Só Viktor Gyökeres joga o jogo de Viktor Gyökeres. É como se, quando o nórdico está no seu melhor nível, quando respira saúde, houvesse um qualquer feitiço, uma bruxaria viking, que leva as partidas para outra dimensão, para uma realidade onde Viktor é o protagonista e os outros são meras testemunhas, não tanto companheiros ou adversários.

Quando Gyökeres se sente Gyökeres, quando está leve e solto e sem muitas dores, vê-lo acelerar é assistir a qualquer coisa como um fenómeno da natureza, parte furacão que tudo arrasa à sua passagem, parte tsunami que engole quem lhe esboça oposição. Após semanas de dificuldades, do entra e sai, das limitações físicas, das suplências e de algumas ausências, Viktor Gyökeres sente-se Viktor Gyökeres.

Depois do Estoril ter sofrido com um bis do grande predador dos golos do futebol nacional, foi a vez do Casa Pia. Os gansos, o belo coletivo de João Pereira, não perdiam em casa desde agosto. Mas quando Viktor Gyökeres joga o jogo de Viktor Gyökeres torna-se difícil manter invencibilidades.

O fim de tarde no Ribajeto foi, em boa medida, a exibição de uma manada de um homem só. Gyökeres marcou dois golos e fez do jogo uma constante de cavalgadas, de sprints em que vai deixando defesas e companheiros para trás, todos transformados em testemunhas, relegados para papéis secundários. A vitória por 3-1 dá o terceiro triunfo seguido aos campeões nacionais, algo que não se via desde que um certo treinador foi para Manchester.

Em teoria, Casa Pia e Sporting são dois clássicos emblemas lisboetas separados por poucos quilómetros, dois clubes vizinhos e umbilicalmente ligados a Cândido de Oliveira, o "prémio Nobel da bola". No entanto, o jogo entre o Casa Pia, da freguesia de Benfica, e o Sporting, da freguesia do Lumiar, disputou-se em Rio Maior, num estádio a mais de 80 quilómetros da sede do Casa Pia.

Os gansos, que caminham rumo à quarta época seguida na I Liga, continuam sem terem Pina Manique com obras prontas e, assim, estes dérbis de Lisboa disputam-se no Ribatejo. O Casa Pia, a viver o melhor momento da sua história, continua a viver de casa às costas.

Gualter Fatia

Viktor Gyökeres foi rápido a provar que está, definitivamente, de volta à sua melhor versão, um predador esfomeado que parece tão perigoso a 50 metros da baliza como a 5. Nas arrancadas que faz rumo à baliza adversária, parece que o futebol é só aquilo, uma sucessão de correrias, de arranques, um jogo em loop, desmarcação, finta — mais do que finta, arrasar o adversário —, procura pelo golo, uma outra dimensão forjada por ele, possivelmente com um martelo ou outro instrumento qualquer que ele use para bater vigorosamente no relvado até ele se transformar em algo só seu.

Aos 3', depois de superar José Fonte, Gyökeres serviu Debast, que atirou por cima. Aos 9', após ganhar a Goulart, deu para Trincão, cuja finalização foi cortada por Tchamba.

O 1-0 para os leões chegaria aos 12'. Na sequência de um canto curto, Quenda, com um excelente cruzamento, colocou a bola na cabeça de Gonçalo Inácio, que marcou pela segunda jornada seguida. Foi o 20.º golo do canhoto pelos leões: só Beto (25), Lúcio Soares (35) e Coates (37) foramcentrais mais goleadores do que Inácio pelo Sporting.

Rui Borges teve um ligeiro aliviar das ausências. Morten Hjulmand regressou ao onze, Morita entrou no segundo tempo. Aos 34', o capitão dinamarquês lançou Gyökeres no espaço.

Fosse outro futebolista qualquer a receber aquela bola, não só outro futebolista deste jogo, como praticamente qualquer outro da I Liga, e ninguém acharia o lance perigoso. A bola estava em posição lateral, Viktor encontrava-se a mais de meio-campo da baliza. Mas só Viktor Gyökeres joga o jogo de Viktor Gyökeres. Mal o nórdico recebeu, sentiu-se o perigo, cheirou-se a ocasião. A vida entrou em loop. Correria, tirar um defesa do caminho, golo.

Com 2-0 no marcador, os pecados recentes dos leões voltaram a demonstrar-se. Pouca capacidade de gerir bem a bola. Alguma tendência para recuar em demasia. Exposição a equívocos defensivos, tendência para sofrer golos que parecem claramente evitáveis.

Em cima disto tudo, há Ricardo Esgaio, o Neville Longbottom do futebol. É sempre ele na fotografia errada, no momento equivocado, na abordagem desacertada. Em cima do intervalo, após cruzamento da direita, um auto-golo de Esgaio deu emoção ao segundo tempo.

Gualter Fatia

Os problemas do Sporting, as intermitências de uma equipa que vive meses ziguezagueantes — ora tem um treinador ora tem outro, ora tem uns jogadores disponíveis ora tem outros, ora joga com três atrás ora atua com quatro — prosseguiram no recomeço. O Casa Pia é um coletivo cheio de automatismo e intenções seguras, um projeto que, juntamente com o Nacional, Santa Clara e Estoril, forma o quarteto de participantes da I Liga ainda com o mesmo treinador que existia no início da época.

No arranque da segunda parte, José Fonte e Brito obrigaram Rui Silva a aplicar-se. Fantasmas de quebras recentes após o descanso, nomeadamente frente ao AVS, pairaram sobre os visitantes. Ainda assim, a entrada de Morita ajudou a estabilizar a equipa, deu-lhe conforto com a posse.

Aos 77', chegaria a tranquilidade para o Sporting. Após falta de Tchamba sobre Trincão, Gyökeres, de penálti, chegou aos 39 golos na época. Até final, Viktor ainda voltaria a levar o jogo para a sua dimensão, com novo galopar pelos campos do Ribatejo, novo sprint em que superou adversários parecendo passar por cima deles, não fintá-los. Teria sido golo caso Goulart, num primeiro momento, e Tchamba, depois, não tivessem evitado que a bola passasse a linha de golo.

O Sporting manteve a tendência feliz contra o Casa Pia. Não perde contra os gansos desde 1929/30, num 2-1 a contar para o Campeonato de Lisboa. Sim, o Campeonato de Lisboa, já que estamos perante duas equipas do mesmo distrito, da mesma cidade, de freguesias bem próximas. Indiferente a isto está Viktor Gyökeres, que joga o jogo dele onde quer que seja preciso.