Choque, KO, levantar-se, jogar. O francês Philippe Sella, uma das maiores lendas do râguebi francês, teve um blackout logo no primeiro jogo que fez como internacional por França, frente à Roménia, em 1982. Depois de uma rápida revisão, continuou a jogar, mas as sequelas desse momento perduraram, logo no jogo como para o resto da sua vida.  

«Era o meu primeiro jogo, por isso ainda não conhecia bem os meus colegas. Estranharam estar sempre a fazer a mesma pergunta», conta a A BOLA, hoje com 63 anos. «Foi o meu o meu primeiro jogo e, até hoje, não me lembro de nada, nem do que aconteceu depois, nem da manhã e do treino anterior», recorda. A lesão cerebral que sofreu teria merecido outro tipo de atenção, mas há 42 anos – e não só, como se verá - não havia os cuidados que há agora quando o tema são concussões cerebrais. E não só no râguebi, na linha da frente deste tipo de cuidados (como na arbitragem, de resto) mas também no futebol, onde novos protocolos foram desenvolvidos, mas cada vez em mais modalidades, como o andebol, o judo, a equitação ou mesmo o surf. 

Sella começou a jogar no Agen com 20 anos, idade com que foi chamado à seleção. Deteve durante muito tempo o recorde de internacionalizações, 111, e reformou-se com 36 anos. «Essa lesão fez com que a minha memória desaparecesse. Ia apanhar uma bola e acabei por levar com um pé na cabeça. Foi infeliz, involuntário, mas desde aí, nada – a viagem para a Roménia, o treino da véspera. Nada. Acabei o jogo com comportamento estranho. Ninguém percebeu. Fui tratado, questionado, respondi, por isso não havia nenhum problema. Quando regressei o meu colega, que me conhecia mal, achou que havia algo de anormal e dizia aos outros ‘o miúdo está a gozar comigo!’, porque lhe perguntava onde estávamos e o que estávamos. Não era um questionário tão complexo como hoje dia. Nunca me passou pela cabeça que devia ter parado. Foi estranho, tinha a impressão de estar a pairar, não sabia bem onde estava. Foi há 40 anos e é muito mais complexo do que uma fratura», recorda, referindo que lhe passaram a famosa esponja mágica - literalmente uma esponja com água fresca que era passada na cabeça - e ‘pronto para continuar’. Descansou durante uma semana e duas semanas e voltou a treinar e jogar.  

«Devido aos problemas do passado, há hoje em dia uma certa evolução na prevenção. Se houver um problema, o jogador tem de sair», avisa. Vive com as sequelas de anos de choque na cabeça, ainda que no seu tempo a modalidade fosse menos de contacto e mais de ‘esquiva’; agora, as placagens acima do peito são agora proibidas. Tem défice de memória curta, que o diga a mulher Josy – faz muitas vezes as mesmas perguntas -, ela que além do marido teve também de lidar com um filho no râguebi, Geoffrey, por ironia obrigado a deixar de jogar devido a sucessivas concussões. 

Josy e Philippe estão juntos desde o liceu, quando tinham 17 anos. «É ela que nota», diz ele. «Eu não estava nesse jogo na Roménia. Ligaram-me e disseram ‘ele nem te vai reconhecer’. Estava bem quando voltou, mas não se lembrava de nada. Voltou a jogar, fez várias lesões. Eu até fechava os olhos quando ia aos jogos. Com o nosso filho igual, sabemos logo que é uma concussão. O nosso filho teve quatro em seis meses. Foi em 2019, tinha 26 anos e o neurologista disse que tinha mesmo de parar», cruza Josy os braços, já especialista.  

O caso de Philippe Sella é secundado pela recente confissão do antigo jogador Sébastien Chabal, que afirmou que não se recorda de qualquer jogo que disputou, provavelmente devido às concussões sofridas. «Não me lembro de um único segundo de um jogo que tenha jogado. De nenhuma das 62 internacionalizações que vivi», disse ao canal Legend, no Youtube. Este testemunho tem um valor impactante, ao qual juntou outro: não se lembrar no nascimento da filha. O impacto das suas declarações fez com que voltasse atrás nas declarações de que «já não vale a pena» consultar um neurologista.

Mas estes são testemunhos de ex-jogadores. São raros os atletas no ativo que assumem ter problemas, tanto no imediato como ao longo do tempo. Raphael Varane, em 2024, foi uma pedrada no charco, ao assumir em entrevista ao L´Équipe, enquanto jogador do Manchester United (mas já retirado da seleção francesa) que erros que teve em alguns jogos foram provocados por desequilíbrios resultados de choques de cabeça. 

Outra exceção é a jogadora de andebol Cléopatre Darleux, que decidiu termina a carreira no final da época, depois de mais uma bolada na cabeça. A guarda-redes do Metz Handball e da seleção francesa até aos Jogos de Paris, no verão passado, mostrou-se muito zangada com o protocolo de concussão vigente, e também com os árbitros e, aos 35 anos vai deixar de jogar. E ela sabe do que fala, uma vez que ficou mais de um ano afastada da competição depois de sofrer concussões na sequência de várias pancadas na cabeça.

«Os Jogos encorajaram-me a continuar. Voltei a sentir-me bem física e mentalmente depois de ter passado por momentos difíceis», explicou recentemente à FranceTV. «Os meus problemas com as concussões também me fizeram pensar. Tive de parar três vezes desde o início da época e, apesar de hoje me sentir em grande forma, tenho de me cuidar e não correr demasiados riscos para o futuro», disse. Depois de mais uma bolada no início do mês, disse «chega»: «Não conseguia ver com um olho. Durante umas boas duas horas, estava tudo branco», disse Darleux em entrevista ao jornal Républicain Lorrain, irritada com a reação dos árbitros. «Não se pode dizer que eles não estejam conscientes da questão da concussão, mas têm o reflexo de dizer apenas: 'protocolo'! Mas é errado porque está mal feito. Fazem três perguntas, mas não é assim que vamos descobrir que algo está errado.»

A jogadora defende a aplicação de sanções mais duras contra jogadores que se envolvem em comportamentos de risco. «Acontece com demasiada frequência, não é normal. No râguebi, a situação é realmente examinada e existem sanções reais. No andebol, o jogador apenas recebe uma suspensão de dois minutos», lamentou.

O râguebi a liderar e o futebol atrás 

Hoje, no râguebi, modalidade mais desenvolvida na proteção ao atleta, um jogador tem de esperar 15 dias a três semanas até voltar. No futebol a espera é menor: 6 dias: exemplo disso é o recente caso do guarda-redes brasileiro Alisson, do Liverpool, que foi dispensado da seleção pois não havia tempo suficiente de descanso para o jogo seguinte. Mais imediato, Gavi teve de sair de um jogo do Barcelona depois de não conseguir responder ao questionário do médico, com o clube a usar a substituição por concussão. 

Sella esteve em Lisboa a convite da startup médica Regenlife, que inventou um dispositivo médico não invasivo na investigação da doença de Alzheimer e passou depois às concussões, que apresentou esta semana a possíveis investidores, numa conferência mediada pela Green Tech Novation, cofundada pelo empresário António Sousa, emigrado em França, e a mulher, Rachelle Gallas.

A empresa sustenta que ajuda a reduzir sintomas de concussão aguda se usado poucas horas depois do choque, e propõe-se aliviar sintomas da concussão crónica, através da estimulação por luzes – chamam-lhe estimulação trifotónica (díodos vermelhos, infravermelhos e lasers) para modular a inflamação no cérebro. São usados um capacete, uma banda para estimular o intestino (e potenciar a ligação cérebro-intestino através da microbiota), e por vezes um colar para estimular a oxigenação do cérebro. O antigo jogador faz parte do grupo que usa o dispositivo de forma experimental para tratamento de consequências de concussões crónicas, afirmando sentir-se melhor. A empresa tem ensaios a decorrer em três hospitais de França e aguarda Certificação Europeia, no final do ano, para comercializar nas áreas do desporto, hospitais e Forças Armadas. 

Mas o que é uma concussão cerebral? 

«Temos duas vertentes, a concussão aguda e a concussão crónica. Acontece quando o cérebro recebe um trauma e ocorre um problema neurológico, após choque com o crânio. Podem ocorrer microlesões, como pequenas hemorragias, e inflamação», explica Patrice Cristofini, médico e CEO da empresa. Muitas vezes, uma pequena concussão não aparece numa ressonância magnética e o tratamento recomendado é apenas um: repouso, e eventualmente, um anti-inflamatório.  

«Mas hoje em dia sabemos que há problemas associados com a visão, o equilíbrio. A concussão aguda não é um problema muito conhecido. Não sabemos bem as consequências. Recomenda-se repouso e quando passa uma eventual dor de cabeça, o jogador volta à equipa. Isto a nível profissional, em que é avaliado até o modo como é feito o choque e um jogador cai, porque a nível amador o desconhecimento é maior», alerta Cristofini. 

No râguebi, desde 2016, é uma decisão que tem de ser tomada em 10 minutos. «Durante um jogo, é uma decisão médica, que não pode ser contestada», explica. A FIFA adotou um protocolo de substituição extra por concussão em 2024, com a decisão a ser tomada em 3 minutos.  

Mas por vezes é o próprio jogador a resistir à substituição. Todos querem jogar, claro. É por isso que no râguebi os médicos, além do questionário, recorrem também ao VAR para avaliar a forma como um jogador cai. Mais: no VAR há um médico independente que pode alertar os médicos das equipas para uma suspeita de concussão e decidir pela sua saída. Até porque os clubes podem ser penalizados criminalmente se algo correr mal com a saúde do jogador - passos que o futebol ainda não deu.  

A concussão crónica é um tema ainda mais profundo, já abordado no boxe e no futebol americano, estando muito associada a doenças degenerativas, como Alzheimer, Parkinson, e a temida Encefalopatia Traumática Crónica (ETC), apenas detetável após a morte. 

«Acreditamos que através da estimulação por luzes podemos prevenir a degradação futura. Estamos a propor um tratamento, mas acreditamos que podemos vir a ser um instrumento preventivo», afirma Cristofini. 

«O jogador pode ficar melhor depois de uma concussão aguda mas as consequências permanecem. Temos então o segundo tópico. A crónica repetição de concussões. Por volta dos 40 anos, uma pessoa começa a ter muitos problemas. Memória, depressão, tendências suicidas, que se refletem no estilo de vida e na relação com a família. Um jogador retirado pode já não ter tanto interesse, mas ele sofre. Durante a carreira, um jogador pode ter muitas concussões agudas, sem nenhum tratamento. E continua a jogar. Falamos de râguebi, boxe, hóquei no gelo, futebol americano, equitação, futebol», refere o médico, sublinhando que hoje em dia os jogadores arriscam mais pelo físico - mais força, mais velocidade -, mas também pela falsa sensação de segurança que os equipamentos oferecem: na verdade, o cérebro continua a oscilar no seu banho de líquido dentro do crânio... 

O delicado caso de Zazie, a amiga do olímpico Leon Marchand

Zazie Gardeau tem 23 anos e está prestes a dar um desgosto aos pais. Cavaleira da equipa nacional francesa, e campeã europeu de saltos júnior (2018) e de Esperanças (2023), vai voltar a montar um cavalo depois de, há dois anos, ter tido uma gravíssima queda que a deixou em coma e paralisada lado esquerdo do corpo, quando preparava entrada dos Jogos Olímpicos de Paris. Um traumatismo craniano sofrido quando fazia um semestre de faculdade em Bath, Inglaterra, deixou-a um mês nos Cuidados Intensivos. Regressou a Toulouse para fazer recuperação e fisioterapia. Nos Jogos Olímpicos de Paris, o herói da natação francesa Leon Marchand dedicou-lhe uma das medalhas que ganhou na natação - a de 200m mariposa, levantando curiosidade sobre a sua identidade. São amigos de infância e Leon quis saudar a sua recuperação depois de ter melhorado locução, equilíbrio e memória, tendo usado o dispositivo algumas vezes. Zazie é outro dos testemunhos e mostrou resultados do seu complexo programa de reabilitação. Conseguiu passar de ano nos estudos de engenharia e prepara-se para voltar ao que mais gosta: andar a cavalo.