

Esta temporada apresentou muita variedade no cardápio da Taça de Portugal. Entre as surpresas, destaca-se o nome do Lusitano de Évora que Pedro Russiano procura fazer regressar à Liga 3 e que, na Prova Rainha do futebol português, derrubou Académico de Viseu, Estoril Praia e AVS SAD antes de cair pela margem mínima em Braga. Ao Bola na Rede, o treinador revisita uma época pautada pelo sucesso e uma vida desde sempre ligada ao futebol.
N.d.R: A entrevista a Pedro Russiano foi realizada antes do Lusitano de Évora ter confirmado o 1º lugar da Série D do Campeonato de Portugal e o acesso à fase de subida à Liga 3.
«Já batemos o recorde de golos do Campeonato de Portugal nesta altura. Somos a melhor defesa da série e já fomos a melhor do Campeonato»
Pedro Russiano
Bola na Rede: Pedro ou Russiano?
Pedro Russiano: [risos] Pedro Russiano.
Bola na Rede: O que resiste do tempo em que era só Russiano?
Pedro Russiano: As memórias dos tempos em que ainda jogava futebol. Isto já vem dos tempos do meu pai, que também era Russiano e jogou futebol. Consegui voltar a trazer o nome dele como jogador de futebol e sempre fui o Russiano neste mundo. No dia a dia é Pedro, mas todas as pessoas no futebol me chamam de Russiano. Quando me chamam Russiano, já sei que é da área profissional, do futebol, quando é Pedro é da minha juventude, dos meus amigos de infância.
Bola na Rede: Em que é que ter um pai na área ajudou a trazer o bichinho do futebol?
Pedro Russiano: Trouxe envolvência, o conhecer o futebol, e passou o gosto pelo futebol. Desde pequeno que acompanhei o meu pai, ele jogou no Vitória SC, na União de Leiria, aqui no Montijo e cresci no mundo do futebol. A minha filha, agora com três anos, também acompanha todos os meus jogos com a minha mulher e vai ver o pai ao estádio. Passam as raízes e essas memórias fazem com que gostemos de futebol um bocadinho mais que o habitual. Foi o que o meu pai me passou e é o que tento sempre passar para a minha filha e ela também gosta. É muito difícil não passar porque em casa só se fala de futebol.
Bola na Rede: Esta adepta especial tem contribuído para o sucesso desta temporada?
Pedro Russiano: Sim. A minha filha acompanha-me. Este domingo não houve jogos e quando acordámos de manhã, a primeira coisa que ela disse foi “Hoje há bola?”. Isto com três anos de idade. Nós dissemos que não e ela ficou muito triste.
Bola na Rede: Esta pausa é uma altura perfeita para fazer balanços. Qual o balanço que faz da temporada do Lusitano de Évora?
Pedro Russiano: Tem sido uma época de sucesso. Desde o princípio que estrutura, presidente e todos os envolvidos no projeto definiram que o objetivo passava por subir à Liga 3. Numa primeira fase ir à fase de subida e depois ir para a Liga 3. Estamos na altura das decisões e estamos bem encaminhados para fechar em breve este objetivo. O balanço é bastante positivo, somos o melhor ataque de sempre do Campeonato de Portugal desde que há este formato. Já batemos o recorde de golos do Campeonato de Portugal nesta altura. Somos a melhor defesa da série e já fomos a melhor do Campeonato. O que alterou um bocadinho os nossos objetivos e expectativas foi a campanha na Taça de Portugal. Passar as eliminatórias e ir aos oitavos de final não estava nas nossas expectativas, mas à medida que fomos avançando e eliminando equipas, acreditámos que era possível passar. Além do sucesso no campeonato, a nossa campanha na Taça de Portugal foi fantástica. Esta época marca a despedida do nosso estádio, o Campo Estrela, e permitiu um juntar de alegrias e de sensações. Os nossos adeptos são muito exigentes e para eles poder voltar a ter equipas da Primeira Liga no Campo Estrela foi bastante gratificante. Com aquilo que temos jogado e produzido no campeonato podíamos ter tido mais um ou outro ponto, mas a campanha da Taça de Portugal levou-nos a algum desgaste e a lesões. Alterou um bocadinho os nossos objetivos, mas depois da Taça acabar encarrilámos de novo e estamos na posição que queremos, o primeiro lugar.
«Há dias em que jogamos em relvado e outros em sintético, num dia jogamos num campo de grandes dimensões e no dia seguinte num pequeno»
Pedro Russiano

Bola na Rede: A campanha na Taça de Portugal ajudou à construção do sentimento de comunidade junto dos adeptos?
Pedro Russiano: Os adeptos do Lusitano são pessoas que andaram 14 anos na Primeira Liga, ainda há muitos sócios desse tempo. São adeptos que querem sempre o máximo, e independentemente do adversário no Campo Estrela querem ganhar. Nesse sentido, são sempre adeptos desconfiados daquilo que é a produção do treinador e da equipa. Passar as eliminatórias na Taça levou ao acreditar dos adeptos e dos sócios naquilo que a equipa e a equipa técnica podem fazer em conjunto com a estrutura. O nosso presidente é bastante ambicioso e estamos ainda mais confiantes com a subida à Liga 3.
Bola na Rede: A nível de grupo e de plantel, o que sente que toda essa experiência trouxe à equipa?
Pedro Russiano: A nossa equipa é bastante experiente, a média de idades deve estar entre os 27 e os 28 anos. São jogadores bastante experimentados naquilo que é o Campeonato de Portugal. É um campeonato muito difícil e com muitas variáveis. Já estive em todos os campeonatos a nível nacional, na Primeira e Segunda Liga como adjunto, e o Campeonato de Portugal é muito exigente. Há dias em que jogamos em relvado e outros em sintéticos, num dia jogamos num campo de grandes dimensões e no dia seguinte num pequeno. Essas alterações tornam este campeonato muito difícil e é complicado perceber um padrão no adversário. Trouxe riqueza porque estes jogadores se tornaram muito experientes naquilo que é a Taça de Portugal. O primeiro jogo contra o Académico de Viseu foi onde tivemos mais dificuldades porque houve maior imprevisibilidade, mas nos jogos seguintes a equipa tornou-se mais experiente e confiante na Taça de Portugal. Mesmo contra o Braga, depois de 20 minutos com dificuldades, a equipa impôs-se com bastante qualidade e fizemos o nosso jogo, marcámos um golo e pusemos o adversário a tremer um bocadinho.
Bola na Rede: Ajuda a fazer os jogadores acreditar nas suas ideias?
Pedro Russiano: Exatamente.
Bola na Rede: Pensando na competitividade do Campeonato de Portugal, como é que se explica que uma equipa consiga ter simultaneamente o melhor ataque e a melhor defesa?
Pedro Russiano: É o equilíbrio. O mais importante para um treinador é tentar perceber o equilíbrio entre o ofensivo e o defensivo. Desde o princípio que queremos manter a equipa bastante compacta defensivamente com a ideia de que “defesas ganham campeonatos, ataques ganham jogos”. Foi a nossa ideia desde o princípio. Mantivemos a defesa bastante compacta, foram muito jogos no início sem sofrer golos, o que deu confiança ao ataque. Em nossa casa temos sido avassaladores, com algumas goleadas. Tem sido a nossa muralha pelo equilíbrio. Só tendo uma equipa sólida defensivamente é que se consegue ter um bom ataque. Depois temos outra explicação que são os jogadores com muita qualidade no momento da finalização. Temos o Miguel Lopes, o [Sele] Davou, o Roger [Almeida], jogadores que na frente de ataque têm capacidade para desequilibrar jogos um bocadinho mais enrolados.
«Uma equipa da Primeira Liga não pensa que vai ser fácil, mas a ambição e o querer nunca serão iguais»
Pedro Russiano

Bola na Rede: Foi o jogar tantos jogos em casa que permitiu sustentar o caminho na Taça de Portugal?
Pedro Russiano: Sim, comentei isso a seguir ao jogo do Braga. Se esse jogo fosse em nossa casa teria sido diferente. A nossa casa tem-se transformado no nosso castelo porque temos uns adeptos sempre a apoiar e uma relva a que estamos bastante adaptados. Só temos uma derrota em casa contra o Amora. Somos bastante competitivos em casa.
Bola na Rede: Numa equipa que não está habituada a viagens tão grandes nem a meio da semana, o que trouxe de novo a deslocação a Braga?
Pedro Russiano: No sábado fomos ao Algarve, voltámos para cima e seguiu-se a viagem até Braga. Muda tudo o que envolve o jogo, a atmosfera, os media, os jogadores a aparecer um bocadinho mais que o normal nos meios de comunicação, mas principalmente as viagens e não ser um jogo em nossa casa, num relvado com dimensões um bocadinho diferentes. Em Braga o estado da relva é perfeito, na nossa casa teriam de se adaptar a um buraquinho ou outro que mudasse o padrão do seu jogo. Poderia ser mais favorável para nós, mas foi bonito jogar num estádio bonito contra um grande adversário.
Bola na Rede: Uma recompensa merecida?
Pedro Russiano: Sim, uma recompensa merecida em todos os aspetos para o nome do clube, muito falado após anos fora deste contexto. Foi a mais-valia de termos feito este jogo e termos chegado aos quartos de final.
Bola na Rede: Esta edição da Taça de Portugal tem sido prolífera em equipas de divisões inferiores a baterem-se com as equipas de Primeira Liga, inclusive uma equipa do Campeonato de Portugal nas meias-finais. Sente que o hiato entre a Primeira Liga e as divisões não profissionais está mais curto?
Pedro Russiano: Acho que sim. Os jogadores portugueses não têm tido tantas oportunidades de chegar aos patamares superiores e têm de se situar na Liga 3 e no Campeonato de Portugal. Os clubes também têm cada vez mais condições e os treinadores do Campeonato de Portugal têm grande qualidade e muita ambição. Esta junção tem feito com que haja estas surpresas. Uma equipa da Primeira Liga não pensa que vai ser fácil, mas a ambição e o querer nunca serão iguais. No futebol, quem tem mais ambição, querer e vontade em chegar mais rápido à bola tem sempre mais sucesso.
Bola na Rede: Há também várias equipas obrigadas a jogar fora do seu estádio, mesmo na condição de equipa da casa. Em que é que isso não valoriza todas as dimensões do futebol português?
Pedro Russiano: Penso que trazer os grandes jogos a estes terrenos, a clubes mais pequenos, é uma mais-valia para divulgar a terra, o futebol e os jogadores. Senão é tirar um bocadinho a realidade da verdadeira Taça de Portugal. Antes as equipas iam jogar a campos bastantes mais pequenos e diversos, mas quando toca aos grandes há outras coisas como a segurança. As equipas grandes têm o benefício de não jogar no campo dos adversários, mas passa mais pela segurança do que pelo resto.
Bola na Rede: Numa época em que já viajaram até Braga, têm o sonho de a terminar no Jamor?
Pedro Russiano: O sonho é passar à segunda fase. Esse é o principal objetivo neste momento. O segundo objetivo é ir à Liga 3. Se pudermos ir ao Jamor melhor, se não formos os nossos objetivos também ficam realizados.
«Há mais dificuldades em desenvolver um projeto no Alentejo, mas é possível contorná-las»
Pedro Russiano

Bola na Rede: Depois de três anos no Juventude está agora no Lusitano. Como têm sido os passeios por Évora?
Pedro Russiano: Têm sido bons os passeios por Évora [risos]. São clubes com uma grande rivalidade. Neste momento estou no Lusitano e tem sido uma época em que temos conseguido tudo, com uma estrutura bastante organizada que nos tem dado tudo para conseguirmos o sucesso. Quando assim é, torna-se muito mais fácil.
Bola na Rede: Tem sido uma época em que o Alentejo tem sido mais mediático. Como é possível desenvolver projetos longe dos grandes centros urbanos?
Pedro Russiano: Não é fácil. Para serem equipas competitivas têm de gastar um pouco mais de dinheiro que as equipas dos grandes centros urbanos. Para um jogador vir jogar para o Alentejo tem de ter casa e alimentação e são gastos acima do normal comparando às equipas perto de Lisboa e das grandes cidades. Torna um pouco mais difícil recrutar jogadores com mais experiência, maturidade e qualidade, que são mais caros. Há mais dificuldades, mas é possível contorná-las. Em primeiro lugar, ter êxito nas épocas anteriores faz com que os jogadores queiram juntar-se ao clube. Depois, é preciso arranjar condições. O Lusitano de Évora tem uma academia com três campos, dois sintéticos e um de relva natural, para além do estádio, o Campo Estrela. As condições conseguem seduzir os jogadores mais ambiciosos. De seguida, é ter objetivos de subir de divisão. Subir é o objetivo desta época e isso faz com que tenhamos conseguido chamar jogadores de qualidade. Se o orçamento não for um bocadinho superior aos clubes de grandes meios torna-se mais difícil.
Bola na Rede: Depois de ser jogador, começou uma nova carreira como preparador físico. Qual a importância que o lado físico tem no futebol atualmente?
Pedro Russiano: Cada vez mais. Todas as componentes são importantes, a parte estratégica, física, psicológica, ajudar o jogador e apoiá-lo. Se um jogador não estiver bem fisicamente, torna-se difícil que pense bem e aplicar as condicionantes táticas e estratégicas. Tem sido uma das nossas virtudes. Temos estado bem preparados fisicamente e sem grandes lesões. A parte física é algo que não descoro e que tem um enfoque muito grande no microciclo padrão.
Bola na Rede: Qual o espaço que um treinador tem no futebol português, com poucas divisões e clubes profissionais a 100%?
Pedro Russiano: Portugal tem um problema de escala a nível de treinadores. Estive recentemente no Fórum do Treinador onde estiveram 1700 treinadores. Vários são de camadas jovens, mas muitos têm o sonho de se tornarem profissionais. Há um problema de escala porque há poucos clubes para tantos treinadores bons. Temos muitos treinadores bons e o espaço que queremos são as primeiras e segundas divisões, já profissionais. Acho que o treinador português cada vez mais tem de emigrar e procurar mercados compensatórios para aquilo que sabe enquanto treinador e que ajudem na parte monetária. Temos muitos treinadores bons, mas não temos os clubes que lhes permitam ser profissionais.
Bola na Rede: Mesmo assim há alguns exemplos recentes, de treinadores na Primeira Liga que estavam na Liga 3. Continua a haver espaço para pensar nesse salto cá dentro?
Pedro Russiano: Há muitos. Um treinador que passe por Campeonato de Portugal, Liga 3, Segunda Liga e que chegue de forma consistente à Primeira Liga vai estar muito mais preparado do que se entrar por cima. Os treinadores que passaram por estes campeonatos estão mais preparados porque há muito mais variabilidade no processo de treino e no processo de jogo. Há muitos jogos no Campeonato de Portugal mal filmados, então os treinadores têm de se adaptar e idealizar vários cenários para o mesmo jogo, o que lhes dá mais ferramentas para estarem preparados.
Bola na Rede: É a adaptação a todos os contextos o principal ponto diferenciador de um bom treinador?
Pedro Russiano: Penso que sim. Adaptar-se a vários contextos é a riqueza do treinador português. Por isso é que tem tanto sucesso no estrangeiro. É um tipo de treinador que se adapta muito bem às dificuldades e adversidades.
«Temos de ter foco e paixão porque é muito difícil ser-se treinador, perde-se tempo com a nossa família e de estar em casa»
Pedro Russiano

Bola na Rede: O que ficou da carreira como jogador que transporta para este lado?
Pedro Russiano: Da formação no FC Porto transporto a disciplina que tínhamos como jogadores. Apanhei o João Pinto e o mister Vítor Pereira, treinadores com uma grande riqueza a nível tático e um grande nível de disciplina e demonstração das origens do FC Porto. Tento transportar o rigor tático do Vítor e o disciplinar do mister João Pinto para as minhas equipas. Na minha carreira apanhei também o mister Álvaro Magalhães, um treinador muito focado no processo defensivo e que tem sido um dos grandes pilares nos meus anos como treinador. Aprendi muito enquanto fui treinado por ele. Cheguei a estar nas seleções sub-19 e 20 e transpus alguma riqueza no processo ofensivo. Junto à experiência que tive no estrangeiro. Uma das memórias de que tenho mais orgulho é representar o Vitória de Setúbal [Vitória FC] e chegar à final da Taça. Trouxe-me experiência com jogadores de grande classe e qualidade como o Sandro, o Bruno Ribeiro, o Ricardo Chaves. Foram experiências vividas que me fizeram evoluir a nível pessoal como jogador. Como treinador há muita coisa que transporto, também de quando fui treinado pelo João de Deus, pelo Hélio e pelo mister Toni Conceição, que me trouxeram alguma riqueza na parte tática.
Bola na Rede: São essas as suas principais referências?
Pedro Russiano: São. Também tenho algumas pessoas na área do futebol que apanhei como o mister José Rachão e o mister Augusto Inácio. São pessoas com muita experiência e sabedoria da área e que me conduzem nos caminhos certos para me tornar um treinador de sucesso e equilibrado naquilo que é o futebol português.
Bola na Rede: Qual o maior conselho que alguma destas figuras lhe deu?
Pedro Russiano: Um dos maiores conselhos que me dão sempre é sermos sérios, educados, trabalhadores e, acima de tudo, focados no gosto pelo futebol. Dizem sempre que isto é uma prova de resistência e não de velocidade. Temos de ter este foco e esta paixão porque é muito difícil ser-se treinador, perde-se tempo com a nossa família e de estar em casa. Temos de estar muito focados nos nossos objetivos e essa prova só se torna de resistência quando respeitamos tudo à volta do futebol e o próprio futebol.
Bola na Rede: Pensando num cenário hipotético em que era treinador de uma versão sua como jogador, que tipo de treinador seria?
Pedro Russiano: Um treinador ainda mais rigoroso. A nossa geração era uma geração com excelentes jogadores de futebol, o Hugo Almeida, o Paulo Sérgio, o Bruno Alves… Grandes jogadores, mas no profissionalismo éramos, por vezes, um bocadinho mais desleixados que o jogador atual. Hoje os jogadores têm tudo, um grande conhecimento possível sobre nutrição, sobre a parte física, e o hábito de ir ao ginásio. No princípio da nossa carreira não éramos tão exigentes nessa parte. Se fosse treinador seria mais exigente e ensinaria todas essas componentes do futebol, a parte física, psicológica e de nutrição. Nós por vezes fazíamos alguns excessos.
«Chegar à Primeira Liga num clube com uma grande massa adepta como o Vitória FC e do meu distrito foi um grande orgulho»
Pedro Russiano

Bola na Rede: Como olha à distância para a carreira que construiu nos relvados?
Pedro Russiano: Podia ter sido melhor. Foi uma carreira que não foi muito longa porque tive alguns problemas físicos com cinco operações entre os 20 e os 24 anos no joelho. Poderia ter sido um pouco melhor para a formação que tive no Benfica e FC Porto, mas faz parte. Retiro as aprendizagens que me fazem saber como as coisas acontecem dentro de campo e me permitem antecipar cenários para os meus atletas.
Bola na Rede: Formação no Benfica, no Vitória FC, no FC Porto. Há algum tipo de deslumbramento em alguma altura?
Pedro Russiano: Não, nunca. Nunca me deslumbrei. Estive sempre com os pés assentes na terra. Depois tive passagens na Académica, no Olivais e Moscavide e no Vitória de Setúbal. Foi aí que tive uma primeira operação e, depois de recuperar, o mister [Carlos] Carvalhal trouxe as suas ideias e os seus jogadores e tive a oportunidade de emigrar. Estive na Itália, na Roménia, no Bahrain e acabei no Louletano. Nunca me deslumbrei.
Bola na Rede: Continuamos a pensar na formação. Como foi ver vários dos seus amigos e colegas ter sucesso em grandes clubes, na seleção nacional e com uma carreira diferente?
Pedro Russiano: Já apanhei alguns que acabaram recentemente a carreira, como o Fábio Espinho, e olhei para eles com grande orgulho e muita satisfação por ter partilhado plantel com eles. Ganhei algumas coisas com isso. Terminar cedo a carreira fez com que fosse tirar o curso de Desporto e Educação Física mais cedo que todos os outros. Tirei o mestrado em Treino de Alto Rendimento na FMH e no total foram seis anos a estudar, que possivelmente só teria terminado agora. Foram uma grande base na construção da minha carreira como treinador. Estive em campo e conquistei a parte universitária mais cedo que os outros, o que me tem permitido estar há mais tempo nesta prova de resistência.
Bola na Rede: O que é que o mundo académico pode trazer ao futebol?
Pedro Russiano: Junta a parte da ciência à parte futebolística para conseguir perceber algumas coisas que não percebíamos como jogadores. Por isso é que falei que antigamente teria de ser um treinador mais exigente para comigo. Depois de estudar é que percebi algumas coisas e algumas faltas de rendimento que podemos ter a nível futebolístico.
Bola na Rede: Como se vive uma internacionalização por Portugal, mesmo nas camadas jovens?
Pedro Russiano: Na altura foi nos sub-19, contra Israel. É uma das melhores sensações possíveis. É chegar a esse momento e ver que tudo o que trabalhámos e fizemos nos permite ser gratificados. É essa a sensação e um grande orgulho por representar a nossa seleção e ouvir aquele hino.
Bola na Rede: Com as equipas B e as ligas sub-23, o fosso entre o futebol sénior e o futebol de formação é um pouco mais curto que anteriormente, com menos etapas. Que dificuldades trazia há 20 anos atrás.
Pedro Russiano: Eu não sei se dificulta, sinceramente. É óbvio que o jogador vai estar mais tempo em contexto de formação, porque ao fim e ao cabo esta é até aos 23 anos. A meu ver, retarda um bocadinho o processo do jogador sénior. Não estou a falar das equipas B, que já apanham contextos e jogadores com experiência, mas deixar o jogador muito tempo em contexto de sub-23 retarda o seu processo de maturação. Num balneário de sub-23 não há jogadores com 30, 29, 28 anos que ensinem a ir pelo atalho para chegar ao objetivo. Para alguns jogadores os sub-23 são uma mais-valia, mas pode retardar o seu processo de integração em plantéis seniores. Eu passei por isso, porque fui a duas equipas B e o que mais me fez maturar foi passar para a equipa sénior e apanhar jogadores mais experientes que me deram ensinamentos e maturidade, dentro e fora de campo.
Bola na Rede: Lições que só se podem ganhar num balneário?
Pedro Russiano: Não tenho a mínima dúvida. Por mais que o treinador seja experiente, estar dentro de campo com jogadores mais experimentados é uma mais-valia para os jogadores que saem dos juniores.
Bola na Rede: Depois de fazer formação no Vitória FC tem a possibilidade de se estrear pela equipa principal do clube. É um momento marcante?
Pedro Russiano: Sim, muito marcante. Foi no Nacional da Madeira. É um momento muito similar ao que é ser internacional. É chegar à estreia e dizer “Consegui o meu maior objetivo”. Chegar à Primeira Liga num clube com uma grande massa adepta como o Vitória FC e do meu distrito, porque eu sou do Montijo, foi um grande orgulho. É outro troféu.
«Tínhamos de comer num refeitório antes de disputar a Taça da Ásia e como à entrada do refeitório havia uma cabeça de porco ninguém comia ali»
Pedro Russiano

Bola na Rede: Como vive a primeira experiência no estrangeiro, num campeonato italiano muito competitivo e defensivo, na altura ainda mais?
Pedro Russiano: Quando me falaram em ir jogar para Itália e jogar no estrangeiro, a principal coisa que me fez ir foi a parte monetária. Quando lá cheguei percebi o que é jogar num campeonato como a Serie C, mesmo sendo a 3ª Divisão. São equipas muito competitivas e bem montadas defensivamente, bem organizadas. Não se veem muitos jogadores italianos fora de Itália porque a Serie B e Serie C são campeonatos competitivos que pagam muito bem e onde é muito difícil de entrar. Tive um grande crescimento na parte física com muito trabalho de ginásio. Antes de chegar a Itália, foram raras as vezes em que fui ao ginásio. Foi um contexto totalmente diferente, tivemos uma pré-época de um mês fechados em Catania. De manhã preparávamos a parte física e à tarde a parte técnico-tática. Foi um campeonato que me trouxe um grande desenvolvimento na parte física, com o crescer da massa muscular. Uma das grandes mudanças era o uso da ciência. Estavam muito mais adiantados que nós, o que me fez crescer muito.
Bola na Rede: A nível mental, como foi vivida a primeira experiência longe de Portugal?
Pedro Russiano: Era jovem e em Itália vive-se bem. Vivia na Sicília, zona de praia. Tinha saudades das nossas refeições porque um mês a comer massa e pizza é uma coisa, mas depois de quatro ou cinco meses já começa a fartar. A nossa comidinha, principalmente a da família, é sempre a maior nostalgia que temos como jogadores no estrangeiro.
Bola na Rede: O que justifica uma mudança para a Roménia
Pedro Russiano: Na altura eu era para assinar por uma equipa húngara, o Debreceni. Tinha estado duas semanas à experiência após ser operado ao joelho para ver se estava bem a nível físico. Estava para assinar pelo clube, mas, entretanto, o mister Álvaro Magalhães, do qual já fui adjunto, telefonou-me a dizer que ia para a Roménia e se eu queria ir com ele. Ainda não tinha assinado pelo Debreceni e o projeto romeno, por ter um treinador português, trazia-me mais confiança. Éramos uns cinco portugueses a jogar na Roménia e decidi sair do clube onde estava à experiência para ir para o Gloria Buzau, onde tinha a certeza que ia assinar contrato.
Bola na Rede: Como vivia essa comunidade portuguesa na Roménia?
Pedro Russiano: Espetacular. Éramos uma família, mas houve uma altura em que as coisas não correram da melhor maneira. Os clubes romenos eram geridos por investidores que, de repente, desapareciam. A parte monetária tornou-se um problema e acabámos por sair.
Bola na Rede: Como se lida com essa instabilidade?
Pedro Russiano: É sempre difícil. Se há coisas que podem desequilibrar um plantel são salários em atraso e desconfiança na estrutura e na equipa. Torna mais difícil ter resultados.
Bola na Rede: Que avaliação faz da experiência no Bahrain, um destino mais exótico?
Pedro Russiano: Foi fantástica. Na altura tínhamos acabado de sair da Roménia e estávamos na indecisão porque a época tinha sido pouco favorável. O mister José Rachão estava sem clube e tinha um amigo, o mister [José] Garrido, no Al Riffa a precisar de um médio. Eu estava livre e fui fazer uma experiência. Passados dois ou três dias assinei logo e estive cerca de um ano no Bahrain numa cultura muito diferente. O mister José Garrido é exemplo para os treinadores portugueses no Médio Oriente. Sabia adaptar-se muito bem e por isso teve tanto sucesso no Kuwait e no Bahrain.
Bola na Rede: Quais as principais diferenças?
Pedro Russiano: Por vezes o treino era às 19h30 e eles chegavam às 19h45. Tínhamos de comer num refeitório antes de disputar a Taça da Ásia e como à entrada do refeitório havia uma cabeça de porco ninguém comia ali. Só comia eu, os treinadores, o sérvio Mladan [Jovancic] e o camaronês Moustapha [Belibi]. Foram cinco dias antes de jogar contra o South China e eles sem aparecerem. Antes do jogo não faziam qualquer refeição porque havia uma cabeça de porco à entrada do refeitório hotel. O treinador precisa de se adaptar e essa capacidade adaptativa fez com que tivéssemos sucesso. Ficámos em terceiro lugar no campeonato, ganhámos a Taça do Bahrain e fomos às meias-finais da Taça da Ásia, uma espécie de Liga Europa. Foi uma época de muito sucesso, mas no final da época tive uma última operação que me levou a pensar em finalizar a carreira e a entrar na via universitária.
Bola na Rede: Essa vontade justifica o regresso a Portugal?
Pedro Russiano: Sim. Lembro-me bem da última operação. Comecei a ter problemas de cartilagem e houve oportunidade de experimentar um método novo de operação efetuado pelo doutor Noronha. O [Silvestre] Varela jogava no FC Porto e falou-me da possibilidade de ser operado no Porto. Já tinha acabado o contrato e não queria ser operado no Bahrain, então fiz a operação com o doutor Noronha. Ele disse-me que conseguiria recuperar o joelho, mas que ia ficar sempre a 80% e não a 100%. Decidi que era melhor começar a jogar em Portugal, numa competição que não fosse tão exigente porque não conseguia fazer todos os treinos da semana. Fazia normalmente três treinos por semana e recuperava muito antes dos jogos para conseguir jogar. Fui jogar para Loulé, no Louletano, e ao mesmo tempo comecei a estudar Desporto e Educação Física.
«Ainda cheguei a ir aos seniores e estive um mês com o José Mourinho, o Deco e companhia»
Pedro Russiano

Bola na Rede: Esse sonho ligado ao treino já está cumprido?
Pedro Russiano: Os objetivos são o dia a dia e chegar o mais à frente possível, ser o mais profissional possível. Poder subir com o Lusitano era um grande orgulho, mas se for por outra via é porque estou a lutar por isso.
Bola na Rede: Que novos sonhos surgiram?
Pedro Russiano: Agora o sonho é chegar à Liga 3. É o nosso sonho.
Bola na Rede: Se tivesse de fazer um onze com quem partilhou balneário, como seria?
Pedro Russiano: É difícil. Nelson Pereira; João Pereira, José Castro, Auri, Valdir; Ricardo Chaves, Sandro, Verona; Varela, Carlitos e Hugo Almeida.
Bola na Rede: Houve dois nomes com quem partilhou balneário na formação do Benfica, o Ruben Amorim e o João Pereira.
Pedro Russiano: O João Pereira era um fora de série. Um grande jogador. Nessa formação do Benfica apanhei tantos. Depois no FC Porto a dupla de centrais era Bruno Alves e Tonel. Só nos treinos o tamanho deles já metia medo. Nos juniores ainda cheguei a ir aos seniores e estive um mês com o José Mourinho, o Deco e companhia. Partilhei balneário com essa equipa europeia, uma grande experiência.
Bola na Rede: Como foi a experiência com o José Mourinho, o principal influenciador do treinador português?
Pedro Russiano: São as experiências que temos como jogadores que ficam da carreira. Foi o seu início, estava a tentar fazer a equipa e ia chamando alguns jovens para os ir conhecendo. Nas três ou quatro semanas que lá estive tive experiências com grandes jogadores como o Ibarra e o Vítor Baía. São jogadores que lhes dão o título europeu e fazem aquela equipa quase imbatível.
Bola na Rede: Já conseguia prever o sucesso do José Mourinho e de muitos destes nomes?
Pedro Russiano: Já se conseguia prever. A exigência e a ambição que se via nos corredores eram muito grandes. Muitos dos jogadores vinham da União de Leiria, do Vitória de Setúbal e permitiu uma mescla de grande qualidade e ambição. Com um treinador com uma grande ambição, só podia ter dado o sucesso que deu.
Bola na Rede: Pegando nos exemplos do Ruben Amorim e do João Pereira, que esta época já treinaram o Sporting, que outros nomes desta geração vê chegar ao alto nível como treinadores?
Pedro Russiano: Está o Fábio Espinho a aparecer como adjunto [AVS SAD]. Da minha geração poucos têm oito ou nove anos como treinador como eu. Ter acabado a carreira mais cedo trouxe-me outras riquezas como ter começado mais cedo esta vertente e estar um pouco mais experimentado. Ainda não há muitos, mas vão aparecer mais.
Bola na Rede: Partilhou balneário com o Ruben Amorim. Como vê todo o sucesso que teve e as dificuldades que está a passar no Manchester United?
Pedro Russiano: Penso que ele vai acabar por ultrapassá-las porque vão dar-lhe tudo aquilo que um treinador deseja: estabilidade. Teve estabilidade no Braga e no Sporting e para fazer esta mudança e para ir para o Manchester United, não tenho a mínima dúvida que lhe vão dar essa estabilidade. Quando partilhámos balneário era uma pessoa muito brincalhona e com uma inteligência tática acima da média. Sabia jogar em todas as posições o que lhe dá a cultura tática atual. Amigo do amigo, sempre bem-disposto e sorridente. Eram as suas mais-valias. Já nos defrontámos enquanto treinadores. Ele estava no Casa Pia e eu estava no Amora, foi um dos meus primeiros jogos no Amora, e ganhei-lhe 1-0. Na altura ele termina a época, vai para a Braga e faz o trajeto que está a fazer agora.
«Fez dois treinos e disse logo para o miúdo ficar. Agora o Geny Catamo tem sido um jogador determinante nas conquistas do Sporting»
Pedro Russiano

Bola na Rede: Além dos jogadores com quem partilhou balneário, já há vários nomes que treinou, o Geny Catamo um dos mais sonantes.
Pedro Russiano: Fui eu que o lancei.
Bola na Rede: Como vê o seu crescimento e o papel que tem num Sporting campeão nacional e na seleção de Moçambique?
Pedro Russiano: Não me espanta. O investidor da SAD do Amora era moçambicano e o Geny tinha ido fazer uma experiência ao FC Porto e não ficou. No regresso passou pela Amora, onde tinha grande parte dos seus amigos a jogar na nossa equipa. Ficou lá cerca de dois dias e eu disse ao investidor para o deixar a treinar connosco para o ver. Era júnior de primeiro ano e nós seniores. Fez dois treinos e disse logo para o miúdo ficar. Trouxeram algumas reticências sobre a sua utilidade na nossa equipa porque o investimento de trazer um jogador do estrangeiro implicava pagar certificados, alojamento e muitas coisas que faziam dele um jogador caro. Disse logo que se ia adaptar e jogar na equipa principal, mesmo sendo júnior de primeiro ano. Ficaram admirados, mas lá ficou, na estreia como titular marcou golo e agora está neste patamar. Nunca se assustou em jogar com seniores, nunca se sentiu melindrado ou com receio. Dizia que queria sempre jogar com os seniores. Sempre foi forte no 1X1, muito inteligente, um jogador rápido e explosivo. Quando foi para o Sporting não tive dúvidas que chegasse à equipa principal e até levou mais tempo do que estava à espera porque ficou algum tempo na equipa B. Tem sido um jogador determinante nas conquistas do Sporting.
Bola na Rede: Ele é um exemplo paradigmático, porque tem dois empréstimos que não correm muito bem e consegue impor-se na equipa principal. Ter vindo de baixo ajuda a ter capacidade e força para superar estes momentos?
Pedro Russiano: Sim, tem razão. Acho que essas experiências e passagens permitiram-lhe jogar com jogadores seniores e maturar. A falta de sucesso nessas equipas deveu-se a lesões que teve. Dificultou um bocadinho a sua chegada à equipa principal do Sporting, mas depois da parte física, a sua máquina, estar em funcionamento a sua qualidade futebolística chegou a este patamar. Ainda pode evoluir mais.
Bola na Rede: Mantém contacto?
Pedro Russiano: Sim. Estive com ele recentemente, no jogo contra o Estoril Praia. Acabou o jogo e estivemos juntos, a partilhar momentos e a revivê-los.
Bola na Rede: Cobrou-lhe um pouco do sucesso que tem?
Pedro Russiano: Não, mas ele sabe que eu era exigente e que essa exigência fez com que ele ultrapassasse as dificuldades. Era um jogador que vinha de Moçambique e com algumas dificuldades na parte social, mas sempre foi muito forte psicologicamente. A exigência do treinador e a sua exigência própria fizeram dele um grande jogador.
Bola na Rede: Que outros nomes que treinou e lançou vê com possibilidade de chegar ao topo do futebol português?
Pedro Russiano: Enquanto adjunto no Belenenses treinei o Reinildo e no Gil Vicente o Paulinho. São referências que tive enquanto treinador de jogadores devido ao trabalho, à dedicação e ao querer ganhar sempre. Eram jogadores muito competitivos e só assim podem lá chegar.
Bola na Rede: São jogadores que ajudam a fazer evoluir um treinador?
Pedro Russiano: Muito. É um processo recíproco.
Bola na Rede: Qual a maior lição que o futebol lhe deu?
Pedro Russiano: O futebol faz-nos aprender. Na parte social, se há coisa que enquanto treinadores ou ex-jogadores nos dá saudades é a amizade dos balneários. É diferente como treinador. São amizades que ficam para o resto da vida. Quando voltamos a ver um colega e um amigo temos sempre histórias para contar. Um médico, uma pessoa que trabalha no escritório não tem as mesmas vivências que 25 pessoas que partilharam o balneário.