No exigente futebol inglês, nem todos os jogadores podem dizer que atuaram no principal escalão. O lote torna-se ainda mais restrito quando analisamos os atletas que realmente conseguiram vingar, jogando múltiplos anos no patamar em questão. E futebolistas que chegaram ao topo provenientes de experiências na... quarta divisão?
Bem, certamente são casos pontuais. O português Luís Boa Morte foi um dos futebolistas que não teve medo de perseguir o seu sonho, impressionando os departamentos de scouting britânicos com a sua irreverência dentro das quatro linhas. De dispensado pelo Sporting a campeão da Premier League, passando, de forma risonha, pelo Lourinhanense, um meio inesperado de ligação.
O zerozero esteve à conversa com o antigo internacional luso, agora selecionador da Guiné-Bissau, para entender como se deu esta transição abrupta e para conhecer todo o percurso do antigo extremo.
Conseguiu chegar, mas não conseguiu convencer
Em 1988, o avançado deu início ao seu percurso no Arrentela, emblema que, apesar de ter sido o destino inicial, foi também uma paragem temporária.
No entanto, com apenas 12 anos de idade, Boa Morte foi atrás de um portal mágico. De um portal que o transportasse para o clube do seu coração: «Tentei a minha sorte nas captações do Sporting. O problema é que éramos 200 a 300 miúdos a tentar ficar na equipa. Nos tempos atuais, o processo não leva tanta gente. Felizmente, os treinos correram-me bastante bem e eu acabei por conquistar o meu lugar.»
Posto isto, tudo faria crer que a nova jóia leonina iria fazer estragos nas camadas jovens do emblema de Alvalade. Para desalento do protagonista deste conto, não foi isso que aconteceu. Após duas temporadas menos conseguidas, o avançado acabaria por rumar ao Cova da Piedade, com o intuito de consolidar as suas habilidades e de dar continuidade ao seu processo de desenvolvimento.
Luís Boa Morte acabaria por regressar ao Sporting, integrando um núcleo composto por, entre outros, Dani e o técnico Fernando Mendes. Porém, a afirmação no conjunto leonino tardava em aparecer, com interrogações sobre o seu potencial a começarem a surgir com um maior volume. A verdade é que os Deuses do Futebol tinham reservado uma outra maneira para Boa Morte alcançar o desejado fim, através de um caminho alternativo.
Cá em baixo de olhos no topo da montanha
Perante a falta de rendimento, a turma leonina decidiu emprestar o avançado a um conjunto da quarta divisão nacional, com o objetivo de acelerar o período de maturação do seu pupilo: «Na altura, não estava mesmo à espera de ir para o Lourinhanense. Era um clube-satélite do Sporting, onde este tipo de cedências eram comuns», referiu Boa Morte, numa primeira instância, ao zerozero.
Contudo, num plantel que contava com Marco Caneira e Nuno Assis, o extremo abriu o livro. Golos, assistências, momentos de magia. A sua qualidade técnica conduziu a Loba à conquista da Série D da III Divisão (quarto escalão), bem como à chegada à fase final da prova. Ainda assim, a turma da Lourinhã cedeu perante Os Sandinenses no derradeiro encontro.
A fase de grupos do Torneio de Toulon 1997 também foi uma montra importante para o extremo expor todas as suas capacidades. Boa Morte era titular indiscutível pelos sub-21, onde mostrava todas as suas valências: «Eu era um jogador bastante direto. Usava a minha velocidade para ultrapassar os defesas que apareciam à minha frente.»
«Em frente da baliza, também costumava ter muita calma. Para além de marcar, servia os meus colegas de equipa quando eles se encontravam em melhores posições do que eu. Também nunca dava um lance por perdido. Independentemente do resultado, sempre fui bastante combativo.»
Por caminhos alternativos também se realizam sonhos
O Arsenal, atento às pérolas fora de portas, ficou admirado com as prestações do jovem de 19 anos e, como tal, apressou-se a adquirir o passe do jogador à formação da capital lisboeta. O colosso de Inglaterra, à época, procurava voltar ao caminho do título de campeão inglês, sob a alçada de Arsène Wenger, que dava os primeiros passos nos gunners. Uma história que viria a ser duradoura.
«Todos os meninos que se interessam por futebol têm o sonho de ir jogar para a Premier League. Antigamente, nós tínhamos dificuldades em ver o campeonato inglês pela televisão. Só tínhamos acesso ao jogo da final da Taça de Inglaterra, no final de maio. Quando ainda era uma criança, lembro-me de ver o programa Domingo Desportivo para ver os golos da Division One», referiu, nostálgico.
«As crianças anseiam em jogar nos estádios mais míticos do mundo, como é o caso de Wembley. Eu encarei todas as minhas quedas no futebol como parte do processo. Ao início, sinto que desperdicei as minhas oportunidades, mas, posteriormente, consegui agarrá-las», acrescentou.
23 de agosto de 1997. Boa Morte deixou de ver os tentos na TV e pisou pela primeira vez os relvados do campeonato inglês, num Southampton-Arsenal. No The Dell, o esquerdino viu Marc Overmars abrir o marcador. Posteriormente, após a finalização certeira dos saints, começou o show de um mágico neerlandês. Dennis Bergkamp anotou um bis e garantiu os três pontos à sua equipa.
«O Bergkamp fazia coisas extraordinárias em campo»
Os elogios por parte do português ao elegante avançado são muitos: «Já o conhecia dos tempos do Ajax e do Internazionale. Por causa disso, acabou por não me surpreender. Já sabia o quão bom ele era. No entanto, havia coisas que ele fazia em campo verdadeiramente extraordinárias. Aprendi muito com ele. Aliás, fui muito bem recebido por toda a gente.»
Com futebolistas de classe mundial, como David Seaman, Lee Dixon, Patrick Vieira, Ian Wright ou Nicolas Anelka, os gunners acabariam mesmo por superar os adversários diretos e conquistar o 11º campeonato da sua história. Boa Morte acredita que a personalidade forte de Wenger foi decisiva para o desfecho final.
«Ele tinha uma excelente relação com os jogadores, conseguia motivá-los de uma forma especial. Claro que existiram momentos muito bons e outros maus ao longo do percurso, mas ele arranjou sempre forma de conseguir dar a volta às situações menos positivas», afirmou.
Ao longo de duas temporadas, Luís Boa Morte fez o gosto ao pé em quatro ocasiões distintas pelo clube. Apesar do pouco tempo no emblema londrino, o avançado assegurou que o Arsenal foi um ponto importante de aprendizagem na sua recheada carreira. Seria no Fulham que acabaria por escrever os capítulos mais bonitos, fazendo jus a uma caminhada peculiar em direção ao sucesso em Inglaterra, o crème de la crème .