Regalo é um daqueles falsos amigos quando passamos do português para o espanhol. Para eles, é um presente ou um dom. Para nós, o significado mais comum remete para tirar prazer de algo.
Mas, quando falamos de Rafael Nadal, é possível que ambas as definições lhe assentem bem.
“Regalo”, assim se chama em espanhol o texto em jeito epistolar que Rafael Nadal escreveu para o site The Players’ Tribune na véspera de fazer um mês do adeus definitivo ao ténis, com as cores de Espanha, na Taça Davis. Para nós, foi um regalo ver o maiorquino jogar durante mais de duas décadas, apreciando o dom que lhe os deuses do ténis lhe deram.
Mas, apesar do título, não é de talento que o esquerdino nos quer falar. Num estilo pessoal, que dita sempre os textos do site em que os melhores atletas de todas as modalidades transferem as suas emoções para uma folha branca digital, Rafael Nadal confessa-se sobre as lições que aprendeu cedo, contrariedades já conhecidas e algumas sobre as quais pouco sabíamos.
E tudo começa com uma ida à pesca. Sim, à pesca. O mar que lhe traz paz também deu uma lição ao tenista perfecionista que conhecemos. Nascido numa ilha, rodeado de uma água que se tornou parte do seu íntimo, Rafael Nadal escreve que com 12 anos decidiu ir pescar em vez de treinar. No dia seguinte, foi derrotado num jogo e o regresso a casa de carro com o tio Toni transformou-se em epifania. “Estava a chorar no carro e o meu tio, que nessa idade tão tenra teve uma grande influência em mim, disse-me: ‘Está tudo bem, é uma partida de ténis. Se queres pescar, podes pescar. Não há problema. Mas vais perder. Se quiseres ganhar, há prioridades.’ Foi uma lição importante. Se as pessoas olham para mim como um perfecionista, é também por causa da chamada interior que senti naquele carro de regresso a casa”, escreve Nadal. Essa voz, diz, nunca o “abandonou”.
Terá sido também por essa altura que treinou pela primeira vez com Carlos Moyá. Nadal sublinha que em miúdo nunca teve ídolos, algo que liga ao seu “carácter maiorquino”, mas jogar com homem que mais tarde viria a ser seu treinador, com o primeiro número 1 espanhol da história, foi “uma janela para o mundo”, a confirmação que o ténis tinha indelevelmente tomado conta da sua vida. Quatro anos depois, Nadal bateria Moyá no Masters de Hamburgo.
Nadal também quebra
É possível que a generalidade da população se tenha deparado pela primeira vez com o conceito de “Síndrome de Mueller-Weiss” não por ter lido um prontuário médico, mas por causa de Rafael Nadal. No texto do Players’ Tribune, o agora tenista aposentado conta que foi com 17 anos, depois de uma lesão, que descobriu que padecia desta doença no pé que não tem cura, apenas tratamento, e que o acompanhou durante toda a carreira. A dor, diz, “é um dos maiores professores da vida” e ela foi omnipresente, até nos maiores logros do espanhol.
“Disseram-me que provavelmente não voltaria a jogar ténis a nível profissional. Aprendi que tudo pode terminar num instante”, escreve. “Passas da maior alegria a acordar de manhã quase sem poder caminhar”, confessa o vencedor de 22 torneios do Grand Slam, que fala dessa espécie de sentença como “uma grande lição de humildade”, agradecendo à família, principalmente ao pai, a positividade que lhe permitiu dar a volta por cima. Depois de “muita dor” (sempre a dor), de “cirurgias, reabilitação e lágrimas”, a solução que lhe foi prometida pelo pai chegou. “E durante todos estes anos fui capaz de resistir.”
Nadal aponta a Taça Davis de 2004, o seu primeiro título em Roland-Garros, em 2005, e Wimbledon 2008, em que bateu Roger Federer na final, como os momentos que nunca esquecerá. Aqueles que mais carimbados lhe ficaram nas memórias. Mas tudo isto é um prelúdio para o espanhol fazer mais uma confissão: toda a fortaleza mental que transpirava para rivais e adeptos foi, por vezes, uma capa. A ansiedade também tomou conta de Nadal, que revela que chegou a pensar parar para “limpar a mente.”
“Sinceramente, ficava nervoso antes de todos os jogos, isso não te abandona. Todas as noites antes de um jogo ia para a cama sentindo que podia perder (e também quando acordava pela manhã)”, explica, assumindo que “a imagem” que transmitia ao mundo “nem sempre foi a que sentia por dentro”, continua Nadal. A “dor física” das inúmeras lesões que sofreu e de um pé em processo de degeneração era algo a que estava habituado, mas havia mais. O espanhol reconhece que “há alguns anos” passou por um momento “muito difícil mentalmente.”
O espanhol fala em “problemas para controlar a respiração”, que não o deixavam jogar ao seu melhor nível. “Não tenho problemas em admiti-lo agora. Ao fim ao cabo somos todos seres humanos, não super heróis. O jogador que vês no court com um troféu é uma pessoa; esgotada, aliviada, feliz, agradecida, mas só uma pessoa.”
Nadal diz que “felizmente” não chegou ao ponto de não conseguir controlar a ansiedade, mas que todos os jogadores passam por “momentos de dificuldade para controlar a mente”. E, quando isso acontece, “é difícil ter controlo total sobre o jogo.”
“Houve meses em que pensei fazer um descanso absoluto do ténis”, relata.
O que aí vem
A visão equilibrada que Nadal tem de si mesmo, os pés no chão, seja ele de terra batida ou de relva, terá sido uma ajuda grande para se manter levantado mesmo nos momentos em que a sua mente flutuava para vielas mais escuras. Nos bons momentos, garante, nunca se sentiu “o Super-Homem”, mas nos maus tão-pouco pensou “que tudo era um desastre”.
E aquele chamamento interior, o fogo que aprendeu a acender depois daquela viagem de carro com o tio, ajudou-o também a manter o espanto e o assombro todos os dias em que entrou num court cheio. Esses “nervos” e “adrenalina” são uma sensação “muito difícil de descrever” e algo que “muito poucos podem entender”, garante.
“Tenho a certeza que não será o mesmo agora que me estou a retirar”, confessa, revelando ainda que deverá aparecer em “jogos de exibição” e que talvez se dedique também “a outros desportos.”