Pois que Sábado adormeci no meu canto, durante o prazenteiro serão de canasta para o qual o Benfica convidou a juventude de Moreira de Cónegos. Nestas terras de cabeça dura e bola redonda resta-me assim escrever sobre o Sporting-Porto. Como não o fazer? Bruno Lage nu, de asas e flauta transversal, tem sido o Hipnos que fez da versão 24/25 do Glorioso um pujante opiáceo.

Entretanto lá acordei e, fresquíssimo nesta memória que o Senhor me deu, latejava aquele pique heróico do treinador Anselmi, punhos cerrados de antologia, galgando o tartã do Dragão ao som de Vangelis, numa volta homérica que desde Chariots of Fire não se via com aquele esplendor. Tão cedo não esqueceremos.

Terá sido a graciosidade do gesto de Danny Namaso? A impecabilíssima semi-espargata que o avançado anglo-camaronês executou foi, para todos os efeitos, o bonito culminar de uma jogada de golo. Um golo que proporcionou um empate. Um empate contra uma equipa grandiosa. Do qual se beneficiou um ponto. Um ponto que encurta a distância para o Sporting em oito tracinhos. Nada mau, Mister Anselmi.

Ora, que entidade é esta que celebra com fulgor olímpico um empate contra o Sporting? Que ergue os braços do triunfo à conta de oito pontos de distância para o primeiro lugar? Eis, numa palavra, a questão que importa colocar: Futebol Clube do Porto, quem és tu? Nem eles sabem. Se há talento que o Porto da nossa infância sempre se mostrou exímio, foi na gestão de expressões do seu rosto de cemitério. Da sua infalível cara de póquer: foram estes homens que trouxeram para o quotidiano mediático nacional o conceito de “blackout”

André Kosters

Criança crescida a norte de Coimbra nos anos 90, com a Luz a soldo e Alvalade escrevendo páginas e páginas de insignificância, recordo, como se fossem uma só dor de ventre, as espinhosas peregrinações matinais depois de uma derrota contra o Porto. Chegar à sala de aula e ter de enfrentar um Jorge Nuno em todo e cada um daqueles fedelhos de cabelo cortado à tigela: os mesmos chavões, os mesmos maneirismos, a mesma pertinácia.

O Porto era então uma Quimera vinda dos abismos do Freixo: um monstro com cotovelos de Paulinho Santos, joelhos de Folha, gémeos de Fernando Couto, braços de Timofte, pés de Domingos, cabeça de Jardel. É dessa altura a formação dos quistos sebáceos que hoje me atazanam a parte de trás da nuca.

Um clube de caceteiros? É uma maneira exígua de apresentar o problema. O Porto era fome: toda a fome que pode haver num grupo de gente esfomeada. Era um aperto de vida, o desejo desordenado, a paixão como cegueira obstinada. Constituiu-se e ganhou espessura na ferocidade dos pequenos e rebaixados, que lutam com o que têm à mão, contra a soberania dos maiores. Envolveram o país dos jornais em tramas encarniçadas, questões hepáticas, inimigos íntimos. Dilataram dicionários nos seguintes verbetes: “helénico”, “nação”, “fruta”. Justiça lhes seja feita (e parece estar a ser): por causa deles Portugal tornou-se um país mais empolgante.

Pouco se sabe do Futebol Clube do Porto antes de Pinto da Costa. Também pouco haveria para saber: os que da invencível cidade se juntavam para vir jogar a Lisboa eram grupos de rapazes com medo do próprio jogo. O mito firma-se em 82 com o formidável “Verão Quente das Antas”; nem toda a ficção junta seria capaz de inventar uma coisa daquelas: sendo que a maior de todas essas invenções é o próprio Porto como o conhecemos: o clube que infernizou as nossas infâncias.

Tribuna

Em 78 já lá estava Pedroto. Para nunca mais sair. Com Pinto da Costa, todos os treinadores desde José Maria Pedroto foram José Maria Pedroto. É um engano fazer as contas aos 42 anos de presidência como o esboço de um homem só. Nada mais errado. A dupla foi sempre o segredo: como Kirk e Spock, Frodo e Sam ou Coutinho e Sacadura. O último a fazer as vezes de Pedroto, foi Conceição.

Dizia que quando um, dois, três, 50.000 saem de casa é para fazer acontecer, e que no Porto tinha sido assim. De facto, foi. Tiraram de lá Pinto da Costa para colocar André Villas-Boas: por isso todas as felicitações que possa dar serão poucas. Temo, porém, para infelicidade dos meus amigos portistas, que ao terem afastado Pinto da Costa do Futebol Clube do Porto, tenham feito desaparecer o Porto que lá havia.

O grande projecto de André Villas-Boas devia ser descobri-lo. Provavelmente dentro de si mesmo. Para depois perceber que espécie de Porto é esse. Damos de barato a nobreza das intenções, a eficácia no método, a recentíssima modernidade nas práticas de gestão. Nada que uma inteligência artificial não seja capaz de fazer. Enquanto os traços de identidade não estiverem cavados fundo como o Rio Douro é fundo, o F.C.P. será, por enquanto, outra coisa qualquer. E o Porto continuará vivo ali ao lado, na Curva Pinto da Costa. Pequeno e zangado, como era na minha infância.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.