Ainda se fala de Gaza? Ainda se quer falar de Gaza?

Quando penso em Gaza vem-me imediatamente à memória a noite de 4 Novembro de 1995 e o momento em que, ao entrar para o carro da Embaixada de Portugal que se aprestava a integrar o cortejo automóvel onde seguiam Mário Soares e Yasser Arafat, a minha colega norueguesa ainda tem tempo de me gritar “Rabin was shot!”. Um “momento Dallas” . Talvez menos universal que o de JFK mas todos na região, pelo menos, sabem responder à pergunta “Onde estava quando Rabin foi assassinado?”. Eu estava em Gaza e como muitos a interpelação quase imediata que se colocava era sobre qual seria o impacto no Processo de Paz inaugurado com os acordos de Oslo (digo quase imediata porque a primeira interrogação de todas, dum significado potencialmente catastrófico, era a de se o assassino era judeu ou árabe).

Regresso ao que quero escrever, sobre o contraste entre uma faixa de Gaza que conheci tranquila e intacta com a Gaza actual, cenário de destruição, de escombros, de entulho que recorda outras cidades, noutras guerras, também apagadas do mapa.

Muitos escreveram sobre o significado da eliminação de Rabin e terão porventura razão em apontar aquela tarde em Telavive e o discurso do general-Primeiro Ministro, na grande manifestação de apoio às esperanças de Oslo, na praça que tem agora o seu nome, como porventura o ponto mais alto da possibilidade de paz e duma solução política para a questão que continuava a destabilizar todo o Médio Oriente.

Quando vejo o estado, esse sim de “morte cerebral”, de linha contínua de traçado num monitor, do processo de Oslo que hoje se verifica, com expectativas nulas, negociadores inexistentes e “brokers” de há muito não suficientemente “honest”, percebo como o “Dia Seguinte” do fim da operação militar especial israelita, ou mesmo a libertação total ansiada dos reféns israelitas, poderá ser pouco mais que um sempre adiado recomeço de contactos exploratórios e informais, introdutórios de não se sabe bem o quê.

Mas quero voltar a Gaza porque a conheci antes e depois daquela data fatídica em 1995 até porque realizo agora que o momento imediatamente antes do grito da Mona Juul foi afinal o do apogeu daquele enclave. A sua importância política perder-se-ia quando a sede da Autoridade Palestiniana passou para Ramallah mas naquela tarde o líder palestiniano recebia o mais alto convidado que o território alguma vez vira, um Chefe de Estado, numa visita que o Potocolo das autoridades palestinas se apressara a classificar de “Visita de Estado”. E para mais, um Chefe de Estado que acedera a pernoitar no território. Algo nunca visto e que não voltou a repetir-se.

Quem voltar agora à cidade de Gaza não reconhecerá os edifícios onde antes havia um parlamento, ministérios, hotéis, restaurantes, comércio e mesmo mesquitas e até hospitais. Quase tudo arrasado em nome do “direito de Israel a defender-se”, tantas vezes repetido até à exaustão por dirigentes ocidentais na reação inicial ao ataque brutal do Hamas de 7 de outubro, que funcionou como um convite implícito a um sem-cerimónias militar (que a doutrina do Tsahal já previa aliás, em caso de quebra séria do crucial poder de dissuasão sobre os seus adversários e inimigos ).

A deslocação de Mário Soares tinha sido preparada com o máximo de boa vontade e empenhamento pelos homens da Fatah que constituíam um embrião de Ministério de Negócios Estrangeiros (que não havia ainda como tal) e por um dinâmico “Chefe do Protocolo” que tentava dar a dignidade e solenidade possíveis à visita. É de recordar que o Presidente da República português, então nos últimos meses do seu mandato, visitava primeiro Israel e deslocar-se-ia em seguida, por estrada, até Gaza. Umas semanas antes da data teve lugar a chamada visita preparatória dos funcionários da Presidência da República e do nosso Protocolo de Estado. Engravatados na parte israelita do programa preparavam-se para alguma informalidade no par de horas que passariam em Gaza em reconhecimento dos locais e discussão do programa provisório, e permiti-me lembrar (como incumbido pelo meu Embaixador, de preparar a visita e de os acompanhar) que os palestinianos, e os árabes em geral, eram bastante formais nestas ocasiões oficiais e que nesta infância de serem Estado o menos que palestinianos pediam era que os tomássemos a sério nestas missões protocolares. Claro que todos percebíamos que havia algum “faz de conta” inevitável e que a formalidade era importante para os nossos anfitriões. Mostraram-nos a “Guest House” para visitantes ilustres, toda pintada de fresco, que não era senão a residência do Governador Militar quando tinha sido o Egipto a ocupar e administrar aquele território (de 1959 a 1967). E no final fomos todos, junto ao mar, comer fresquíssimas garoupas grelhadas acompanhadas a limonada com menta, em mesas e bancos baixos, num quase “apoio de praia” da costa portuguesa, pés na areia e pouca atenção aos talheres .

As operações militares recentes e o controlo estrito da costa apagaram por completo o carácter balnear da periferia da cidade.

O que se passou naquela noite do assassinato de Rabin já foi contado por vários colegas da delegação oficial (Francisco Seixas da Costa e Ana Gomes, nomeadamente) e recordado pelos jornalistas que seguiam a comitiva. Acabara-se o optimismo, Arafat perdera o seu “parceiro na Paz”. Mas voltando a algumas horas antes, a parte palestiniana tinha organizado o seu primeiro “banquete de Estado”. Em duas longas mesas dispostas num “V” inesperado, no melhor hotel local, sentava-se toda a nomenclatura da OLP e Fatah, os dirigentes da Autoridade Nacional Palestiniana (como então se chamava a si própria) e todos os representantes diplomáticos que tinham estabelecido relações, desde logo os Cônsules-Gerais dos Consulados históricos europeus de Jerusalém (designadamente da França, Reino Unido, Itália, Espanha, Grécia e Bélgica ) que funcionavam como quasi-embaixadores para as relações bilaterais com os Territórios Palestinianos Ocupados. O cuidado na decoração da mesa, a qualidade da comida tradicional, o orgulho manifesto em bem-receber, tudo contribuía para acentuar que era a uma etapa relevante dum futuro Estado que se assistia ali.

Temos a noção de como estão agora devastados todos os pontos nevrálgicos de fronteira em Gaza, a passagem de Eretz, o Corredor de Philadelfi, o posto de Rafah, todos submetidos às operações de destruição do Hamas como força combatente, de proporcionalidade muito discutível e com ratios de vítimas colaterais muito acima do aceitável, e com cicatrizes claras dos bombardeamentos e combates.

Eretz que conheci foi porém outro, o duma lota de peixe magnífico pescado graças à existência do ecossistema lagunar único do Lago Bardawil, a leste de Alexandria (como me explicou anos mais tarde o líder da OLP Nabil Shaat desenhando com lápis num papel perdido da sua secretária a costa mediterrânica do Egipto até Gaza), um pouco como a nossa ria Formosa, donde as garoupas seguiam regularmente em caixas de esferovite com gelo para os melhores hotéis de Telavive. O corredor de Philadelphi era um ‘no man’s land’ pacífico e as cercanias da fronteira de Rafah, intermitentemente fechada pelo lado egípcio, é certo, para conter a pressão de saída, estava intacta quando Mário Soares a usou no final da visita, rumo, por carro a El Arish (voltaria dois dias depois para Jerusalém para o funeral de Rabin, mas deixo isso para outra altura). Esse final de visita foi inolvidável porque Arafat fez questão de acompanhar o Presidente e os jipes da escolta de segurança do ‘Rai’s’ transbordavam de guarda-costas de pé no estribo das portas, a nuvem de poeira e areia provocada pelo cortejo automóvel era tremenda, e no controlo dos passaportes da delegação portuguesa os agentes israelitas usaram do seu excesso de zelo tradicional. (Não me posso esquecer, no meio do tumulto e da poeirada, a figura elegante, alheia a tudo, da “primeira dama” palestiniana, Suha Arafat, de vestido rosa claro, que lembrando-se da minha formação, estendeu-me a mão a despedir-se com um “Au revoir, mon cher Docteur.”)

Quem podia imaginar que essa Gaza aquietada (quem se lembra da visita de Clinton a Gaza em 1998 para testemunhar a caducidade dos apelos à destruição de Israel da Carta constitutiva da OLP? ) daria lugar ao epicentro da resistência violenta à “entidade sionista” (com planeamento de atentados suicidas e disparos ou salvas de rockets sobre o Sul de Israel); que seria palco e foco principal da ascendência dum movimento islâmico que ganharia as eleições para parlamento palestino em 2016 e tomaria o poder derrotando a AP/Fatah e radicalizando-se crescentemente. Um território que sofreria sucessivas incursões militares israelitas, em operações de duração variável, ao longo dos anos, com nomes duma veia lírica macabra, como Arco-Íris, Escudo Avançado, Dias de Penitência, Chuvas de Verão, Nuvens De Outono, Inverno Quente, Chumbo Fundido, Pilar de Defesa, Escudo Protetor até à Operação Espadas de Ferro que ainda dura. Quem imaginaria então esta grave crise humanitária em Gaza, com escassez crítica de abrigo, alimentos, água e assistência médica, quase totalmente dependente de ajuda internacional para sobreviver, com condições a tornam-se mais penosas a cada dia que passa?

Nessa Gaza, ao final da tarde desse primeiro dia da “Visita de Estado”, havia uma enorme esperança de que se encontrariam respostas às aspirações palestinianas pelo reconhecimento da sua identidade política e pela melhoria das condições vida das populações palestinianas, ali e na Cisjordânia.

É preciso retomar essa esperança.