria dos escritores não é assim. Isso tem a ver com o declínio de poder do cérebro, que está continuamente a perder células, e perde-as a um ritmo mais acelerado à medida que envelhecemos. No meu caso, noto que não tenho a mesma capacidade metafórica para relacionar coisas. É um dos efeitos básicos da poesia e da boa prosa: fazer ver coisas familiares como se fossem novas. Para isso, requer-se um estado de espírito que veja semelhanças ou diferenças interessantes. Os grandes escritores conseguem fazê-lo. Shakespeare talvez mais do que todos os outros. Também é estrutural. Escrever uma história é estabelecer conexões, uma cadeia de eventos. Vejo que isso não é tão forte na minha escrita como antes. E há o estilo verbal metafórico. O meu primeiro romance, iniciado quando eu tinha 21 anos e publicado aos 25, está cheio de símiles e metáforas. Já não os gero como antes. Era jovem, via o mundo pela primeira vez.
O que é que a ficção faz por nós? Sei que é uma questão muito ampla.
Para a maioria das pessoas, literatura significa ficção. Pouca gente lê poesia. O romance, mais do que qualquer outra forma, representa a experiência do ponto de vista de certos personagens. Representa o mundo através da consciência de alguém. É a única forma que temos de tentar perceber como outras pessoas pensam. Claro, os romancistas tentam adivinhar. Se escrevo um romance sobre Henry James, não sei o que ele estava de facto a pensar num certo momento, mas posso fazer uma boa estimativa depois de ler os seus romances e as suas cartas, bem como as descrições que outras pessoas faziam dele. Posso imaginar o que pensaria numa determinada situação. Desde o fim do século XVIII, a consciência foi-se tornando central no romance. Os romances continuam a descrever eventos externos, batalhas, duelos, casamentos e por aí fora, mas há uma técnica chamada discurso indireto livre que combina a descrição do narrador com palavras que pertencem à consciência do personagem ou que ele usaria. Temos, portanto, uma dupla perspetiva. Vemos o mundo pelos olhos dele. Acho que é esse o motivo por que as pessoas leem ficção. Para terem a experiência de saírem delas próprias e de verem como é outro mundo.
Escreveu um romance inteiro sobre a questão da consciência. Na altura, estava a estudar o assunto.
Sim, a inteligência artificial. Pareceu-me bom material para ficção. Usei-o de modo a que houvesse um debate, entre um romancista e um cientista cognitivo, sobre se era possível descrever a consciência. Foi muito instrutivo para mim. Quando comecei, não sabia nada sobre inteligência artificial. Aprendi um pouco. Mas não acho que a ciência cognitiva alguma vez explique por completo o fenómeno da consciência. Há filósofos que dizem taxativamente que não. É como a existência do Universo.
Aquilo que aprendeu ajudou-o a melhorar a sua perceção da consciência dos personagens?
Não é assim que funciona. Eu confio na minha intuição como ser humano. Dependo da minha própria consciência para conseguir imaginar como a pessoa reagiria, como veria isto ou aquilo. Mas todos procuramos evitar clichés, queremos sempre descobrir novas formas de descrever aquilo que já foi descrito milhares de vezes. Para que pareça a vida única de uma pessoa única. E isso é mais difícil de fazer à medida que envelhecemos.
Entrevista publicada originalmente a 22 de outubro de 2016