Na era dos super-heróis do ciclismo, houve um momento em que havia desconfiança face a Remco Evenepoel. Todos lhe reconheciam o potencial, todos sabiam que se perdera um lateral-esquerdo mediano no futebol para ganhar um craque no ciclismo. Ainda assim, criticavam-lhe a arrogância, não gostavam do discurso, apontavam-lhe o dedo quando o ouviam queixar-se, lamentava-se que, diziam alguns, ele fosse demasiado ambicioso.

Mas a ambição é justificada, o ego assenta num talento incrível. Remco Evenepoel: 24 anos, vencedor da Vuelta, ganhador de etapas no Tour e no Giro, duas Liège-Bastogne-Liège, campeão do mundo em 2022.

Remco Evenepoel, dono dos melhores Jogos Olímpicos no ciclismo de estrada masculino da história. Pela primeira vez, um homem ganhou o contra-relógio e a prova em linha, obtendo dois ouros consagratórios, históricos, épicos.

Épico. Foi com toques de lenda, de filme, que o belga ganhou. A menos de quatro quilómetros, teve um furo e foi obrigado a trocar de bicicleta. Em condições normais, seria um momento de drama, um ouro garantido perdido por um problema mecânico.

Não para ele. Não para ele, que tinha uma margem enorme, não para ele, que se passeou nos metros finais, não para ele, o rei de Paris, já um desportista mítico na história da relação das bicicletas com os Jogos.

Jared C. Tilton

A qualidade de Remco merecia isto. Não só a qualidade, o talento, mas a essência do belga, a sua natureza completa, a versatilidade. Evenepoel não só ganhou, mas fê-lo como ele faz, ditando as regras, indo em solitário, naquelas cavalgadas que são uma imagem de marca.

Na meta, parou, saiu da bicicleta, festejou com a Torre Eiffel atrás. Grandeza é isto.

O belga atacou, inicialmente seguido por Madouas, o francês que levou o público da casa ao delírio. Mas Evenepoel não podia ser seguido, estava demasiado forte e foi, sozinho, para novo ouro, o segundo numa semana, mais um para o tornar, cada vez mais, uma figura de culto no desporto da Bélgica.

Mais atrás, a festa foi francesa. Madouas foi segundo, Laporte terceiro. Rui Costa não teve uma tarde feliz, furando a 36 quilómetros do fim e ficando de fora da discussão. Acabou na 46.ª posição. Nélson Oliveira foi o melhor português, em 33.º.

Tim de Waele/Getty

Pela segunda vez nestes Jogos, o desporto saiu às ruas de Paris. Depois do triatlo, o ciclismo deu um tour de beleza pela capital e arredores, passando por toda a panóplia de locais icónicos e instagramáveis, de Versalhes a Montmartre. O pequeno pelotão, de apenas 90 corredores, viajou durante 272.1 quilómetros, a prova olímpica mais longa de sempre nas duas rodas.

A quantidade de participantes foi, justamente, um dos temas de conversa nos bastidores da prova. Com vários ciclistas de países de escassa tradição, que cumprem as quotas da União Ciclista Internacional, de Hong Kong ao Ruanda, das Maurícias à Tailândia, da Mongólia ao Irão, o leque de homens que vieram verdadeiramente disputar a competição era muito pequeno, não chegando às seis dezenas, um pelotão de número bem mais reduzido do que em qualquer competição do World Tour.

Nestas condições, ainda para mais sem comunicações por rádio entre ciclistas e entre os ciclistas e os respectivos carros, controlar a corrida era uma impossibilidade. Era uma luta imprevisível, aberta, sem espaço para que os mais fortes levassem a prova para um espaço de conforto.

Um cenário de audácia, amigo de Remco.

Note-se que, nos últimos quatro Jogos, o ouro nunca foi para os maiores favoritos: Samuel Sánchez em 2008, Alexandr Vinokourov em 2012, Greg Van Avermaet em 2016 e Richard Carapaz em 2020 não eram os maiores candidatos, mas aproveitaram o caos desta competição olímpica para brilhar.

Um dos prejudicados pelas particularidades deste corrida foi o homem que lhe deu início. Peter Sagan, que tem no ouro olímpico uma das poucas coisas que não ganhou, foi o encarregue de, no Trocadéro, bater com o bastão no chão, o ato simbólico que inicia cada competição aqui em Paris.

Depois da habitual fuga de corredores de países de pouca expressão, as coisas começaram a aquecer a 95 quilómetros da meta. Nas subidas empedradas de Montmartre, há muito que o clima aquecera, tal era a festa que ali se vivia, com muito público, desde cedo, na beira da estrada, com níveis sonoros certamente ajudados pelo consumo de álcool na zona.

Ao entrar em Paris, nos 60 quilómetros finais, o fogo de artifício estava lançado. Ataques e mais ataques, tensão, a dúvida sobre que ofensiva seria a certa, a vencedora.

No circuito de três voltas na cidade, viu-se uma capital a abraçar os ciclistas, com milhares e milhares de pessoas nas ruas, numa notável expressão popular, uma excecional tarde de olimpismo, de desporto de elite grátis, de atletas correndo pelo coração destas ruas cheias de beleza enquanto, na beira da estrada, o público os vitoriava.

As ascensões a Montmartre, nas ruas estreitas empinadas, foram o ponto alto do circuito. Uma curva à direita, mesmo às portas do Moulin Rouge, iniciava a parte mais exigente da competição. Foi aí onde, a 45 quilómetros do fim, o épico Mathieu van der Poel atacou. VDP foi seguido por Van Aert, os queridos inimigos. Mas a tarde não era deles.

Tim de Waele/Getty

Os Jogos Olímpicos são de Remco Evenepoel. Foi dele o movimento vencedor, foi dele a vitória incontestada, mesmo com um furo, mesmo perante tão forte concorrência.

Ganhou com uma ampla margem para a concorrência, adversários que deram à França uma tarde de glória. Se o público abraçou o ciclismo, os seus ciclistas corresponderam. Madouas, o último a abandonar Remco, foi segundo. Christophe Laporte, que chegou num grupo reduzido, levou o bronze.