Estivéssemos nós desligados do mundo, despidos de internet e isolados numa cabana, algures numa ilha ao largo da Austrália, mas recebêssemos um bilhete para ir a Melbourne, deduziríamos como iria ser a final apenas ao constatar quem eram os tenistas que saíam do túnel da Rod Laver Arena. Com as mochilas às costas e tão longe do chão, entravam duas torres em campo, altas e delgadas, com feições de quem está imune à emoção. Contra os frios 1,92 metros que pontificam no ténis masculino apareciam os gelados 1,98 de um gigante equiparável ao líder do ranking num traço evidente: quando há uma rede no meio e têm a raquete na mão, ambos são robóticos.

A final do Open da Austrália arrancou tal como até a menos capaz vidente do planeta seria capaz de prever. Dois jogadores sem um pingo de cerimónia a refastelarem-se no fundo do court, de onde batiam poderosas pancadas para tentarem ultrapassar o outro, mas, muitas vezes, o faziam mais um contra o outro. Jannik Sinner e Alexander Zverev eram como paredes móveis, cheias de força a retribuírem as bolas arremessadas pelo adversário. Parecidos na génese do seu jogo, nos fundamentos que faziam do jogo uma batalha de chapadas brutas na bola, cada um dava as suas coisas à final.

O italiano, sempre com boné na cabeça, usufruía da sua maior agilidade, mais rápido a movimentar-se na linha de fundo e a alcançar bolas com a sua aptidão para produzir força a partir de posturas elásticas que enviariam qualquer pessoa presente nas bancadas imediatamente para o hospital. O alemão, com a sua envergadura, tinha um canhão no serviço e aproveitava essa picareta para ir buscar pontos gratuitos nos ases quando Sinner o pressionava; e honra seja feita a Zverev, a melhor esquerda da final provavelmente era a sua, um incaracterístico tenista que não é raro ver a evitar a direita para bater a sua pancada a duas mãos.

O set inaugural explanou-se equilibrado durante o tempo em que os jogadores se mantiveram no conforto da linha de fundo, ripostando a mísseis com balázios, uma espécie de ‘ai queres jogar com força, então toma lá’. Neste funambulismo partilhado, com dois homens em cima da mesma corda, Zverev perderia a compostura primeiro. Seria o alemão mais russo do que germânico a tremer nas trocas de bola mais longas, a ceder com erros injustamente catalogados como não forçados quando do lado de lá está um ruivo feito de plasticina, a devolver bolas um patamar acima na escala de dificuldade em relação a como lhe tinham chegado. Isto mói o juízo a qualquer um.

O de Zverev ruiu quando o italiano se livrou com passing shots impecáveis das suas hesitantes subidas à rede e atinou com o seu serviço-martelo para lhe responder usando a força que vinha na bola contra o alemão. Sinner quebrou-o, faria o 6-3. O tenista cenoura de cabeça e sardento de cara não tinha o serviço mais potente e assustador, mas ganhava 85% dos pontos no seu primeiro saque e 63% no segundo, rácios bem melhores do que os do adversário, obrigado a confiar nessa arma face à escassez de opções.

Enfrentar por estes dias o tirolês nascido onde o barulho das montanhas já fazem Itália confundir-se com a Áustria implica isso mesmo, um minguar progressivo da esperança. Jannik Sinner pode não ser espetacular no estilo. Muito menos é exuberante no que a sua postura emana, dele esperem reações não reativas perante as coisas incríveis que vai fazendo no court, porém mornas porque ele é assim, monotemático na forma de ser. Mas daí vem a sua crescente grandeza - da monotonia da excelência.

Até nos momentos em que o tiveram mais frágil Sinner se manteve assim. Saiu vencedor quando padeceu de cãibras na meia-final contra Ben Shelton, ou após coxear e tremer abundantemente entre pontos nos ‘oitavos’ frente a Holger Rune, declinando, ao seu estilo de pouco ter a comentar sobre praticamente seja o que for, dizer mais do que “não me estava a sentir bem”. No equilíbrio de forças em que o segundo set da final imitou o primeiro, com o italiano a responder a tudo aquilo em que Zverev depositava a sua força bruta, às tantas Sinner agarrou-se à coxa após uma resposta de esquerda quase em pose de ginasta.

Parecia estar a sofrer com a marreta do alemão, que depois o pressionou num 0-30 com 4-5 no marcador, a ameaçar ir para um break e fugir com o segundo parcial. O que fez Sinner? Desatou a colocar primeiros serviços perto das linhas, aos quais Zverev chegou à rasca, com respostas mansas. Sem festejar, nem sequer soltar um pequeno grunhido, nada. Nem a servir para empatar a seis jogos e a obrigar ao tie-break, após prevalecer num ponto com 21 pancadas entre amortis, lobs e correrias, o neutral italiano fez mais do que timidamente cerrar um punho e arfar. A sua face inerte, como se tivesse a olhar para uma televisão onde passava o noticiário das cinco da madrugada, igual ao de todas as horas certas anteriores.

Anadolu

No desempate, só aí, a final recebeu uma pequena amostra de humanidade quando Zverev, após três direitas defeituosas, ameaçou desmanchar a sua raquete contra o chão azul. O alemão frustrava-se com a persistência do equilíbrio. Mais ainda contra a fortuna que nada quis com ele, quando uma bola de Sinner bateu na tela e pingou junto à rede do lado do alemão, dando a vantagem que o italiano aproveitou para fechar o parcial em 7-6 (7-4). Ao sentar-se no banco, com os fios de ouro a baloiçarem ao pescoço e fora da camisola, o germânico vergastou a raquete contra a mochila, furioso com a sua sina.

Era verdade que ‘Sascha’ Zverev estava a ter em Melbourne a consistência que lhe escapara em Nova Iorque, em 2020, e em Paris, o ano passado, nas anteriores finais do Grand Slam. Nessas outras capitais do ténis, a grandeza cénica amestrara o alemão. Em ambas as decisões estivera em vantagem contra Dominic Thiem e Carlos Alcaraz, nas duas baqueara, cedendo à segurança e fugindo à ousadia, limitando-se a permanecer no fundo do court a devolver bolas longe da dianteira dos pontos. Ali na que dizem ser a mais europeia das cidades australianas demonstrava outra convicção, um querer agarrar-se ao protagonismo, arriscando entrar no campo, mais do que bater forte via-se que pretendia bater bolas ganhadoras.

O tenista, já com 27 anos, há muito que persegue o cálice da vitória em majors, mais recentemente com acusações de violência doméstica vindas de duas antigas namoradas a pairarem sobre ele, mas, a contrariar o seu melhor nível em finais, apanhou um Jannik Sinner que cada vez mais é a adequação moderna do protótipo tenístico de Novak Djokovic - devolve tudo o que lhe atirarem, chega a qualquer bola em espargata se for necessário, tem um jogo de resposta brutal, as suas pancadas são limpíssimas na técnica. E parece imperturbável enquanto joga desta maneira. Mais sensaborão, mecânico e estéril em emoções deixadas escapar cá para fora, é certo, mas um rochedo de estabilidade.

O que também se intromete entre o tico e o teco de quem lhe tenta ganhar, porque o italiano concede nada, nenhuma pista, nem um fitoplâncton de dúvida deitado cá para fora.

Do interior da cabeça de Zverev terá vindo parte da explicação do break que sofreu, quando Sinner fez o 4-2. E, vá lá, agitou um pouco a raquete numa tímida comemoração. O alemão tinha que se agarrar à vida. Em alguns pontos gritava cheio dela, houve uma esquerda paralela grandiosa, às tantas uma direita triunfal. Eram amostras do seu ténis. Só não dominava o que parecia estar domesticado pelo italiano, também ele capaz de servir a 207 quilómetros por hora se ameaçado com uma quebra de saque - a constância em permanecer quase infalível.

O último homem a vencer uma partida a Jannik Sinner num Grand Slam de piso rápido (em 2023, no US Open) acabou derrotado (6-3 no terceiro parcial) pelo cenoura italiano, ultimamente a forçar que carinhosamente se refiram a ela mais como uma raposa, estampando nas sapatilhas o animal que pelos vistos prefere ter associado a si em vez da raiz de uma planta. O último ponto foi um resumo adequado à final: troca de pancadas longa, ambos lá ao fundo, Zverev limitado a devolver a bola até Sinner ser quem se chegou à frente por algo diferente, chamando o alemão à rede para depois o aniquilar com um passing shot.

O tenista que começou por ser esquiador conquistava o seu terceiro major sem sequer enfrentar um ponto de break na final.

Enfim a emoção, alguns sentimentos a passearem sem trela. Sinner estendeu os braços no ar, levou as mãos à cara, foi trocar abraços com os seus treinadores. Afagados os seus, tirou o boné para libertar os caracóis ruivos. Era uma cenoura com os cabelos à solta, ou uma raposa a mostrar a sua veste. Aos 23 anos, o italiano igualou o número de Grand Slams do seu rival geracional, Carlos Alcaraz agora maltrantando o mais velho Zverev, que estará a pensar se será tarde para apanhar estes jovens catraios.

Nas redondezas de Sinner ainda há o caso de doping vindo da uma história de cremes, massagens e contaminação por via da pele que o castigou com multas, mas que em abril voltará para o atormentar - o Tribunal Arbitral do Desporto vai julgar um recurso apresentado pela WADA, agência mundial de antidopagem. O número um mundial provou os porquês de o ser, revalidou o título na Austrália e já com as raquetes a repousar, com a cerimónia dos troféus a ser aperaltada no campo, foi reconfortar o adversário. Pôs-lhe as mãos nos ombros, abraçou-o, teve palavras com certeza simpáticas para oferecer.

Jannik Sinner sente, claro que sente. Simplesmente chuta os sentimentos para fora do ténis.