Blyth é uma terriola costeira a meia hora de carro de Newcastle. Foi lá que nasceu Dan Burn. E cresceu, cresceu muito rumo aos céus como quem é alimentado a gordas colheradas de adubo. Alimentado praticamente a sonda foi também o amor pelo clube da cidade mais próxima. O pai do defesa, que ostenta incomuns dois metros de altura no bilhete de identidade, cedo apenas permitiu o preto e o branco do Newcastle United assentado no corpo dos dois filhos, nada de outros tons de outros clubes do país. A porta de casa era embelezada pelo emblema do Newcastle, coisa que o pequeno grande Dan achava que era comum até se mudar para outras cidades inglesas à conta do futebol, terras menos apaixonadas pelos seus clubes locais do que Newcastle.

No entanto, o amor de Dan Burn pelo Newcastle nem sempre foi correspondido. Houve cruéis virares de costas e infrutíferas tentativas de reencontro. Por fim, como em tantas relações complexas, o reaproximar, um doce e emocionado regresso. E, desde domingo, talvez um lugar no panteão do clube do frio norte de Inglaterra: foi da cabeça do poderoso central que saiu o primeiro golo da vitória do Newcastle por 2-1 frente ao Liverpool na final da Taça da Liga inglesa, o primeiro troféu doméstico da equipa em 70 anos e 56 anos depois do triunfo na não oficial, há muito extinta mas sempre mítica Taça das Cidades com Feira, precursora da Taça UEFA.

Daí para cá, o Newcastle tem sofrido com o síndrome do quase. Foi duas vezes vice-campeão da Premier League, em 1995/96 e 1996/97. Perdeu as finais da Taça de Inglaterra em 1974, 1998 e 1999 e a final da Taça da Liga em 2023. Agora, carregados pela comedida mais imponente aura de um rapaz da terra, os festejos voltaram a Newcastle.

A cabeçada certeira de Burn para o primeiro golo do Newcastle
A cabeçada certeira de Burn para o primeiro golo do Newcastle Chris Brunskill/Fantasista

Que tenha sido Dan Burn a marcar não foi apenas um simples pormenor da ficha de jogo. O central de 32 anos era o único jogador nascido localmente entre os titulares nas duas equipas, duplamente impressionante quando sabemos que o Newcastle é agora detido pelo mais rico proprietário da Premier League, o PIF, o Fundo Soberano da Arábia Saudita. Burn é também protagonista de uma carreira feita de resiliência, de peregrinações por todas as divisões do futebol inglês, até à tardia consolidação na Premier League, já no lado errado dos vinte. Dias antes de ser o herói da classe trabalhadora no clube do seu coração, agora milionário, tinha ouvido Thomas Tuchel chamar o seu nome pela primeira vez para vestir a camisola da seleção de Inglaterra. Há semanas felizes.

Desilusão e regresso

Em finais de 2021, Dan Burn, então jogador do Brighton, recebeu com o coração dividido as notícias de que o Newcastle estava prestes a ser comprado pelo Fundo Soberano da Arábia Saudita. Por um lado, borbulhava a vontade de ver a sua equipa voltar à preponderância dos tempos de Alan Shearer ou de Sir Bobby Robson, quando um juveníssimo Dan exultava no seu lugar anual no St. James’ Park. Por outro, um desejo antigo e profundo poderia estar prestes a desvanecer-se para sempre.

“Disse na altura ao meu pai: ‘O meu sonho de jogar pelo Newcastle acabou. Se eles têm a ambição de vencer a liga, irão atrás de jogadores de classe mundial. Nem pensar que vão agora assinar com o Dan Burn do Brighton’”. O defesa não podia estar mais enganado. Seguindo uma ideia de crescimento sustentável, pouco habitual no dinheiro vindo do Golfo Pérsico, o Newcastle cedo olhou para jogadores de futuro ou investimentos sustentáveis. Na janela de inverno, numa altura em que o clube lutava para não descer de divisão, Dan Burn, o modesto Dan Burn do Brighton, tornou-se numa das primeiras aquisições do PIF.

De colete, quando militava no modesto Darlington, em 2011
De colete, quando militava no modesto Darlington, em 2011 Andrew Matthews - EMPICS

Era um regresso por uma porta escancaradamente grande. Vinte anos antes, o Newcastle tinha sido o culpado de uma das maiores desilusões da vida do defesa. Tinha apenas 11 anos quando, em plena véspera de Natal, recebeu uma impiedosa carta informando-o que já não tinha lugar no centro de desenvolvimento do clube, o último passo antes de entrar na academia dos magpies.

“Eu não era muito bom. Não estava a lidar bem com o crescimento do meu corpo, estava um bocado confuso”, confessou em entrevista ao portal The Athletic, em 2022, conversa em que, num estilo honesto e divertidamente autocrítico, assumiu que, nos primeiros tempos, jogou a guarda-redes porque era “uma porcaria e muito alto”. Para piorar, por essa altura, Dan Burn perdeu o dedo anelar da mão direita ao tentar subir uma cerca, marca que ficou para sempre.

O acidente e os contratempos não travaram a sua vontade de continuar a jogar, mesmo que em clubes e condições pouco glamorosas na sua vila natal. Aos 16 anos, começou a trabalhar aos fins de semana num supermercado, a arrumar carrinhos, sem deixar os estudos. Aos 17 anos estreou-se na equipa principal do Darlington, da League Two, o quarto escalão do futebol inglês, onde era obrigado a lavar o equipamento e trazer a sua própria comida, tal era a crise do clube, que acabaria por descer para as divisões distritais no final dessa temporada.

Burn tornou-se num dos líderes do clube da sua infância
Burn tornou-se num dos líderes do clube da sua infância NurPhoto

Burn ainda continuou no Darlington mas em breve a Premier League bateria à porta pela primeira vez. Contratado pelo Fulham, saiu de casa pela primeira vez. Antes de partir para Londres, surgiu uma primeira hipótese de regressar ao Newcastle, mas Burn decidiu arriscar. No Fulham, a aposta foi sempre irregular e acabou emprestado ao Yeovil Town, depois ao Birmingham e saiu a custo zero para o Wigan no final do contrato. Dois bons anos na equipa dos arredores de Manchester permitiram nova oportunidade na primeira divisão de Inglaterra, agora no Brighton. Com Graham Potter chegou a consolidação, tanto a central como a defesa esquerdo.

Em janeiro de 2022, a oportunidade de regressar a casa foi vivida intensamente pela família, depois de uma primeira recusa do Brighton. “A minha mulher chorava, preocupada com a possibilidade do nosso sonho de voltar a casa não acontecer”, reconheceu ao The Athletic em maio desse ano. Burn escolheu jogar com o número 33, o número da porta da casa onde cresceu, em Blyth.

Nessa entrevista, lançou também proféticas palavras, só ao alcance de quem tem o coração e o corpo sítio certo: “Acredito que posso ter um impacto grande dentro e fora do campo e ajudar o clube a crescer”. Daí para cá, o Newcastle voltou à Liga dos Campeões e agora terminou com uma longa seca de títulos, com a ajuda da cabeça deste rapaz da casa, uma constante de paixão e identidade num clube em mutação.