Comiserações sobre desiguais realidades financeiras à parte, o sucesso do Newcastle árabe, pacientemente manejado pela audácia refrescante dum ainda promissor Eddie Howe, exímio conhecedor do jogo sem a habitual ingenuidade dos treinadores jovens, ainda românticos antes de pragmáticos, chega injustamente tarde para um povo apaixonadíssimo pelo clube.

Pouca gente futebolística conhece melhor a angústia da espera e do fracasso. O último festejo a sério datava de 1969, quando a equipa teve de correr a Europa para conquistar a Taça das Cidades com Feira (eliminando pelo caminho o Vitória setubalense do mestre Fernando Vaz, que já tinha passado por cima do Lyon com cinco golos e pela Fiorentina com três); e, imagine-se, internamente a memória era ainda mais aguada – recuávamos a 54/55, quando se levantou a Taça diante do Manchester City. Nem a tradição oral já era fácil manter.

Nos anos 90, já testemunhada por muitos, foi o quase. A fase foi bonita, mas mais frustrante que outra coisa: quando Kevin Keegan perdeu a Premier League 1995/96, depois de estar 12 pontos à frente em Janeiro, o mundo desabou. Porque aquele Newcastle fora sustentado por um pressuposto muito simples: ser fiel à ardente paixão das bancadas emulando-a numa vertigem tática sem precedentes, aproveitando os talentos de Ginola, Ferdinand, Beardsley ou Asprilla. A Sky Sports chamou-lhes os “Entertainers”. O Newcastle não tinha possibilidades tão reais de título desde… 1927. E esse entusiasmo resultava em incontrolável futebol de ataque. A Keegan, genial enquanto jogador e tão genial gestor homens, interessava sobretudo continuar a atacar, sem pensar nos riscos – certo dia, numa palestra, recorreu à analogia da bola de neve, que continua a crescer e a crescer incontrolavelmente. A equipa perdera uma vez nas primeiras 16 jornadas, era manter o ritmo e aproveitar o embalo.

Um dos jogadores mais impertinentes pensou no assunto. O que acontecia á bola se encontrasse um obstáculo? Puff, explode, desintegra-se, desmancha-se. Certo?

«No, if you build it big enough it will go through it[1]

O único azar: o obstáculo chamava-se Alex Ferguson. Um Manchester United que tinha recuperado Cantona do infeliz lance em Selhurst Park e que ganha 12 das últimas 14 jornadas – entre Março e Abril, o l’enfant terrible decide cinco vitórias pela margem mínima.

«It was demoralising,» dizia certo dia Robert Lee, o último a marcar em Wembley antes de Dan Burn, em declarações reproduzidas pelo Independent. “We’d come in every week, and hear they’d won: 1-0, Cantona. Hadn’t played that well, 1-0, Cantona. For me, Schmeichel and Cantona won the title really. It was relentless.

O Newcastle viveria anos de quase. 1995/96, segundo lugar. Ano seguinte, outra vez o primeiro dos últimos face a Ferguson. Já sem Keegan ao comando, o pé frio continuaria na Taça, com duas finais perdidas em 1997 e 1998.

Na entrada para o novo milénio, entraria Sir Bobby Robson para recomeçar outra fase de quase, cheia de histórias bonitas mas nunca totalmente gloriosas – dois top4, um quinto lugar e uma meritória campanha na Champions League, onde se tornou na primeira equipa de sempre a qualificar-se da fase de grupo perdendo os três primeiros jogos (a Atalanta de Gasperini igualaria o recorde um pouco depois). Mas uma triste sequência de má gestão comunicacional e desencontros entre o sábio inglês e a direcção, encabeçada por Freddy Shepherd, ditaram a separação e o consequente fim dum Newcastle de elite, simulado temporariamente por Alan Pardew no principio da década passada. A entrada do PIF em jogo deixava antever uma nova tentativa de glória suprema na ponte sobre o Tyne, a Pons Aelius na muralha que Adriano mandou construir um dia.

Alguém como Dan Burn, o único em campo nesta final da Taça da Liga como jogador local e com uma fabulosa história de autossuperação, que aos 32 anos chega, na mesma semana, à Selecção e ao primeiro título colectivo, parecia uma história impossível quando o saudita Public Investment Fund, ou PIF, retirou finalmente Mike Ashley da liderança do clube. Com mundos e fundos directamente da torneira governamental, o PIF prometia um poder de compra incomparável – 20 vezes mais rico que o fundo comprador do City, por exemplo. O mundo esperava acordar um dia e ver Mbappé à porta de St James Park.

Burn, ainda mais que os capitães Lascelles, Trippier e Guimarães, é a face do projecto. A forma pouco ortodoxa com que marcou o golo, cabeceando duma distância e em circunstâncias onde poucos conseguiriam marcar com os pés, é fiel a todo um passado de resiliência e espírito lutador. Foi rejeitado pelo Newcastle do seu coração em criança, percorreu todos os escalões profissionais da pirâmide inglesa e, em vez de Mbappé, apareceu ele á porta do estádio – num claro assumir dos investidores que o sucesso se queria sustentado, pragmático, sem a vertigem ou a loucura da paixão.

O PIF chegou em Outubro, Eddie Howe foi feito treinador em Novembro. Em Abril, atingiu as seis vitórias consecutivas na Premier, repetindo feito que não se via desde… Sir Bobby. Nesse 2021-22, e depois de não conseguir qualquer vitória nas primeiras 14 jornadas, Howe conseguiu o 11º lugar. Obviamente, tornou-se o homem da confiança da Yasir Al-Rumayyan, o mandatário árabe feito presidente.

Com carta branca para fazer o que quisesse, Howe mostrou porque é nome cotado o suficiente para ter concorrido contra Tuchel pelo cadeira dos Três Leões. O quarto lugar em 2022-23 veio adocicado não só pela possibilidade de regresso à Champions (na qual se eternizou com o 4-1 ao PSG) como pela proeza paralela de ir a Wembley disputar a Taça da Liga. O Manchester United, uma vez mais, serviu para mostrar o caminho.

«The first timewas too emotional» disse Trippier ao Guardian, explicando os pormenores que ditaram as diferenças entre 2023 e o sucesso actual. Os Magpies, por decisão de Howe, mudaram a sua base de estágio do Wembley Hilton, a seis minutos a pé do estádio, para Hertfordshire, a 50 minutos de carro.

«We were more calm before this final, more relaxed. We’d been in this situation before and we knew how to handle it. I’ve played in many finals in my career and when you stay so close to the stadium, the supporters are there and players who have never played in a final before … it’s emotional. It can take a lot out of you, a lot of energy.»[2]

O plano é a longo prazo, os erros vão-se corrigindo sem recorrer desesperadamente ao dinheiro para tapar imediatamente os buracos – o desenvolvimento humano e a construção duma verdadeira identidade, assente na solidariedade e no voluntarismo, duma dinâmica muito mais de luta que aquela preconizada por Keegan ou Robson, leva sobretudo tempo, a única coisa que não se compra.

«Myself and the rest of the leadership group will keep everybody level-headed. We’ll enjoy the occasion but the most important thing is that we’ve got 10 games left and we want to finish in the top four. You don’t want to get carried away. It’s all about building and we’ve got a big run-in ahead.»

Desses 10 jogos, seis são em casa – Brentford, Rúben Amorim, Crystal Palace, Ipswich, Chelsea e Everton. É fácil ficar optimista e almejar os lugares de qualificação para a Champions. A instabilidade dos Grandes, que é preferível atribuir-se à competitividade enquanto “melhor” liga do mundo, leva a uma imprevisibilidade na definição do top4. Liverpool, disparado no primeiro lugar, não entra na discussão; Mas o Chelsea, quarto classificado, dista só dois pontos dos Magpies. O Forest de Nuno Espírito Santo, que insiste em manter-se na luta apesar das previsões que consideram inevitável uma baixa de ritmo, vai só sete pontos à frente.

O momento da conquista torna-se ainda mais simbólico como homenagem a Darren Eales, CEO do clube que foi obrigado a afastar-se por período indeterminado no último Setembro, por motivos de saúde. O britânico de 52 anos foi outro a merecer a confiança da PIF desde o início do projecto pela sua desenvoltura nas questões administrativas ao serviço dos Atlanta United, ele que foi um dos fundadores do projecto americano em 2014 e conseguiu, em pouco mais de cinco anos, um legado duradouro – foi com ele que se conseguiu a maior média de público da MLS e o plantel mais valioso da liga, condições indissociáveis de títulos, materializados com a MLS Cup de 2018, a US Open Cup de 2019 e a Campeones Cup do mesmo ano.


[1] https://www.independent.co.uk/sport/football/premier-league/manchester-united-newcastle-1995-96-season-ferguson-keegan-a9429656.html

[2] https://www.theguardian.com/football/2025/mar/17/newcastle-must-concentrate-on-getting-a-top-four-place-now-insists-trippier