![Acusaram Imane Khelif de não ser mulher e ela foi campeã olímpica. Agora proibiram-na, outra vez, de lutar nos Mundiais de boxe](https://homepagept.web.sapo.io/assets/img/blank.png)
Há adágios para tudo, prontos a sair do bolso conforme a ocasião. Se num ápice é possível tudo mudar, seis meses podem nada alterar e o caso de Imane Khelif é ilustrativo de como existem coisas estanques. No verão, quando a sua força foi demasiada para Angela Carini, italiana que desistiu ao fim de 46 segundos a sentir os seus socos no ringue, um pântano afundou a argelina na lama. Da queixa da adversária sobre o poderio dos murros ao teste genético realizado, um ano antes, pela Associação Internacional de Boxe (IBA, na sigla inglesa), nada tardou e a pugilista, aí sim a bastar um curto instante, virou alvo de acusações que afunilaram para o mesmo: ela não era uma mulher.
Vieram de toda a parte, sempre de pessoas estranhas ao caso, mas ávidas por cavalgarem na narrativa que lhes convém: do então wannabe de novo presidente dos EUA, do homem mais bilionário do planeta que hoje é seu conselheiro na Casa Branca, da primeira-ministra italiana, da escritora da mais-bem sucedida saga livresca de fantasia e até de deputados portugueses. Donald Trump, Elon Musk, Giorgia Meloni, J.K. Rowling ou Paulo Núncio aproveitaram o episódio para sugerirem que Imane Khelif era um homem, que homens não deveriam ser autorizados a competir contra mulheres, apesar de nada de factual retirar à argelina o género em que nasceu.
Durante duas semanas em agosto, até ao dia em que Khelif chorou no meio do ringue montado em Roland-Garros e com a medalha de ouro ao pescoço, campeã nos -66 quilos, a roda-viva não cessou. Houve reportagens a visitarem a sua família, na Argélia, onde o pai mostrou a sua certidão de nascimento e apontou para onde estava carimbado o seu género. Viu-se o Comité Olímpico Internacional a defender a pugilista, criticando a desacreditada IBA à qual já retirara o estatuto de reguladora do boxe a nível mundial, dizendo que os resultados do suposto teste genético nunca foram revelados publicamente. Antes de ser campeã olímpica, Imane Khelif foi um joguete na disputa política entre duas instituições desportivas.
Meio ano passou e a Associação Internacional de Boxe, despojada da sua vigência na modalidade, vai atuando como se nada fosse e agendou, para março, nova edição dos Campeonatos do Mundo para a Sérvia, onde confirmou que replicará o que fez em 2023: a argelina não será autorizada a participar com base nos resultados do teste realizado nesse ano. “Não está elegível, não satisfaz os nossos critérios de elegibilidade”, confirmou Chris Roberts, secretário-geral da IBA, na quinta-feira, ao escudar-se “nas regras” da entidade que “estipulam claramente” o necessário para as atletas competirem.
O argumentário foi semelhante ao utilizado pela entidade na edição anterior dos Mundiais, quando desqualificou Khelif pouco antes de lutar na final. Disse então Umar Kremlev, presidente da IBA, que o tal teste de testosterona “comprovou” que a argelina “possui cromossomas XY”, acusando-a de tentar “enganar as colegas” e “fingir ser mulher”. Além da campeã olímpica, a taiwanesa Li Yu Ting também seria desqualificada - foram as duas únicas atletas testadas na competição. Como a africana, a asiática competiu nos últimos Jogos.
Seria durante o apogeu do desporto em Paris que o dirigente russo, noticiado como próximo de Vladimir Putin e benfeitor, convocou uma conferência de imprensa para em teoria explicar o caso de Imane Khelif. Acabou a reunir os jornalistas para o presenciarem a bater o pé ao Comité Olímpico, criticar o seu presidente, Thomas Bach, ou depreciar a cerimónia de abertura dos Jogos. Cinco dias mais tarde, a pugilista conquistou a sua medalha de ouro e embrulhou-se numa bandeira da Argélia no ringue. “Sou uma mulher como qualquer outra. Sou uma mulher forte. Pelos ataques que me fizeram, esta foi a minha maneira de reagir”, disse a lutadora, de 25 anos.
Já triunfadora olímpica, teve outra forma de ripostar ao fazer uma queixa-crime na justiça francesa contra a inventora de Harry Potter e o fundador da Tesla, acusando ambos de atos de ciberassédio agravado. Ainda em Paris, a argelina rebateu o discurso de ódio e a retórica anti-trans insuflada contra a sua pessoa, sobretudo no Twitter rebatizado de X por Elon Musk: “Há inimigos que não conseguem digerir o meu sucesso.”
A campeã olímpica não irá combater nos Mundiais de boxe e a notícia surge na mesma semana em que Donald Trump assinou uma ordem executiva, com o título “Manter os Homens Fora do Desporto de Mulheres”, para proibir atletas transgénero de competirem em provas femininas a nível escolar. Acolhedor de Musk debaixo da sua asa com a justificação de ser um conselheiro incumbido de desburocratizar a máquina do Estado Federal norte-americano, o presidente dos EUA lembrou-se de Imane Khelif para, ao seu estilo, soltar uma declaração que não corresponde exatamente aos factos.
“Quem poderia esquecer os Jogos de Paris do ano passado, onde um pugilista masculino roubou a medalha de ouro após brutalizar a sua adversária feminina tão cruelmente que ela teve de desistir ao fim de apenas 46 segundos”, defendeu Trump, em Washington, nunca identificando Imane Khelif pelo nome, mas afirmando que ela “trocou” de género. Ao apresentar o documento, o presidente que apelidou a argelina de homem quando ainda era só candidato contentou-se por “a guerra contra o desporto feminino terminar”. Um conflito criado nas suas perceções que acabou num ápice, com uma mulher a ser arrastada, de novo, para a lama.