‘The only thing we have to fear is fear itself’, ‘Ask not what your country can do for you, ask what you can do for your country’, ‘Yes, we can’ – todos reconhecemos estes excertos de discursos de Presidentes norte-americanos pelo enorme impacto e ressonância que tiveram, como prenúncios de mudança e inspiradores de confiança numa nova era. A intervenção de J. D. Vance, há uma semana, na Conferência de Segurança de Munique, teve um impacto semelhante, mas de sinal contrário. Bastaram 20 minutos de discurso para dissipar quaisquer esperanças no futuro próximo da relação transatlântica. O próprio antecipou este desfecho, ao avisar que as palmas iniciais de acolhimento ao orador eram provavelmente as últimas que se ouviriam naquela sessão. E assim foi. A reação na sala foi gelada. Mas a reação pela Europa fora foi de pavor.

Aquele discurso, juntamente com as recentes atitudes e declarações do Presidente Trump (cobiçando a Gronelândia, ensaiando uma aparente aproximação à Rússia ou culpabilizando a Ucrânia pela guerra e insultando o seu presidente), teve o condão de fazer com que muitos finalmente percebessem o que já era evidente: que a aliança transatlântica está em crise e que, em conformidade, a Europa terá de assumir maior responsabilidade pela sua própria segurança.

Em abono da verdade, vários povos europeus já o tinham percebido antes, por razões diversas. Desde logo, aqueles que se encontram na fronteira leste da União Europeia e que sentem o imperialismo de Putin como uma ameaça real e efetiva às suas vidas. Esses vinham-nos censurando, desde o início da guerra, por não termos levado a sério os seus avisos. E há muito insistiam que temos de investir mais no armamento da Ucrânia e na defesa europeia. Outros decifraram a origem e a intencionalidade por detrás das várias ameaças híbridas que quotidianamente se fazem sentir em território europeu (cortes de cabos submarinos, cartas com explosivos em aviões de carga, ciberataques, desinformação) e cujo caráter híbrido as torna menos evidentes mas não menos lesivas. Outros ainda acreditaram nas palavras do então candidato Trump, quando convidou a Rússia a fazer o que quisesse com os aliados da NATO que não contribuíssem suficientemente em termos financeiros.

Os sinais estavam por todo o lado. Mas por cá, longe da ameaça russa e com o sentimento ingénuo de estarmos a salvo da mesma, focados noutras necessidades sociais prementes e com uma tradição de brandos costumes, tardávamos em perceber o contexto geopolítico que estamos a viver – se é que já o compreendemos totalmente. Foram os últimos desenvolvimentos do outro lado do Atlântico que fizeram despertar consciências. Estamos mesmo a entrar numa nova era. Que não é certamente melhor. Mas que é incontornável. E que vai implicar uma transformação estrutural do projeto europeu.

Não podemos reclamar para a União Europeia o estatuto de grande potência global se não formos também – para além de um robusto mercado único – uma potência militar. Não teremos um lugar à mesa das negociações sobre a Ucrânia – e, consequentemente, sobre a arquitetura de segurança europeia – se não estivermos dispostos a empenhar os nossos meios na solução que vier a ser encontrada. Mais importante do que isso, não estaremos verdadeiramente seguros se dependermos de outros para nos defender de ameaças externas.

A ‘Zeitenwende’ anunciada pelo chanceler alemão após a invasão da Ucrânia, e que até hoje não chegou a sê-lo, tem agora de tornar-se uma realidade. E depressa. Não vai ser fácil colmatar décadas de ‘outsourcing’ da segurança europeia. Sendo que não bastarão medidas incrementais, vai ser necessário dar passos de grande ambição. Que vão exigir escolhas difíceis. Mas é algo que a União Europeia deve assumir como uma prioridade.

Que, em rigor, chega com 70 anos de atraso. Logo a seguir à Declaração Schuman, o gérmen do que viria a ser a atual União Europeia, o Plano Pleven idealizou uma integração europeia no plano militar. E logo após a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, de 1951, avançou-se mesmo para a Comunidade Europeia de Defesa, cujo tratado institutivo foi assinado em 1952 e chegou a ser ratificado por quatro dos seis Estados-Membros fundadores, apenas fracassando após a sua rejeição, em 1954, pela Assembleia Nacional francesa (ironicamente, o país que tinha estado na origem da iniciativa).

Aí se previa um exército europeu, sob uma estrutura de comando federal, com um ministro europeu da defesa e um orçamento comum – muito, mas muito mais do que está em cima da mesa na atualidade. As razões para tal empreendimento eram duas: impedir o regresso da guerra ao continente europeu; e fazer face à crescente hostilidade soviética.

A segunda razão é infelizmente tão atual hoje como era nos primórdios da Guerra Fria. E a primeira razão permite-nos desmontar a falácia daqueles que afirmam que a União Europeia sempre foi e deve continuar a ser um projeto de paz, não de guerra. A única forma de garantir a paz é unir esforços em matéria de defesa, tornando materialmente impossível qualquer conflito entre Estados-Membros e dissuadindo ameaças externas.

Aquela Europa ‘fofinha’, que podia dedicar-se apenas ao desenvolvimento económico e social, porque a segurança estava garantida pela NATO e era vista como um dado adquirido, já não existe. Insistir nessa ilusão é o caminho mais direto para que o futuro não seja assim tão ‘fofinho’. Se era mais simpático continuar a apostar no ‘soft power’, confiando que o ‘hard power’ seria desnecessário? Era. Mas esse tempo acabou. Só seremos prósperos no plano económico, inovadores no plano tecnológico, generosos no plano social e um exemplo no plano da sustentabilidade se também soubermos ser fortes no plano militar.

Não é agradável. Mas é um mal (absolutamente) necessário.