O uso de substâncias psicadélicas como a psilocibina, LSD e MDMA no tratamento de doenças mentais tem gerado um grande interesse entre investigadores, profissionais de saúde mental e doentes. Embora os psicadélicos estejam historicamente associados a experiências recreativas e culturais, nos últimos anos tem sido estudado o seu potencial teraupêutico, especialmente em doenças como a depressão resistente ou a perturbação de stress pós-traumático.
Em Portugal, o uso de psicadélicos não está implementado nos sistemas de saúde e parece que o caminho ainda é longo até lá chegar. A investigação tem-se intensificado, apesar de serem ainda necessários estudos em grande escala.
Nos hospitais portugueses já decorreram, pelo menos, um ensaio com cetamina, outro com psilocibina (o princípio ativo dos cogumelos alucinógenos) e está prestes a ser lançado um segundo ensaio com psilocibina, mas para outra indicação.
Em entrevista à SIC Notícias, o psiquiatra e investigador da Fundação Champalimaud, Albino Oliveira-Maia, explica que o aumento do interesse pelos psicadélicos, numa perspetiva médica, está associado à necessidade de se encontrar “mais e melhores soluções”.
“Há uma parte dos doentes para quem nós ainda não encontrámos uma solução suficientemente boa”, refere, garantindo que os psicadélicos têm vindo a demonstrar que “trazem oportunidades para os doentes que não estão a ser suficientemente ajudados com outras alternativas existentes”.
Para o público, o uso destas substâncias gera curiosidade, principalmente, por causa da chamada “viagem psicadélica”, uma experiência em que o estado de consciência fica alterado e que pode ser psicologicamente muito intensa e “profunda do ponto de vista do significado individual”, afirma o médico.
Os dados dos ensaios clínicos apontam que o uso de determinados psicadélicos, combinados com apoio psicológico, pode ajudar a aliviar sintomas de Perturbação Depressiva Major (PDM), Depressão Resistente ao Tratamento (DRT) e Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT).
“Há uma proporção de doentes que ficam com menos sintomas ou ficam sem qualquer sintoma e ficam a funcionar melhor. Ficam a ter melhor qualidade de vida depois de terem feito um tratamento com uma substância psicadélica”, explica Albino Oliveira-Maia.
Mesmo assim, e apesar dos sinais promissores, ainda há um longo caminho para percorrer e muito para explorar. O alerta é deixado por investigadores das universidades de Toronto, Stanford e da Fundação Champalimaud numa edição especial, publicada este mês, no American Journal of Psychiatry.
Como atuam os psicadélicos no corpo e que alterações provocam?
“Há duas formas de pensar sobre os mecanismos através dos quais estas substâncias provocam melhoria”, explica o investigador da Fundação Champalimaud.
“ Há uma explicação biológica, onde estas substâncias atuam em neurotransmissores como a serotonina ou o glutamato, promovendo uma maior plasticidade dos neurónios no sistema nervoso central. (…) E há também a explicação psicológica, que se refere ao significado atribuído pela pessoa à experiência vivida durante a 'viagem'."
O termo “viagem psicadélica” foi importado das comunidades que usam os psicadélicos para uso recreativo e tem sido usado pela comunidade científica porque, de acordo com o psiquiatra, “reflete a natureza daquilo que pode acontecer”: uma alteração do estado de consciência. Para alguns pacientes a experiência tem um caráter aliciante, enquanto para outros pode ser assustadora.
O uso de psicadélicos nem sempre implica a “viagem”. De acordo com o investigador, tudo depende da substância que está a ser utilizada, da dose administrada, da pessoa que a está a utilizar e do contexto.
“A mesma pessoa com a mesma substância e a mesma dose pode, em determinados momentos, ter uma experiência psicadélica clara, e noutros momentos, nem tanto”, acrescenta.
Para além da explicação biológica, os investigadores têm tentado também perceber de que forma a interpretação psicológica dessa viagem pode produzir melhorias nos doentes.
“Prende-se com o significado que é atribuído pela pessoa aos conteúdos que existiram no contexto da dita cuja viagem. E é em grande medida nessa perspetiva que se tem vindo cada vez mais a estudar e a tentar perceber o papel da intervenção psicológica”.
Há riscos no uso de psicadélicos?
Como qualquer tratamento médico, o uso de psicadélicos acarreta riscos. Um dos mais discutidos, embora raro, é o Transtorno Persistente de Percepção por Alucinógenos, que ocorre quando uma pessoa continua a experimentar alterações na perceção, ou seja, um efeito de “flashbacks” semelhantes aos que ocorreram sob efeitos dos psicadélicos, mesmo depois de a substância ter sido eliminada do corpo. Este fenómeno é mais comum no uso recreativo dos psicadélicos, onde as substâncias são usadas sem controlo médico.
“É quase como se ficasse uma repetição daquela experiência e isso pode ser muito perturbador. Se a experiência é caracterizada por uma alteração de perceção, a pessoa vê coisas que não existem ou vê as coisas que existem de forma deturpada. Pode ser muito perturbador e muito assustador que isso continue a acontecer de forma não previsível”, aponta Albino Oliveira-Maia.
Perceber esta exposição ao risco e conseguir quantificá-la é um dos desafios da investigação nos próximos anos. O psiquiatra esclarece que é importante que os doentes possam tomar decisões sobre os riscos que correm ao fazer o tratamento. No fundo, explicar possíveis efeitos colaterais, tal como acontece com qualquer outro tratamento médico.
Outra área de atenção é a saúde cardiovascular, uma vez que algumas evidências preliminares sugerem possíveis riscos para as válvulas cardíacas.
Portugal: em que ponto estamos?
Integrar as terapias com psicadélicos nos sistemas de saúde promete ser um desafio, que vai depender muito dos ensaios clínicos realizados a nível nacional e global. Basta pensar, no caso de Portugal, que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está sobrecarregado e com problemas a contratar e reter profissionais. Ora, o tratamento com psicadélicos exigirá uma equipa multidisciplinar, com médicos, psicólogos e técnicos mais especializados.
Aliás, o investigador da Fundação Champalimaud revela que a grande maioria dos estudos com psicadélicos descreve “pouco e mal” a intervenção dos psicólogos. Assim como também ainda não se foi discutido se este tipo de tratamentos serão feitos apenas por psiquiatras, ou se médicos de outras áreas poderão também prescrevê-los.
Ainda há uma grande zona cinzenta. A investigação futura terá como função dar resposta a estas perguntas. Por exemplo, como refere Albino Oliveira-Maia, não foram ainda produzidos estudos para perceber, de forma clara, quais são as características que a intervenção psicológica deve ter. Neste caso, fica difícil perceber que tipo de formação devem ter os psicólogos que intervêm nestas terapias. Segundo o investigador, neste momento, em Portugal, os psicólogos mais preparados são aqueles que já fizeram parte dos ensaios clínicos.
Na entrevista à SIC Notícias, o psiquiatra Albino Oliveira-Maia explica também que será “muito difícil” implementar o uso de psicadélicos nos sistemas de saúde.
“Isso exige, não só em relação aos psicadélicos, mas em relação à saúde mental em geral, que haja uma mudança de perspetiva dos sistemas de saúde, no sentido de tratar a saúde mental da mesma forma que se trata o resto da saúde”.
Até ao momento, os ensaios clínicos realizados em Portugal com psilocibina para tratar a depressão foram feitos em ambulatório. Em alguns países, os tratamentos feitos para o stress pós-traumático com MDMA foram feitos com internamento de um dia para o outro.
O investigador defende que, se os tratamentos exigirem internamento, vão ser mais difíceis de implementar. “O objetivo será sempre tratar o maior número possível de doentes com a maior qualidade possível. (…) Estou convencido que, se nós aprovarmos esses tratamentos com base na necessidade de tratamentos que duram um dia inteiro e no qual têm de estar presentes dois psicólogos, estou convencido que estes tratamentos vão ser de nicho para pessoas muito ricas em países muito ricos”, afirma.
Portugal tem avançado na investigação sobre psicadélicos, com ensaios clínicos realizados com substâncias como psilocibina e cetamina, e mantém-se a par do que está a ser feito noutros países europeus. No entanto, enfrentamos ainda desafios significativos quando se trata do acesso a tratamentos.
Albino Oliveira-Maia diz que, enquanto alguns tratamentos ‘off-label’ estão a ser realizados em Portugal, especialmente com cetamina para depressão, a escetamina - um medicamento antidepressivo inovador -, aprovado para uso pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) desde 2019 ainda não foi autorizado pelo Infarmed.
"Se um paciente com depressão resistente ao tratamento vive em Espanha, pode ter acesso a certos tratamentos. Em Portugal, ainda estamos a lutar por essa aprovação", lamenta o psiquiatra.
O investigador da Fundação Champalimauddefende, por isso, que Portugal está bem na investigação, mas mal na implementação. No que diz respeito à regulação, há novos caminhos a serem traçados numa iniciativa coordenada pela Fundação Champalimaud e pela Sociedade Portuguesa de Psiquiatria, que junta as ordens médicas, dos psicólogos e dos farmacêuticos.