Fábricas a fechar, vendas e resultados a cair, despedimentos em massa. As construtoras automóveis vivem momentos difíceis, quando têm biliões investidos na transição energética imposta pela agenda europeia, que quer acabar, já em 2035, com a produção de qualquer carro que se mova a combustão. E se Portugal ainda não está a sentir em pleno os efeitos, não faltará muito para as ondas de choque aqui embaterem.

À frente da maior associação do setor automóvel em Portugal, o secretário-geral da ANECRA - Associação Nacional das Empresas do Comércio e da Reparação Automóvel antecipa, em entrevista ao SAPO, aquele que é talvez o momento mais difícil de uma indústria que durante mais de um século foi o motor da Europa e que representa uma  fatia muito considerável do emprego e perto de 20% da receita fiscal dos países.

Representando mais de 3700 empresas associadas em todo o país, incluindo marcas, veículos novos, pós-venda, oficinas (reparação) e formação, Roberto Gaspar fala do momento decisivo que vive o setor e lamenta que se ponha todos os ovos da transformação da mobilidade no cesto da eletrificação. Não tem dúvidas de que a redução significativa das emissões é um caminho obrigatório, mas olhar os benefícios dos biocombustíveis a par de soluções elétricas poderia, garante, trazer mais descarbonização mais depressa.

O setor automóvel está num momento chave, muito impulsionado pelo ímpeto da eletrificação, mas as grandes construtoras europeias estão a sofrer quebras brutais, a transformação do setor é um desafio e uma oportunidade, mas há fábricas a fechar, despedimentos em massa, resultados em queda... Como vê o momento atual e até onde irá chegar?
Bem, parte disso tem que ver com a evolução natural do setor. Há uma parte muito importante de algum condicionamento industrial...

Mas em que sentido?
A partir do momento em que colocamos metas ambientais extremamente apertadas ao mercado europeu. Esta é ainda a maior indústria europeia, de longe: emprega 7% da população, direta e indiretamente, tem um superávit no ordem de mais de 100 mil milhões de euros,  entre aquilo que exporta e aquilo que importa, portanto tem aí também um papel fundamental. Durante 100 anos, as marcas — Audi, Volkswagen, Renault, etc. — foram fundamentais na Europa; é impensável pensarmos o pós-II Guerra e a grande industrialização da Europa sem pensarmos no grupo Fiat em Itália, nas grandes marcas alemã. Foram eles os grandes motores do crescimento europeu, mas hoje estão francamente ameaçados na sua forma, porque aquilo que eles faziam bem era produzir carros a combustão. Os motores eram conhecidos por serem excelentes, os alemães muito fiáveis, duravam anos, os BMW eram entusiasmantes, desportivos. E em determinada altura, colocou-se essas metas ambientais, que me parecem bem em teoria, mas apontou-se um caminho que perde tudo isto.

Mas são metas irrealistas?
Estamos a falar em deixarmos de produzir carros a combustíveis em 2035. É impossível. E não é possível por vários fatores. Para já, porque não vai haver essa capacidade de os fabricantes estarem todos a produzir só elétricos — a não ser que sejam só os chineses a vender os carros. E mesmo assim, no meio disto esqueceu-se algo essencial: os consumidores. Quem manda no mercado são os consumidores. Nós podemos querer condicionar o mercado, apontar as metas, mas no fim de tudo quem manda são os consumidores. O que está a acontecer agora, e 2025 é um ano já fundamental nestas metas intermédias até ao zero em 2035, porque os fabricantes vão ter de atingir os 93 gramas por viatura, em termos médios, de emissões. E a grande generalidade dos fabricantes está muito longe disso.

Criou-se essas metas ambientais, que me parecem bem em teoria, mas apontou-se um caminho que perde tudo isto.

Mas muito longe é quanto? Neste momento estão a produzir que percentagem de carros elétricos?
Muito longe. Temos o caso da Volkswagen e da Ford, que estão menos bem, que andam na ordem dos 120 gramas, em termos médios, outros que estão um bocadinho melhores, mas não porque vendam muitos carros elétricos, por exemplo, a Toyota.

Estamos a falar em termos de vendas ou de construção?
São vendas, porque as metas têm que ver com a matriculação. Ou seja, no final de 2025, são feitas as médias, a avaliação da média das emissões pelos carros vendidos, e cada grama a mais que um determinado construtor ou conglomerado tenha a mais paga 95 euros por grama por viatura. Isto multiplicado por muitos milhares de carros, estamos a falar, segundo projeções da Associação dos Construtores Automóveis, de 15 mil milhões de euros por ano ao dia de hoje, o que é um valor absolutamente assustador. Quais são os caminhos possíveis que todos estão a seguir para colmatar isto: um é aumentar a penetração dos elétricos, mas isso não se faz por decreto, os consumidores apesar de tudo mandam alguma coisa nisso; outro é aumentar a penetração dos elétricos. Hoje, os elétricos (não estamos a falar de eletrificados) foram, grosso modo, 13,4% de penetração na Europa, menos do que em 2023, quando se tinha ultrapassado os 14% — Portugal até foi um bocado maior, andou um pouco acima dos 17%. Para atingir as tais metas, em termos médios, os fabricantes teriam de estar a ter uma cota nas vendas na ordem dos 20% a 25%.

Portanto, quase o dobro. E como é que se força esse caminho?
Uma possibilidade é fazerem descontos nos elétricos, mas isso tem consequências sobre a rentabilidade, porque os elétricos já são carros que eles têm dificuldade em colocar em paridade com os carros a combustão, portanto se vão fazer descontos, significa que vão ter de degradar as margens. Outro caminho passa por vender mais híbridos, mas os híbridos também não são solução em termos futuros, porque não deixam de ser carros a combustão (com motores auxiliares elétricos), portanto disfarçam um bocadinho a questão, mas as emissões reais dos híbridos até são superiores àquelas que se apontam, porque na maior parte dos híbridos a autonomia são 30 e 50 km e muitas pessoas têm carros híbridos andam quilómetros sem carregar, recorrendo só à combustão. O que é que vai ter que acontecer forçosamente? As construtoras vão ter de comprar créditos de CO2, como já aconteceu em 2021, por exemplo à Tesla.

Aumentar a penetração dos elétricos não se faz por decreto, os consumidores mandam alguma coisa nisso.

É um bom negócio para Elon Musk.
Vender créditos será um dos bons negócios que a Tesla vai ter neste ano. Em 2024 já ganhou muito dinheiro com isso... estamos a falar de valores superiores a 2 mil milhões de euros de créditos de CO2. Portanto, as fabricantes vão gastar dinheiro a comprar créditos ou optar por soluções que passam por conglomerados. Já foi dada notícia de vários fabricantes que se vão juntar nomeadamente à Tesla, logicamente pagando à Tesla um determinado valor, para compensar as suas emissões. Por exemplo, juntando a Stellantis, a Mazda, a Tesla num conglomerado para propor à Comissão medir o conjunto para ser zero em termos finais. Ou seja, não se apresentam enquanto fabricantes mas como conglomerado para cumprir a meta.

Isso é ganhar na secretaria, não é?
É, totalmente, é estarmos a enganar-nos, porque não resolve nada, não estamos a atingir metas nenhumas, apenas a disfarçar a questão. A Mercedes também pondera juntar-se com o Gaelic, que são os homens da Volvo e da Polestar, que têm produções, mas na ordem dos 50 gramas, para em conjunto conseguirem não exceder as metas. Uma outra possibilidade que está em cima da mesa, e que muito provavelmente vai acontecer, é a partir de determinada altura, ali para agosto/setembro, os fabricantes dizerem: a partir de hoje não vendemos nem mais um carro a combustão.

Para evitar as penalizações, fabricantes estão a unir-se em conglomerados. Mas com isso não estamos a atingir metas nenhumas, apenas a disfarçar a questão.

Mas isso é uma possibilidade?
Sim, sim. É assumido por todos os fabricantes. Porque é isso ou terem de pagar uns milhares de milhões de euros de coimas. Ainda mais quando, muito recentemente, a Comissão veio reiterar que não vai mexer nos objetivos das metas ambientais, as construtoras têm de encontrar as suas soluções.

Mas se a seguir ao verão várias marcas congelarem vendas, isso pode significar ainda mais fecho de fábricas, despedimentos, etc.
Pode, sim. O que vivemos está entre a tempestade perfeita e o ano de todos os desafios. Na verdade, estamos a falar de uma verdadeira tempestade perfeita, porque a estas metas junta-se ameaça chinesa... E do ponto de vista das metas, não há solução.

Mas é mais vantajoso, evitar as coimas e ter de fechar uma série de fábricas, portanto produzir menos, reduzir a estrutura e no ano a seguir estar ainda menos preparado para o mercado e para o negócio, ou manter as fábricas e vender mais e tentar minimizar as coimas?
Não será forçosamente fechar fábricas, mas pode haver ali dois ou três meses em que eles provavelmente não poderão produzir carros. Neste final de ano já houve algum indício do que pode ser o próximo ano. Em dezembro, por exemplo, em Portugal tivemos o melhor dezembro desde há muitos anos, com um recorde de carros elétricos vendidos, 5 mil e tal, e venderam-se muitos carros a combustão também. Mas não foi de repente que as pessoas foram a correr comprar carros. O que aconteceu foi que muitas pessoas perceberam que no próximo ano, forçosamente, os preços dos carros a combustão vão subir. Desde logo, porque vai haver escassez, porque os fabricantes vão restringir e condicionar ao máximo os consumidores, tentar levá-los para os eletrificados, uma vez que têm a noção de que cada carro a combustão que venderem é um problema. Os preços vão subir, não há volta a dar. Seja por se condicionar e fechar em torneira seja porque os próprios fabricantes vão aumentar o preço dos carros a combustão para tentar encaminhar os consumidores para os eletrificados. E depois os próprios distribuidores, em Portugal, os concessionários, têm noção de que precisarão de fazer já alguma stockagem, porque no próximo ano vão estar condicionados nos de combustão, naquilo que são as suas encomendas.

Pois, as consequências são transversais ao setor...
Claro. Se em determinada altura os fabricantes fecharem a venda de carros a combustão, há uma rede enorme de concessionárias que vivem das vendas.

Estamos a viver uma tempestade perfeita, entre os objetivos de descarbonização e os carros chineses... A partir de determinada altura do ano, ali para agosto/setembro, os fabricantes vão recusar vender mais carros a combustão para não serem penalizados.

E a onda de despedimentos pode chegar a essas redes no próximo ano?
Eu acho que eles já estão muito reajustados, porque o modelo de negócio da distribuição mudou muito nos últimos anos — os concessionários cheios de vendedores já não fazem sentido, até porque boa parte das vendas de automóveis novos em Portugal são feitas a empresas, estamos a falar de 70% do mercado, maioritariamente através de gestoras de frotas, que têm canais próprios. Outra parte são rent-a-car, que também têm seus canais próprios e depois sobram algumas empresas. Por outro lado, a maior parte dos consumidores hoje toma as suas decisões na internet, antes de chegar ao concessionário já sabe o que quer, já leu, fez todas as comparações. E portanto o modelo comercial já mudou muito.

E como está o negócio do pós-venda?
Está bem e recomenda-se. O pós-venda está como nunca, está a subir e tem até um problema gravíssimo de falta de pessoal. Em Portugal faltam algumas dezenas de milhares de pessoas nessa área. Entre os nossos associados,  que são 4 mil, uma parte importante são oficinas e em c ada 20 casos, talvez para 19 seja esse o principal problema. Na área da colisão, das pinturas e esse tipo de coisas, é um desespero absoluto, temos até associados que estão a ir buscar pessoas ao Brasil, à Colômbia... Ainda agora um associado nosso com alguma dimensão foi buscar 12 colombianos porque percebeu que é um bom mercado, que oferece pessoas formadas, qualificadas, e garante-lhes emprego, a casa e mais uma quantidade de coisas, para continuar a ter atividade. Voltando aos concessionários, eles também já anteciparam de alguma forma a transformação, houve uma concentração muito grande em grandes grupos — Salvador Caetano, JAP, a Santogal, que inclusive comprou também a Renault de Lisboa, o M. Coutinho, que tem crescido brutalmente, e mais três ou quatro grupos de caráter médio e altamente profissionalizados. E também já perceberam, desde há muito, que o negócio não podia estar assente só em carros novos.

Os usados transformaram-se num grande negócio?
Sim, esses concessionários já têm operações de usados grandes, operações de pós-venda, etc. Não há dados concretos, mas aponta-se para que os usados valham já duas a duas vezes e meia o mercado de carros novos. Os usados estão a beneficiar muito da situação atual do mercado de novos. Os fabricantes foram condicionados pela Comissão e portanto têm de apostar nos elétricos, o que significa que o consumidor, se não tiver a oferta que quer, vai ter de ir para o outro lado. Seja por capacidade financeira seja por estilo de vida, que é muitas vezes a questão. As importações de usados dispararam, nos últimos anos, para números acima dos 100 mil carros usados importados em Portugal — os TVDE também têm aí algum efeito, mas é sobretudo porque as pessoas não encontram nos novos o que querem. Aliás, nós falamos do mercado positivo, mas a verdade é que os números continuam bem abaixo, mais de 7% abaixo, dos valores de 2019.

Em Portugal faltam algumas dezenas de milhares de pessoas na área de pós-venda. Na área da colisão, das pinturas e esse tipo de coisas, é um desespero absoluto. Temos associados que estão a ir buscar pessoas ao Brasil, à Colômbia...

Portanto, a recuperação ainda não se fez.
A recuperação ainda não se fez. E este desajuste entre aquilo que é oferta e aquilo que as pessoas precisam leva também a que as pessoas muitas vezes se encaminhem para os usados. Hoje o mercado dos usados é muito diferente. Durante muitos anos era o patinho feito do setor, pouco confiável... hoje não tem nada a ver com isso. O mercado dos usados foi o setor que melhor utilizou o advento da internet. A partir do momento em que as pessoas, em vez de irem ao standzinho do seu bairro, passaram a ir à internet à procura do melhor carro do país, isso mudou completamente e passámos a ter grandes operadores de carácter nacional — aqueles que souberam utilizar isso bem. Por exemplo, a Benecar é um exemplo disso, a SoBarroso, lá em cima em Braga, são excelentes empresas do setor automóvel. Hoje o mercado dos usados é altamente profissional, muito competente e, logicamente, os grandes grupos também perceberam que não podiam ficar fora desse negócio. Eles tinham capacidade instalada, plataformas, funcionários... e passaram a ter essa opção para os clientes a quem não conseguiam responder com um carro novo.

Mesmo as marcas próprias, os fabricantes?
Sim, as marcas perceberam isso. Os fabricantes percebem que, da forma como o setor está, há uma fatia, um segmento que comprava o Clio novo, o Corsa, carros que estão hoje muito caros, mesmo a gasolina, porque têm de incluir uma série de coisas. É um segmento em que vão desinvestir porque as margens são menores e a própria Comissão obrigou os construtores, apesar de já estarem a apontar para desinvestirem na combustão, a cumprir regras que encareceram esses carros — têm de sair de fábrica com sistemas ADAS, que são aqueles sistemas de identificação de obstáculos, com uma caixa negra, com sensores... Para os consumidores é brilhante mas se isto não tem grande impacto num carro de segmento médio-alto ou alto, num que custava 13 ou 14 mil euros é pesado. De repente o carro passou a custar 16 ou 17 mil. Hoje é muito difícil ir ao mercado e comprar um carro, mesmo a combustão, novo que custe menos de 17 mil euros. Nesse segmento médio, médio-baixo, as marcas têm noção de que não vão ter oferta, por isso estão a encontrar soluções com carros usados ou seminovos para não perderem essa fatia de mercado. E alguns até são novos...

Como assim?
Porque há casos em que se matricula carros para depois os vender como seminovos, que na prática são novos, mas que não podem vender como novos com grandes descontos porque isso desvaloriza a marca. Outros até estão, como por exemplo a Renault está a fazer e muito bem, o que chamam de refactoring: são fábricas para onde os concessionários mandam carros com quatro, cinco, seis anos, desse segmento, chegam lá em camiões, em economia de escala, desmontam-nos carros, higienizam-nos, põem-nos a cheirar novo e quando saem da fábrica fazem logo uma sessão fotográfica que é enviada para o concessionário. E assim passam a ter carros com meia dúzia de anos, direcionados para esse segmento, que não são novos mas têm um ar fantástico.

São recondicionados, no fundo.
Sim. Porque a Renault percebeu que não vai ter oferta para esse segmento, portanto vai precisar de responder a essa procura de outra forma; e é também uma maneira de ocupar as fábricas que não podem estar a produzir em escala.

Nesse segmento médio, médio-baixo, as marcas têm noção de que não vão ter oferta, por isso estão a encontrar soluções com carros usados ou seminovos para não perderem essa fatia de mercado.

Mas acredita que, de facto, os carros a combustão vão desaparecer a médio prazo, daqui a 10 anos não sairá mais nenhum novo de fábrica?
Bem, existe o mercado e existe a realidade europeia. E a Europa está a dar um tiro no próprio pé. A União Europeia está a dar um tiro no seu próprio pé e depois existem 1,4 mil milhões de carros em circulação no mundo inteiro, sendo que a grande maioria, como deve imaginar, são carros a combustão. E que hão de continuar a ser carros a combustão por várias razões: por questões sociais, por exemplo. Não estamos a ver nem em África nem em muitos países asiáticos, nem na América Latina, uma explosão de carros elétricos.

Nem nos Estados Unidos.
Nem nos Estados Unidos. Ainda menos com o efeito Trump. Tudo bem, eventualmente, numa lógica de estados, alguns podem ter algumas medidas para travar um bocadinho aquelas vontades de Donald Trump, que ao lado também tem Elon Musk, a quem também interessa vender os Teslas... Mas acima de tudo, nos EUA existe a indefinição. Mas os carros a combustão não vão desaparecer, porque existe um mercado enorme para vender carros.

Roberto Gaspar, secretário-geral da ANECRA
Roberto Gaspar, secretário-geral da ANECRA créditos: DR

Além de que há o tema da autonomia das baterias, a questão da eficiência, não termos uma rede de carregamentos elétricos que seja capaz de fazer face, em dez anos, a um mercado totalmente elétrico, há o tempo de carregamento, que é muitíssimo superior ao do abastecimento...
Normalmente, aponta-se que para haver a massificação dos elétricos é preciso alguns fatores fundamentais. O primeiro é o preço dos carros, normalizar ou nivelar o preço por aquilo que se chama de ICE, que são os carros a combustão — e isso mais tarde ou mais cedo vai acontecer. Segundo, a questão da autonomia, que também, mais tarde ou mais cedo, vai aumentar; já há projetos de baterias sólidas, com outras tecnologias, já há carros com 700/800 km de autonomia. A rede de carregamento também vai aumentar, não tenho muitas dúvidas sobre isso. E depois existem dois fatores muito difíceis de resolver. Um é mais ou menos conjuntural e tem que ver com a obsolescência do produto, que é um problema enorme. Quando comprávamos um telemóvel há uns anos, tínhamos esse problema: comprávamos por mil euros e passado seis meses tinha desvalorizado imenso. Agora, eu compro um Tesla e sei que daqui a três anos aquele modelo vai estar completamente desatualizado, será muito mais barato, com muito mais autonomia, com carregamento mais rápido... que valor terá o meu nessa altura? E esse é um problema enorme, ainda mais quando uma parte do mercado são empresas, que fazem as contas. E sujeito ainda a movimentos de se querer sempre baixar os valores. E há ainda mais um problema.

O preço da energia?
Se houver a massificação, esse estará por cima... mas nem é isso. É que existe uma realidade urbana e existe uma realidade não urbana. Na realidade urbana, eu percebo que se possa escalar mais facilmente para a massificação, mas na realidade não urbana, as distâncias são muito maiores, e pior, eu não acredito que ninguém, no seu juízo normal, compre um carro elétrico se não tiver a capacidade de o carregar em casa ou no escritório. Porque depois estou dependente de carregar o carro na rua. Ora, mais de 90% da população, tanto em Portugal como na Europa toda, não tem garagem ou capacidade de carregar assim. E enquanto não se resolver essa questão, dificilmente se pode massificar o carro. Eu acho que se esquece sempre essa questão. Que é a questão do consumidor, do estilo de vida. E portanto, vai demorar bastante tempo.

Então que podia fazer-se para acelerar?
Na nossa opinião, e temos batalhado nesse sentido, existe aqui uma confusão enorme entre aquilo que deveriam ser as soluções e que são os objetivos. O objetivo é reduzir as emissões. E se é reduzir as emissões, devia procurar-se aquilo que fosse a melhor solução, a mais rápida, a  mais eficaz e a mais fácil de pôr em prática. Eu não sou contra os elétricos, nada disso, mas para baixar as emissões deveria estar a ser levado em linha de conta aquilo que são os combustíveis alternativos, os biocombustíveis e tudo isso. Porque utilizaria os mesmos carros, a mesma capacidade instalada e a descarbonização é muito mais rápida. Se nós hoje, dos 6,5 milhões de carros que temos em Portugal, puséssemos um milhão a andar com biocombustíveis, que produzem 30% das emissões, o efeito era muito maior do que vai ser daqui a 30 anos a vender carros elétricos a este ritmo. A nossa opinião é que o elétrico é parte da solução, mas não deve ser a única.

mais de 90% da população, tanto em Portugal como na Europa toda, não tem garagem ou capacidade de carregar assim. E enquanto não se resolver essa questão, dificilmente se pode massificar o carro elétrico.

Esta lógica da eletrificação como aposta única também abre caminho à penetração dos carros chineses no mercado europeu... tem muito maior capacidade de produção, a preços inferiores... corremos riscos?
Isso já está a acontecer. E só não é mais porque o mercado não está a absorver. Ou seja, os chineses, com BYD, têm trazido montes de carros naqueles barcos gigantes e alguns desses carros só não foram vendidos porque o mercado ainda não os absorveu, senão a quota deles teria sido muito maior.

Qual é a quota de carros chineses neste momento?
É um bocado difícil dizer, porque também temos algumas marcas que não são puramente chinesas, mas na prática são-no. Por exemplo, se falarmos de chineses puros, temos a BYD, mas o Dacia, que se vende que nem pães quentes, é feito na China, o BMW que está a ser mais vendido, que é o i4, é feito na China. Portanto, os carros elétricos que dominam são a Tesla, muito à frente, mas logo a seguir a BYD, que em 2024 vendeu 3.500 carros. A Tesla, a vender só carros elétricos, já é oitava no ranking total das vendas. Portanto, é uma ameaça enorme.

E que vem dos dois lados. Vem da China e vem dos Estados Unidos. Faria sentido a União Europeia pensar em medidas protecionistas para evitar que esses carros entrem ou melhor seria ponderar outras soluções para aquilo que é o mercado europeu?
Para mim, as medidas protecionistas não são solução, até porque depois viriam contramedidas do lado de lá e não ganhamos nada com isso. Depois, o mercado chinês, quer se queira quer não, é muito importante para os próprios fabricantes europeus. No ano passado, a cotação bolsista da Volkswagen caiu bastante, sobretudo porque as vendas da Volkswagen na China caíram muito. E ainda por cima quando os chineses têm margens enormes. No caso da BYD, eles vieram para cá e nivelaram os preços um bocadinho abaixo do Tesla. Ou seja, tomaram o Tesla como referência e puseram os seus modelos 2 mil euros abaixo. Só que a produção é feita a um custo muitíssimo menor. Se quisessem vender 10 mil euros abaixo, vendiam; aliás, na China vendem a preço muito mais baixo. Eles não quiseram foi fazer um banho-sangue, de repente vir vender muito barato. E temos um problema, porque os carros chineses são muito bons, as melhores baterias do mundo são chinesas, da BYD — são as que utiliza a fábrica da Tesla em Berlim e só isso atesta muito a qualidade —, os chineses dominam completamente as matérias-primas em várias componentes. Têm praticamente 70% das matérias usadas nas baterias e o que não têm vão buscar. E os projetos europeus a esse nível têm corrido muito mal; veja aquele que havia na Suécia, daquela superfábrica de baterias, que entrou em processo de insolvência porque não estava a conseguir atingir os níveis de qualidade, nem de preço, nem os tempos.

Na verdade, a Europa começou uma corrida muitos quilómetros atrás.
Muito atrás. Por isso dizemos que a Comissão Europeia, que está a fazer um condicionamento industrial, está a levar os fabricantes europeus para uma arena onde claramente os outros dominam, corre o risco de os submeter a um massacre completo. Naquela que é a maior indústria da Europa. Durante 100 anos, os europeus fabricaram os melhores carros a combustão e agora são forçados a reajustar-se e fabricar carros elétricos. Qual é o problema disso? É que ao gastarem biliões a fazer fábricas de raiz para fazer carros elétricos ou fazer transformação de fábricas de carros a combustão para produzir elétricos, perdem. O próprio CEO da Volkswagen reconhecia aqui há tempos que, enquanto a Tesla faz dois carros, eles fazem um. A Tesla tem a máquina pronta, montada, por isso, só do ponto de vista de produção, estamos a falar numa diferença enorme. A Europa tem ainda a questão da crise energética, os custos de contexto, e portanto, tudo isso junto, é uma mistura absolutamente explosiva.

Que papel pode ter aqui a reforma fiscal?
Todos os países europeus vão ter de fazer uma reforma fiscal. Porque estamos a falar de quase 20% das receitas do Orçamento do Estado  a vir do setor automóvel. É brutal e atesta bem a importância que o setor automóvel tem para a nossa vida. Vem do ISV, do IUC, do IVA na venda, das tributações autónomas, essas coisas todas. Significa que se, nós quisermos apostar em carros elétricos com subsidiação, como está a acontecer agora, a subsidiação é não pagamento de impostos, logo significa quebra de receita fiscal. Se nós quisermos massificar os carros elétricos em determinada altura, ou retiramos esses apoios ou teremos ainda maior quebra de receita fiscal, também pela via de menos venda de produtos petrolíferos. Eu não acredito que este governo ou qualquer outro abdique de 18% a 20% de receita fiscal. Por isso essa reforma tem de ser feita.

E de que forma se pode compensar essa receita?
É preciso estudar... Aquilo que foi sugerido no ano passado, apesar de ter sido feito com os pés, é provavelmente, o modelo mais ou menos correto.

Estamos a falar de quase 20% das receitas do Orçamento do Estado  a vir do setor automóvel. É brutal.

A subida do IUC para carros mais antigos?
Sim, penalizar os carros mais antigos e com mais emissões e libertar os outros.

Mas isso é possível fazer num parque automóvel envelhecido como o nosso e com o nível de rendimentos que aqui temos?
Tem de ser feito, acompanhado, por exemplo, de um plano de incentivo ao abate. A proposta tinha um fundo razoável de 129 milhões de euros, mas estava muito fechado, porque estava muito em cima só de carros elétricos e carros em combustão, portanto corria o risco de não ter o peso que se pretendia, tem de se alargar para atingir mais pessoas, mas não há muito mais hipóteses. Os holandeses, por exemplo, estão a estudar a possibilidade de o imposto ser sobre a circulação real, ou seja, em função dos quilómetros percorridos a combustível, portanto das emissões produzidas, de forma que alguém que só anda ao fim-de-semana não pague igual ao que anda todos os dias. Mas é a forma. E tem de ser feito, tanto em Portugal como nos outros países. Temos tendência a achar que em Portugal é mais pesado, mas a verdade é que o peso da receita fiscal do setor automóvel é semelhante em quase todos.

Mas é um desafio difícil, então.
Sim, a equação é essa: se os Estados querem reduzir as emissões, se querem incentivar soluções alternativas de redução das emissões, vão ter quebra de receita em alguns lados, com risco daquilo que aconteceu na Alemanha: retiraram os incentivos e, de repente, a venda de elétricos caiu. Em Portugal não seria muito diferente, porque a venda está suportada em grande parte em carros empresariais, de função, por questões de tributação e de imagem de sustentabilidade. Mas é um desafio que é preciso enfrentar.