Ricardo Pereira é uma das grandes referências no treino de guarda-redes a nível internacional. Apaixonado pela posição, não hesitou em abraçar desafios nos quatro cantos do mundo, com passagens pela Europa, América do Sul e Ásia — onde atualmente continua a sua carreira. Com vasta experiência a trabalhar tanto com jovens promessas como com atletas consagrados, procura sempre transmitir os seus conhecimentos, ciente de que a posição de guarda-redes está em constante evolução. É o mais recente convidado da Entrevista Bola na Rede, onde falou sobre o seu percurso e refletiu sobre a realidade e o futuro da posição.

Bola na Rede: Olá, Ricardo. Obrigado por ter aceitado o nosso convite.

Ricardo Pereira: Antes de tudo, deixa-me dar-te os parabéns pelo vosso projeto. Têm recebido moral até do Bruno Lage. São os únicos que têm proporcionado algum sumo e conseguido extrair alguma conversa sobre futebol. Têm feito o mesmo com o Martín Anselmi. Dar-vos os parabéns pelo trabalho diferenciado que eu acho que têm vindo a fazer.

Bola na Rede: Obrigado, Ricardo. Vamos começar pelas quatro linhas. Nos últimos anos temos visto uma evolução em todas as posições do terreno. Como é que viu esta evolução nos guarda-redes?

Ricardo Pereira: Esta é a verdade. É aquela posição que desde muito cedo me apaixonou. Amar a baliza foi um dos primeiros amores que eu tive na vida. Eu joguei e atuei até quase aos 40 anos, já andava a treinar os guarda-redes do Benfica. Amar o guarda-redes foi o que me atraiu para o treino. Poder ter o meu quinhão, ainda que muito humilde, nesta evolução. É uma posição que sem qualquer dúvida evoluiu muito e este evoluir foi determinado por tudo o que tem sido as alterações nas regras de jogo. Nós, intérpretes do jogo, temos de acompanhar esta evolução e as mudanças que existem. Há uma mudança muito grande na regra, que está relacionado com a regra do atraso, que alargou o leque de responsabilidades e de comportamentos do guarda-redes. Tudo aquilo que tem sido a evolução do jogo na sua velocidade obriga a que o guarda-redes cada vez tenha de ser mais capaz e acima de tudo acho que alargou muito a sua ação. Estávamos habituados a ver o guardião a atuar em meia dúzia de metros, na pequena área, e hoje em dia um guarda-redes capaz, competente e que queira servir o modelo de jogo da sua equipa, tem que jogar muitos metros à frente da sua linha. Eu acho que nos habituámos a ter um guarda-redes que tinha que defender a baliza e passámos a ter um guarda-redes que tem que defender o espaço. Passámos de ter um guarda-redes que limpava a bola para longe da baliza e que hoje em dia ataca o espaço deixado pelo adversário, quando está em posse de bola. É uma evolução gritante e faz com que os modelos de jogo que utilizem bem o guarda-redes, passem a jogar com 11, em vez de o 10+1.

«Há um momento no jogo em que à equipa já só pode salvar Deus, para quem é crente, e o guarda-redes».

Bola na Rede: O Ricardo foi guarda-redes nos anos 90 e nos 2000. Os guarda-redes dessa altura não têm nada que ver com os atuais ou ainda existem muitas parecenças?

Ricardo Pereira: É importante, dizemos nós em Portugal, não confundir a estrada da Beira com a beira da estrada. Não nos esqueçamos que o guarda-redes começa a jogar desde pequenino, pelo menos para quem escolhe esta posição. A missão é salvar a equipa, evitar que a bola entre na baliza. Esta continua a ser a principal função e era algo que o guarda-redes de outros tempos o faziam de uma forma brilhante, independentemente de terem ou não as caraterísticas físicas que se diz hoje em dia que os guarda-redes devem ter, nomeadamente a estatura. Quando vamos ao passado e nos lembramos de um Manuel Bento, não podemos dizer que tivesse o corpo ou a estatura que hoje em dia se pede para a posição, mas que defendia muito, operava verdadeiros milagres. Era um guarda-redes na verdadeira aceção da palavra. Uma das funções principais do guarda-redes continua a ser a de defender a baliza e a de ajudar a equipa. Eu costumo dizer que há um momento no jogo, que por mais que atuemos preventivamente, tentando ganhar a bola no espaço, há um momento no jogo em que já só Deus e o guarda-redes podem salvar a equipa. O guarda-redes continua a estar disponível para a levar com a bola na tromba, dito em bom português (risos), de maneira a que possa evitar que a bola entre na sua baliza. É evidente que eu não posso dizer que é igual. As funções e as capacidades tiveram que ser aprimoradas em muitas outras coisas. A função primordial de defender a baliza, com qualidade, continua a ser aquilo que o público quer ver. A própria equipa espera isso do guarda-redes. Pode fazer muita coisa bem, mas que defenda e ocupe muito bem o espaço de defesa da sua baliza.

Bola na Rede: O Ricardo trabalha atualmente no futebol sénior, mas também já passou pelas camadas jovens. Qual é a grande diferença entre os escalões? Treinar miúdos e homens presumo que seja distinto…

Ricardo Pereira: Sem dúvida. É obvio que olhamos para as capacidades físicas, que são a primeira coisa que me ocorre. Porém, não nos podemos esquecer que temos a tendência no treino de guarda-redes a partir muito o jogo. Por exemplo, agora estamos só a desenvolvimento da tática, agora estamos só a fazer o desenvolvimento das capacidades físicas. O jogo não é nada disto. Nós somos filhos de uma das coisas em Portugal que mais nos devia orgulhar, que se chama a periodização tática. É algo que é seguido por todo o mundo. Vem-se a Portugal, e neste caso à Universidade do Porto, onde estava o seu inventor, e vem-se beber disto. A periodização tática ensinou-nos a todos nós a integração de todos os fatores do treino. Isto foi ao respeito daquilo que é o jogo. Treinar é treinar o nosso jogo. Trata-se de jogar. Não nos podemos esquecer isso e acho que nos esquecemos um bocadinho quando achamos que a formação é apenas para o desenvolvimento de capacidades técnicas. Ou para aprimorar uma coordenação. E onde é que fica a integração dos outros fatores? O conhecimento do jogo? O desenvolvimento de um guarda-redes passará sempre pelo conhecimento do jogo, pelo adquirir de competências. Eu posso dominar, ter uma técnica perfeita e depois não conseguir executar no tempo e espaço correto. Pode não ser a técnica requerida para aquela situação. Para mim isto é transversal desde a formação até ao futebol sénior. É assim que eu vejo o treino.

Bola na Rede: Dizem que os guarda-redes têm um pico de carreira mais tardio que outras posições. Está de acordo com esta afirmação ou é algo que já não existe?

Ricardo Pereira: Aqui tenho que ir buscar um exemplo, voltando a ser critico de nós próprios, os treinadores de guarda-redes e que nos possam fazer refletir um bocadinho. Vítor Frade uma vez contou uma história que eu guardei com muito carinho. Ele diz que o jovem guarda-redes só cresce se estiver numa situação sensível. Se estiver entregue aos treinos de um guarda-redes normais, está ‘lixado’ e vai regredir. O treino não é nada anticipativo e sobre tudo com contestação. Isto faz-nos ver determinados contextos, com guarda-redes jovens e com muito conhecimento do jogo e porque é que nos aparecem guarda-redes igualmente muito jovens, mas com tantas lacunas na tomada de decisão e ao nível do conhecimento do jogo. Tudo isto passa por desde muito cedo jogar e treinar a jogar. Treinar a poder cometer erros. Treinar e jogar na tentativa-erro. É disto que vive a nossa aprendizagem. Se voltar a compartimentar o treino, com a idade da técnica, a idade do desenvolvimento físico, eu não vou conseguir expor este guarda-redes a tudo aquilo que ele precisa para chegar ao patamar sénior com conhecimento do jogo. Dou aqui um grande exemplo, o nosso Diogo Costa. Ainda tem uma margem tremenda para evoluir, na minha humilde opinião. Porém, se há coisa que eu considero que não falta ao Diogo, é conhecimento do jogo. Ele lê muito bem todas as situações do jogo. Faltam outras coisas ainda, se calhar uma delas é a de estar exposto continuamente a sair de zonas de conforto, nomeadamente no próprio treino, mas não sou eu que o treino, por isso tenho pouco a ver com isso. O Diogo Costa é um excelente exemplo de um guarda-redes em Portugal que andou continuamente em patamares à frente da sua própria idade. Foi testado muito cedo na Segunda Liga, que o preparou para assumir a baliza do FC Porto tão cedo. É um exemplo de deixar cometer erros. Podem-lhe faltar algumas coisas, mas conhecimento de jogo é algo que não lhe falta.

Bola na Rede: Falando do Diogo Costa, lembrei-me de um bom tópico que nos pode esclarecer. O Ricardo está habituado a trabalhar com guarda-redes e no exemplo do Diogo Costa é o titular absoluto, com o Cláudio Ramos a ser o suplente. Como é que se gere isto do guarda-redes titular, do suplente, do terceiro guarda-redes? Só pode jogar um… Como é que se gere o sentimento dos que jogam menos?

Ricardo Pereira: Uma excelente pergunta, muito interessante. Gere-se em primeiro lugar com uma atenção muito individualizada também a quem não joga. Todos fazem parte de uma ideia coletiva, mas têm as suas necessidades individuais. As necessidades individuais do Diogo Costa não são seguramente as do Cláudio Ramos. O Cláudio Ramos necessitará de ir todos os dias para casa com a sensação que o treino pelo menos lhe substitui parcialmente o que foi o jogo. Que tem exatamente a mesma dedicação naquilo que é o detalhe de finalizar o treino e ter dois minutos de vídeo do essencial do seu treino no Whatsapp, tal como o Diogo Costa. O Cláudio Ramos tem que ter um plano individualizado de melhoria, tal como o Diogo Costa, ao qual, eu como treinador de guarda-redes, lhe dedico exatamente a mesma atenção e a mesma dedicação. Mesmo faltando-lhe o jogo, que é o mais importante para o desenvolvimento de um jogador, o treino pelo menos parcialmente suprime estas lacunas. Esta atenção individualizada faz com que o Cláudio não sinta aquilo que não pode sentir, que é o ‘estou só e apenas a cumprir um número’. Cada um tem o seu papel e a sua ambição de jogar. cada um tem que ter o seu plano de desenvolvimento individual. Eu sou perito, já que dedico muitas horas aos meus guarda-redes. Sou especialista em trabalhar com o segundo, com o terceiro, quarto e o quinto, com toda a humildade. Dedico tanta ou mais atenção aos da equipa B, em relação ao que está a jogar.

«O Cláudio Ramos necessitará de ir todos os dias para casa com a sensação que o treino pelo menos lhe substitui parcialmente o que foi o jogo».

Bola na Rede: A sua primeira aventura fora de Portugal foi na Arábia Saudita, um destino que hoje ‘está na moda’. Qual o nível dos guarda-redes por lá? Geralmente vemos muitas críticas negativas…

Ricardo Pereira: Temos que dividir a Arábia em dois momentos. Fui para lá em 2016, já passaram quase 10 anos, para o Al Fateh. Na altura só podíamos ter guarda-redes sauditas. O saudita não deixou de ser saudita, mas hoje em dia sentimos toda uma influência de treinadores de guarda-redes estrangeiros e de companheiros estrangeiros, que vão servindo de modelagem ao seu desenvolvimento. Na altura sentia que os níveis técnicos e táticos ficavam muito aquém daquilo que tínhamos na Europa, o que me fez de alguma forma simplificar o trabalho. Tomadas de decisão muito mais simples, execuções muito mais simples, porque havia um trabalho de base que não tinha sido feito e não era consistente. Na minha segunda passagem, que foi muito curtinha, onde terminei como treinador principal, no Al Taawon, foram apenas meia dúzia de jogos, quase, já senti que o nível tinha subido um bocadinho, mas ainda está aquém do que estamos habituados a trabalhar na Europa.

Bola na Rede: Gostou da parte de ser treinador principal?

Ricardo Pereira: Eu sou um apaixonado em primeiro lugar pelo jogo. Não é a minha paixão ser técnico principal, foi algo que fiz pela necessidade. Havia que tomar uma decisão. Eles despediram o treinador e eu tinha integrado a estrutura do clube. Ou eu me ia embora e deixava a equipa sem ninguém ou ‘já que aqui estou e com a ajuda deste adjunto saudita vamos salvar a equipa’. A equipa estava na linha de água e conseguimos efetivamente salvar a equipa. Agora, quando tu gostas muito do jogo e vês o treino do guarda-redes de uma forma global, tu vais aprendendo o que é o jogo. Eu estou habituado no contexto de treino a ajudar o treinador adjunto a trabalhar a linha defensiva, estou muito habituado a trabalhar as bolas paradas, muitas vezes sozinho. Há todo um conhecimento de jogo que eu vou tendo e estou muito habituado a saber qual é o comportamento do guarda-redes quando a equipa está numa pressão muito alta. Sempre olhei muito para o jogo e não ser o rapazinho simpático que está no cantinho a bater umas bolas com quatro guarda-redes, a fazer coisas descontextualizadas. Nunca encarei o treino desta forma. A experiência foi desafiante e que não desgostei. Antecipando-me à pergunta se é algo que eu quero fazer, a resposta é não. Gosto muito daquilo que faço. Gosto muito de treinar o jogo, mas a partir de trás, de uma construção por trás, a partir de uma defesa do espaço, da defesa da baliza, em conjugação com uma linha defensiva. Gosto de ver o jogo de frente e não estará a olhar para trás. Foi um desafio bonito, mas se calhar foi mais bonito ainda porque correu bem. Se tivesse corrido mal, teria sido um dos primeiros treinadores de guarda-redes com uma descida de divisão no currículo enquanto técnico, o que não seria agradável (risos).

Bola na Rede: Cumpriu o sonho da maioria das pessoas que gostam de futebol, que foi atuar em Inglaterra. Que tal a experiência?

Ricardo Pereira: Gostei muito. Inglaterra não me seduziu particularmente pela comida e pelo tempo. É algo que nos temos que nos adaptar. Tudo o resto em torno do jogo é fantástico. Tive a oportunidade de ver vários jogos do Nottingham Forest, de ver a forma como o futebolista inglês e os estrangeiros que chegam a Inglaterra são profissionais. É um grande nível de profissionalismo. É uma grande intensidade como se trabalha. Senti-me como um peixe na água. Também senti outra coisa: levar uma ideia de treino para Inglaterra, um bocadinho diferente daquilo que guarda-redes e treinadores de guarda-redes estavam habituados, sentindo uma grande recetividade em relação ao que estava a fazer. Foi uma experiência que gostei muito e é um local onde eu provavelmente não gostaria de terminar a carreira sem regressar, provavelmente já não a um contexto de formação, mas sim de patamar profissional e sénior.

Bola na Rede: Porém, em 2020 opta por dar uma oportunidade ao Independiente del Valle. Porquê?

Ricardo Pereira: Principalmente porque, por muito gozo que me desse estar a desenvolver um projeto nos escalões de formação do Nottingham, eu estou no treino também pela competitividade. A mim não me pode faltar a competição. Jogar para ganhar é fundamental para mim. Se ganhas ou não, isso é outra questão. O projeto do Independiente del Valle pareceu-me tremendamente interessante. Claro que chegar a um país como o Equador é diferente a estar em Inglaterra. As condições socioeconómicas daquele povo que eu amo, são diferentes. O Equador foi das experiências mais bonitas que tive na minha carreira nos últimos anos e eu tenho andado por vários sítios. Tinha acabado de deixar de ser coordenado pelo Roberto Olabe, que faz um trabalho notável na Real Sociedad, tinha um treinador como o Miguel Ángel Ramírez, que me cativou desde a primeira conversa. A conversa com as pessoas do clube foi ótima. Passei pelo mesmo processo que o Renato Paiva passou alguns anos depois. Senti que estávamos a ser alvo de uma verdadeira entrevista e que havia competências que as pessoas queriam que tu demonstrasses para poder ser o escolhido para a função. Tudo isto me cativou, eu vi qualquer coisa de diferente naquele projeto, independentemente de ser o Equador. Eu fui para um projeto chamado Independiente del Valle e em boa hora o fiz.

Bola na Rede: O Ricardo, tal como o Roberto Olabe e o Miguel Ángel Ramírez (mais tarde), acabou por ir para Espanha, mais precisamente para o Real Valladolid. Como foi o sabor da promoção na temporada passada?

Ricardo Pereira: Foi algo inesquecível. Ainda não provei o Championship, mas posso dizer que a la Liga 2 é tremendamente difícil. Há muita competitividade. Tão depressa estás em nono, como podes estar em terceiro, uma ou duas semanas depois, por exemplo. Foi muito difícil. É um clube que vive uma instabilidade entre o que é a ligação dos adeptos à sua direção. Não nos podemos esquecer que temos um craque do futebol mundial como presidente do Real Valladolid, o Ronaldo Fenómeno. Se no começo foi muito bem acolhido, neste momento a convivência já não é tão fácil. Vivemos isto tudo de dentro e queríamos apenas e só preocuparmo-nos com o que era o futebol. Foi tão difícil como saboroso. Foi uma experiência incrível, tal como foi experimentar posteriormente a La Liga. Eu aceitei um desafio de risco na minha carreira e como tenho andado sozinho nos últimos anos e sem equipa técnica, tenho-me aberto muito ao mundo. Trabalhei com muitas nacionalidades. Foi mais um desafio de risco para mim, porque eu tinha sido convidado para ir quando eles ainda estavam na La Liga, tinha recusado três meses antes o Flamengo, porque estava muito bem no Equador. Era o tempo de dar esse passo arriscado, por mim e pela minha família. As coisas correram muito bem e se calhar tive a felicidade em equipas que ganharam a Recopa Sul Americana, a Taça Sul Americana, a Taça da Bélgica, considero esta subida um dos grandes feitos da minha carreira, recordando que eu não ganho sozinho.

Bola na Rede: Recordo-me na festa subida, em que o Paulo Pezzolano começa a gritar ‘Pezzolano dimisión’, algo que lhe gritavam durante a época das bancadas. Como é que se vivem estes momentos?

Ricardo Pereira: Vi que ia trazer mais alguns problemas na época seguinte. Porém, eu acho que no período de defeso, o Paulo fez de uma forma inteligente a sua mea culpa. Aquilo é o carácter e personalidade de um uruguaio que levou muita pancada durante todo o ano. Quem não sente, não é filho de boa gente. O Paulo é um excelente treinador, é uma excelente pessoa e tem muito carácter. O que fez ali foi um extravasar de tudo o que foi a época. Se não gritasse ele, sabíamos que os milhares que tínhamos à nossa frente iam gritar. Foi peculiar, digamos. Foi viral, como sabemos. Não podemos deixar pessoas, eu não deixo de ser a pessoa que sou com as minhas emoções, seja para abraçar e beijar, seja para criticar os meus jogadores no treino.

«Tenho a perfeita consciência que se um dia voltar para Portugal não vou receber metade do que alguns dos contratos que fiz na minha carreira, nomeadamente no Médio Oriente».

Bola na Rede: No Real Valladolid cruzou-se com o André Ferreira, que já se encontra em Espanha há algum tempo. O guarda-redes tem sido criticado pela imprensa espanhola devido às suas prestações. Acha que estas críticas são justas?

Ricardo Pereira: As críticas em Espanha são muito fáceis de ocorrer e muitas vezes são injustas. Conheço muito bem o André Ferreira, trabalhámos na formação do Benfica e depois de novo em Espanha. Não considero as críticas justas, considero que este ano, agora que ele está a jogar pela lesão do Karl Hein, lhe custou um bocadinho o regresso, já que estava há algum tempo sem jogar na La Liga. É um guarda-redes que acho que tem muita capacidade. Jogaria na Primeira Liga em Portugal em clubes bem interessantes. É inteligentíssimo, um grande profissional. Não vejo estas críticas assim como tão justas. Reconheço-lhe muita capacidade.

Bola na Rede: Durante esta época voltou ao Médio Oriente, para trabalhar no Al Ain com o Leonardo Jardim. Pergunto porque é que voltou a querer trabalhar nessa zona do globo?

Ricardo Pereira: Houve três motivos. O primeiro foi ter sentido que o projeto do Real Valladolid aos poucos estava a perder a essência e as pessoas que me tinham levado a ir para lá, mesmo estando na La Liga. Eu sou muito de paixão, sou muito de identificação com os projetos, mais do que com os contextos. O segundo motivo, que infelizmente foi por pouco tempo, foi a oportunidade de trabalhar com um grande técnico do nosso país que é o Leonardo Jardim, com quem eu adorei trabalhar. Infelizmente foi mesmo pouco tempo, que ele acabou por sair. Em terceiro, e aquele que às vezes parece que temos vergonha de falar, que é o aspeto financeiro. Eu tinha um contrato muito interessante em Espanha, muito bom mesmo. Mas o que me ofereceram no Al Ain foi financeiramente inegociável. Tal como os jogadores, eu acredito que para treinar da forma como eu treino, com a paixão e dedicação física (que é vital para os treinadores de guarda-redes) que eu coloco, eu tenho mais alguns anos de carreira, mas não vão ser tantos assim. Senti que devo continuar a acautelar aquilo que é o futuro da minha família. Tenho a perfeita consciência que se um dia voltar para Portugal não vou receber metade do que alguns dos contratos que fiz na minha carreira, nomeadamente no Médio Oriente.

Bola na Rede: Nesta entrevista já falámos em alguns nomes como o Diogo Costa ou o André Ferreira. Queria perguntar-lhe como avalia a capacidade do guarda-redes português hoje em dia? Que tal é o nível?

Ricardo Pereira: O guarda-redes português é vítima daquilo que é um contexto. Somos dos países que mais importam guarda-redes. Nós olhamos e, seja pela proximidade da língua, somos provavelmente dos países da Europa com mais guarda-redes brasileiros. Atenção, eu considero o guarda-redes brasileiro um dos mais interessantes que existem hoje em dia, porque há uma escola de trabalho. Temos em Alisson e Ederson dois dos melhores guarda-redes do mundo, na minha opinião. Com isto fecham-se porta e uma coisa leva a outra. Se tu não jogas, não apareces. Se não apareces, diz-se que é porque não tens capacidade. Vamos estancando alguns nomes e o que é o desenvolvimento do guarda-redes. Temos bons guarda-redes. O que o José Sá está a jogar na Premier League, depois do seu trajeto. Ver o que o Rui Silva teve que fazer para chegar ao Sporting. Saiu do nosso país, fez todo o seu trajeto para depois poder regressar. Não há falta de qualidade, não é por falta de qualidade no treino. Temos muitos jovens apaixonados pelo treino do guarda-redes. O treino do guarda-redes está a evoluir e a crescer. Isto tem tudo a ver com os contextos de aposta. Repara, vamos dar exemplos concretos. Quando o Ricardo Velho foi aposta, ele mostrou a capacidade que tem. Quando houve aposta em consistência em Bruno Varela, vê-se as épocas que tem feito no Vitória SC. Sempre que foi dada uma oportunidade ao Samuel Soares, ele apareceu como apareceu. A qualidade está lá. Se calhar há uma tolerância muito maior ao erro do Trubin, por exemplo, que vai haver ao erro do Samuel, que está proibido de errar, de modo a continuar a ser aposta. Quando há apostas consistentes, como nos casos de Rui Patrício e Diogo Costa, eles vão por aí fora e ambos tornaram-se titulares da nossa seleção. Não acho que haja qualquer falta de qualidade, mas sim falta de aposta e da mesma tolerância ao erro que há com o estrangeiro.

Bola na Rede: Para fecharmos, sendo o Ricardo um especialista no tema, que nomes nos aconselha a ter debaixo de olho?

Ricardo Pereira: Eu sou um apaixonado pelo scouting. Como treinador de guarda-redes posso fazer as coisas de duas formas, ignorar a responsabilidade do scouting, ou levar com as balas a posteriori, assumindo o assunto. No Real Valladolid avaliámos 96 guarda-redes antes de escolhermos o Karl Hein. Também tem a ver com a capacidade financeira. Muitos escolhemos e não existiam condições para os contratar. Na minha última viagem por Espanha, alguns nomes chamaram-me à atenção. Há um nome que eu adoro e está debaixo de vista de vários clubes que é o Joan García do Espanyol. O Léo Román do Mallorca também é um perfil interessante. Estes nomes aparecem na La Liga 2, têm a possibilidade de jogar, há uma consistência na aposta. O Leo Román tem jogado menos esta época, mas é um dos perfis mais interessantes. Tenho esperança em outros nomes, mas deixava estes dois nomes. De certeza que me estarei a esquecer de muita gente. O Karl Hein também é outro projeto muito interessante, mas aí sou suspeito. Isto é uma questão de aposta na maioria dos casos. Não estava preparado para essa pergunta (risos). Em Portugal, o Samuel Soares tem oferecido muita consistência, mas também estou fora de Portugal há vários anos.

Bola na Rede: Obrigado por esta entrevista, Ricardo!

Ricardo Pereira: Foi um gosto.