O hino de Espanha não é cantado. Toda a gente sabe isso. Mas, numa tarde de novembro em Málaga, os acordes da canção tiveram direito a letra. À letra das lágrimas do melhor desportista espanhol da história.
O peso do momento começava a sentir-se logo ali, na cerimónia de abertura. As Davis Cup Finals, a decisão da Taça Davis, arrancavam com os quartos de final entre os anfitriões e os Países Baixos, mas a quebra do protocolo faria com que até um extraterrestre percebesse a dimensão do momento.
O hino mal principiara e Rafa Nadal começou a chorar. Todo o recinto apercebeu-se disso e começou a aplaudir, num gesto partilhado pelos colegas de seleção do homem de 38 anos. Era uma bela metáfora: um país a aplaudir um dos homens que mais glória desportiva lhe trouxe, numa ovação feita em cima do hino nacional, como se aquele hino, sendo de todos, fosse, particularmente, o hino de Rafa, tal a quantidade de vezes que ele fez com que aqueles acordes se ouvissem em courts de todo o mundo.
Desde que, a 10 de outubro, o balear anunciou que o adeus seria nesta Taça Davis, toda a Espanha marcou esta data no calendário. Poderia ser hoje ou não. Poderia ser hoje o fim daquela direita que parece um helicóptero, dos pontos impossíveis, da crença, do “Vamos!”, do punho esquerdo cerrado enquanto se celebra um winner, das correrias ao longo do court. De uma carreira feita a correr atrás do impossível, como um perseguidor de horizontes que sabe que, quanto mais a meta se afasta, mais rápido ele terá de sprintar.
Poderia ser hoje o adeus. Foi hoje o adeus? Não sabemos. Nadal perdeu (6-4,6-4) contra o neerlandês Botic van de Zandschulp, o encontro inaugural da eliminatória entre Espanha e Países Baixos. Está nas mãos dos companheiros da equipa espanhol, que têm de dar a volta aos quartos de final, que tudo não termine assim, dando a Rafa mais uma chance.
Na manhã deste possível último jogo que ainda não se sabe se o foi ou não, surgiu logo uma primeira confirmação. Não se sabia se Nadal entraria em campo, ele que continua a lutar contra problemas físicos, as eternas dores, as lesões que marcaram a sua carreira. Nas últimas semanas, foi a Barcelona ser observado por Ángel Ruiz, seu médico de confiança, e chegou a Málaga não garantindo estar apto para jogar.
Mas jogou. Do outro lado estava Botic van de Zandschulp, 80.º do ranking ATP, dono de uma carreira relativamente anónima que, quem sabe, poderá passar a figurar em quizzes de cultura geral. “Quem foi o último adversário da carreira de Nadal?”.
A família do dono de 22 majors, presente nas bancadas, dava camadas de emoção a uma tarde que, já de si, era de emoções. De emoções e homenagens, tributos, de devoção perante um desportista lendário. Em Paris, a cidade que, como nenhuma outra, conheceu a glória do balear, foi projetada uma imagem de Nadal, de 10 metros de altura, no Trocadéro. Logo pela fresca, Roger Federer escreveu uma emocionada carta de despedida ao rival e amigo.
Antes desta possível despedida, Nadal garantira que estava “em paz”. E, a essa paz, juntou, por uma tarde, alguns minutos de resistência Nadaliana. Sim, é verdade que o peso da bola não é, sequer, parecido ao dos melhores tempos, que as trocas de bola longas se tornam difíceis, que um adversário banal como Van de Zandschulp se torna um rival a temer. O tempo, o grande ditador, não perdoa, a inatividade — recentemente só disputou um encontro, numa exibição contra Djokovic na Arábia Saudita — deixa marcas.
Mas, se isto foi a despedida, Nadal despediu-se a lutar. À Nadal. Acreditando numa reviravolta impossível, acreditando que poderia derrotar o tempo, as lesões, as dores, o cansaço. Perseguindo o impossível, como sempre, acreditando que, tendo perdido o primeiro set e tendo duplo break de desvantagem no segundo, conseguiria ganhar.
“Sí se puede!", cantou, na segunda partida, a arena de Málaga. Se isto foi a despedida, Nadal contagiou o público num último exercício de crença, como crença teve aquele tio que criou um regime de treino ultra-exigente para um menino de Manacor.
Rafa, a lenda dos 22 Grand Slams, a lenda dos 14 Roland-Garros, é, também, uma lenda da Taça Davis. Pentacampeão da competição por países, possuía um incrível registo de 29 vitórias e uma derrota até este embate. Não estava do lado perdedor da rede desde a sua estreia, em 2004. O hino espanhol, o hino de Rafa, o hino das lágrimas.
No primeiro parcial, o neerlandês foi claramente superior. O espanhol só teve quatro pontos ganhantes, nunca ficando, sequer, perto de quebrar o saque do seu adversário. Na segunda partida, Botic obteve dois breaks muito cedo, antes do tal exercício de resistência Nadaliana. A crença, o punho cerrado, o remar contra o impossível.
Não chegou. Duplo 6-4, vitória para os Países Baixos, 1-0 na eliminatória.
Não deixa de ser curioso que a carreira de Nadal, o homem que tanto fez pelo ténis espanhol, dependa, neste momento, do que os seus compatriotas façam por si. Desde logo, do que Carlos Alcaraz, o herdeiro, faça por si.
Foi a despedida ou não? Não sabemos. O que sabemos é que, perante a carreira do homem que perseguiu o impossível, só há uma coisa a fazer: deixar soar o hino espanhol, levantar-se e aplaudir.