Já a fumarada das tochas fizera uma neblina azul pairar no Estádio do Dragão e o hino do FC Porto tocara no sistema de som. Milhares de cachecóis já tinham sido erguidos em braços acima de caras enxaguadas de adeptos, os olhos nelas incapazes de conter as lágrimas. A comoção coletiva a que o clube abriu as portas do seu recinto, esta segunda-feira, colocara a urna de Jorge Nuno Pinto da Costa no centro do relvado. A cobri-la, uma bandeira portista. A rodear o caixão, dispostos no chão, os troféus de alguns dos títulos relevantes conquistados pelo clube durante a sua vigência, entre os mais de 1.300 que supervisionou.

Não distou quase nada no tempo o findar dos decibéis cantados por Maria Amélia Canossa, voz do hino portista, do tremor sentido em Lisboa. Os crentes no esoterismo ganharam matéria de fé quando, pouco depois de escutada, mais do que cantada, a canção que toca em todos os jogos caseiros do FC Porto, um sismo de 4.7 de intensidade chocalhou a capital que Pinto da Costa preencheu uma vida a acusar de centralismo, de querer colonizar o resto do país. Divina providência ou suma coincidência, a terra tremia literalmente no lugar que durante 42 anos o antigo presidente portista antagonizou por decreto, simbolica mas muito concretamente.

A arena já tivera o silêncio, houvera um aplauso contínuo, também gritos pelo nome de Pinto da Costa vindos da claque, até quando se pediu um minuto desprovido de sons em homenagem ao falecido. Eram 28 os troféus que escoltaram, imóveis, a urna perante a plateia. Pouco depois, os transportadores do caixão regressaram para nos seus ombros o levarem junto à bancada dos Super Dragões. Entre a fumarada e as bandeiras, dezenas abandonaram os assentos, pisaram o relvado, alinhados com a baliza para entoarem cânticos em memória do presidente do passado. Ali tinham chegado vindos da missa.

À brutalista Igreja das Antas, austera de formas e feitios para o exterior, acorreu uma maré predominada por um tom negro, pintalgada por branco e azul. Adeptos levavam a sua homenagem ao funeral do antigo presidente. Viam-se feições enlutadas em caras fechadas. Os cachecóis do FC Porto encobriam pescoços, alguma outra pessoa levou uma camisola da equipa vestida. Ocasionais bandeiras dos Super Dragões eram agitadas no ar diante do edifício onde os jogadores do atual plantel do clube, em cor escura, mas sem traje de gala, chegaram com Martín Anselmi na dianteira.

O recém-treinador portista, demasiado recente para Pinto da Costa, partilhou o espaço com figuras de outrora: de Milão veio Sérgio Conceição, o último técnico de futebol contratado pelo líder de quatro décadas; esteve lá Pepe, que sob o mando ele jogou até aos quarenta, também surgiria Ricardo Carvalho; apareceu Deco, quiçá o intérprete que mais subiu à classe mundial de entre os futebolistas que representaram o FC Porto este século; marcou presença Paulo Futre, indomável canhoto que passou nos três grandes e lamentou o dragão que comeu a língua institucional a dois deles.

Viriam também as sequelas de como o futebol transborda para a política ou o vice que há neste versa, com a aparição de Luís Montenegro, o primeiro-ministro que não há tanto tempo assim, em campanha, se disse adepto a seleção nacional, além da de António Ramalho Eanes, antigo Presidente da República e confesso amigo de Pinto da Costa. Ambos tiveram palavras a dizer, como Pedro Proença, eleito de fresco na liderança da Federação Portuguesa de Futebol, mas ao contrário de Fernando Gomes, o seu predecessor que mudou chegou e calado partiu para retomar a sua candidatura ao Comité Olímpico de Portugal, próximo ponto de luz no seu caminho no dirigismo que arrancou no basquetebol do FC Porto.

Anónimos e ilustres, não havia destrinças entre corpos. Todos acudiram à missa norteada por D. Américo Aguiar e sumiram da igreja da mesma forma, engolidos pela gente, sem corredores especiais de passagem. As caras conhecidas misturaram-se com desconhecidos, os estatutos diluídos pelo império do lúgubre. “Só temos que nos unir todos, somos todos da mesma cor, azul e branco, a melhor homenagem que podemos fazer a este grande homem é estarmos todos no estádio” dizia uma emocionada senhora à RTP, invocando o quase adágio portista via paráfrase do que João Pinto, outra figura, soltou da sua inspiração, já lá vão os anos. “Estamos aqui para distinguir o nosso presidente. Deu tudo e mais alguma coisa em prol do FC Porto”, diria, mais terreno, o antigo capitão dos dragões à porta da igreja onde se estendeu uma tarja pela sua escadaria.

Nela estava inscrito o nome de Pinto da Costa e desenhada a cara do louvado defunto, tal e qual numa das fachadas do Estádio do Dragão, para onde lentamente essa multidão rumou e outra lá se acumulou. A marcha teve delonga. A romaria ia ao ritmo das vontades enlutadas: no carro que transportou a urna quiserem tocar muitas mãos, muitas despedidas, muitos últimos adeus. O veículo visitou o memorial montado diante do recinto do FC Porto, erguido na sua égide, de portas abertas à homenagem pelos membros da direção que lhe ganhou o seu derradeiro ato eleitoral. Pinto da Costa deixara em livro não os querer no seu funeral, a presença de nenhum foi captada.

Já a terra tinha tremido, os diretos das televisões e parangonas dos jornais desviado um pouco para o sismo com epicentro no Seixal, outra coincidência cósmica para alimentar o abracadabra do além, quando o corpo de Jorge Nuno Pinto da Costa acertou trilho para o Prado do Repouso. Ainda lenta na marcha devido à peregrinação das gentes atrás do cortejo, a urna lá chegaria ao primeiro cemitério público do Porto, nado no século XIX, sítio dos jazigos do poeta Eugénio de Andrade ou da pintora Aurélia de Sousa. Não será o domais longevo presidente do FC Porto, claro na sua pretensa ainda em vida: queria ser cinza quando a hora chegasse para ser espalhada “junto àquela azinheira que está ao pé da capela de Nossa Senhora de Fátima”.

Feitas as despedidas, prestadas as homenagens, a Fátima acabará então por rumar então o dirigente que um adepto grisalho, com rumas decanas e memória do antigo, elogiou na televisão por ter “tirado o FC Porto do anonimato” e livrado de ser “um clube da província”. Pinto da Costa fez tremer o futebol português, de certa forma igualmente o futebol lá fora. Já sem vida terrena, na rota para a cremação, ainda fez abanar muita gente.