Contar a história da cozinha tradicional da Madeira não está ao alcance de todos. Uma das exceções é o chef Octávio Freitas, que, na cozinha do Desarma, restaurante instalado no topo do hotel The Views Baía, localizado no Funchal, trabalha os usos e costumes dos madeirenses, com técnicas de secagem de peixe ancestrais e “produto de proximidade”. Enquanto os fumados estão à vista de todos, vinagres e fermentados são objeto de experiências constantes. Sem esquecer a Laurissilva. Tudo cabe nos menus desenhados, ora para a cozinha, sob a designação “Bancada do Chef”, de 12 momentos, ora para a sala, com os nomes “A Batalha do Chef” e “Munidos de Sentido”, com, respetivamente, nove e seis momentos. Recorde-se que o restaurante conquistou uma estrela Michelin na primeira gala exclusivamente portuguesa em fevereiro.
“Tenho um orgulho enorme da terra onde nasci, do legado que recebi. Por isso, sinto que tenho de devolver à cozinha o que ela me deu”, sublinha Octávio Freitas. A começar pelo amuse-bouche com vieira. Este tem a pota e grande plano. É submetida à secagem na cozinha do Desarma, “para fazer o torresmo da pota para este amuse-bouche”, à semelhança do que se faz em Câmara de Lobos, “onde abrem e metem a pota a secar num estendal. É esfregada com alho e pimenta e servida como petisco”, descreve o chef.
Da Laurissilva, a floresta indígena da Madeira, uma “Relíquia do Terciário”, que remonta há cerca de 20 milhões de anos, e que faz parte da identidade do Desarma, é de enaltecer o “Atum curado, folha de louro e alho assado”. Este snack marca o início do menu “Bancada do Chef” e é inspirado na espetada regional. Mas, ao invés da carne de novilho, Octávio Freitas opta pelo “atum curado e, depois, fumado com louro. Porquê o louro? Porque o louro representa a identidade da Madeira”. Ou não fosse o loureiro uma das árvores endémicas da referida floresta, sobre a qual o chef do Desarma quer “fazer um trabalho de investigação, para partilhar”.
“Ovas de espada, miga de centeio, molho vilhão” é, de acordo com Octávio Freitas, uma inspiração da sandes de espada, servida nas tascas espalhadas pela ilha da Madeira. Trata-se de um dos snacks do “Encontro”, o segundo momento do menu “Bancada do Chef” do Desarma. Na composição, contém “ovas de espada e é encimado com molho vilão”. Este último é muito comum nas cozinhas dos madeirenses, em que o vinho branco e o vinagre vínico são as estrelas.
“A gastronomia típica está nos bares, nas festas e, muitas vezes nas casas das pessoas”, reforça o cozinheiro, que lembra os parcos recursos de muitas famílias madeirenses aquando da apresentação do “Pão de trigos ancestrais” do menu “Bancada do Chef”. Neste momento, é servido um “caracol de cebola caramelizada, banha de porco e redução de cebola”. O objetivo é retratar esta realidade de outros tempos, quando “mergulhavam a fatia de pão no molho da cozedura da carne” e a banha era comummente “usada para barrar o pão”.
Charcutaria marítima
Para complementar este momento de bem comer, é servida a “Charcutaria marítima”. A título de exemplo, Octávio Freitas aproveita a barriga e a gelatina das cabeças do cherne para confecionar enchidos. “É uma das formas de rentabilizar os produtos no Desarma”, justifica. Esta ação entra na linha dos fumados. “Desde os 18 anos que pratico esta tarefa e sempre fiz os meus fumados. No Desarma, comecei a explorar mais esta técnica, a aplicar a secagem em fumeiro tradicional e em câmara de temperatura controlada.” Basta olhar para o fundo da cozinha, para se perceber que a prática do fumeiro é permanente.
Este tema “está associado a uma crise muito antiga na Madeira”, que determinou a opção de secar o peixe. O gaiado seco é um desses exemplos e continua a ser servido em restaurantes tradicionais, sobretudo do Caniçal, localizado na costa este da ilha. “Há uma grande influência dos peixes secos na alimentação dos madeirenses, embora nunca fosse uma bandeira da gastronomia da Madeira”, afirma, dando como exemplo a proibição da captura da gata ou sapata, ou “bacalhau de Câmara de Lobos”, que era vendido seco. Ou a própria pota seca, atrás referida.
As histórias sobre a ilha da Madeira são infindáveis, desde as lapas secas, usadas no trio do “Encontro” do menu “Bancada do Chef”, que retratam um episódio real, “para serem transportadas para fora da Madeira pelos madeirenses que tinham familiares longe da ilha”, nas palavras de Octávio Freitas, à proliferação das trutas pelo território madeirense. “Salazar queria que houvesse peixe em todo o lado, daí a distribuição de ovas deste peixe por toda a ilha”, conta o chef.
O vinagre e o vinho
Já os vinagres são objeto de estudo no “quarto de brinquedos” e muito usados nos pickles feitos no Desarma. Eis o espaço de ensaios de Octávio Freitas no premiado restaurante do hotel The Views Baía, de onde saem os vinagres. “Fiz cinco. É uma parte muito interessante da minha cozinha, para conseguir o equilíbrio da acidez e da frescura no menu. Os legumes são submetidos a água e sal, e o processo de conservação é natural.” Faz igualmente kombuchas. “Deixo envelhecer durante alguns meses e, depois, faço vinagres e até já adicionei no fermento caseiro utilizado no pão do Desarma”, sendo este produzido a partir de farinhas da ilha da Madeira.
“Mas, atenção, a acidez não é marcada nos meus pratos, é apenas para conseguir o equilíbrio com os outros produtos no prato”, adverte o cozinheiro madeirense. É disso exemplo o “Salmonete, cenoura, especiarias, mostarda antiga”, em que aquele tubérculo é servido em várias texturas e confere um toque suave de acidez no prato. Mas o chef quer ir mais longe. “Pedi ao meu fornecedor para apanhar as cenouras mais cedo. Em alguns casos, ter legumes mais verdes, para obter a acidez de uma forma natural e equilibrar a quantidade de açúcares”, esclarece.
“A alquimia dos vinhos veio ajudar-me nesta questão do equilíbrio”, afirma na qualidade de produtor de vinhos, isto é, sob a insígnia Octávio Freitas Winery. A uva é vindimada nas vinhas localizadas “mais a sul de Portugal continental”, enfatiza, referindo-se ao Socalco Nature Calheta, espaço de turismo rural fundado em 2020. Galatrixa é o nome atribuído ao primeiro rótulo, um branco de 2021 feito a partir de três castas típicas da Madeira: Verdelho, Malvasia Fina e Terrantez. “O vinho é produzido na Adega de São Vicente e o enólogo é João Pedro Machado”, informa. à prova está o Galatrixa branco 2022.
Em 2022 estreia a produção do Cagarra branco feito a partir das castas Sercial e Verdelho. Estas são provenientes “de uma vinha nos Prazeres, localizada a 700 metros de altitude”, afirma. Nas novidades, constam o Massaroco, rótulo de um rosé e de um clarete de 2023. Ambos são feitos a partir de Tinta Negra, vindimada numa vinha em latada, localizada em São Vicente, concelho situado na costa norte da ilha da Madeira, e Merlot, e estiveram este sábado, 28 de setembro, à mesa da Martin Boutique Wines Farmhouse (Rua de São Torcato, 19, Quinta da Palmeira Branca, Coruche. Tel. 911130173), quinta do escanção Pedro Martin.
Clarete e espumante
Para 2025, na Calheta, apontam-se mais novidades na produção vínica: um clarete e um espumante. Quanto ao restaurante Desarma (The Views Baía, Rua das Maravilhas, 74, Funchal. Tel. 291700220), destaque-se ainda a carta de vinhos “Sem Medos”. Composta por mais uma centena de vinhos Madeira, como o Cossart Gordon Bual 1958 ou o Cossart Gordon Verdelho 1975, ou o ABSL Sercial 1980, selecionado para fazer uma harmonização de truz com o “Salmonete, cenoura, especiarias, mostarda antiga”. Todas as referências, incluindo as dos vinhos tranquilos, são apresentadas com rigor pelo escanção João Barbosa neste restaurante que promete!