Anunciada pela primeira vez em 2020, a Constelação do Atlântico deverá ter 16 satélites a orbitar a cerca de 600 quilómetros da Terra até ao início de 2027. Sevilha já tem currículo na descoberta de novos mundos, mas nesta matéria o diretor da Agência Espacial Espanhola (AEE) foge ao despique histórico com Lisboa para centrar a atenção noutro ponto do Globo. “Possivelmente vamos ter de instalar uma antena no Polo Norte”, diz Juan Carlos Cortés.

É na capital dos Descobrimentos espanhóis que hoje está sediada a AEE e é este organismo que haverá de superar a última barreira burocrática para a concretização do projeto. Nem uma versão sideral do Tratado de Tordesilhas falta: Portugal e Espanha comprometeram-se a dividir ao meio os encargos com a Constelação - sendo que ainda falta definir a localização das antenas.

O princípio é o da “cooperação e partilha de dados entre os países membros”, frisa Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa (PTSpace).

A Constelação do Atlântico tenta aliar dois países vizinhos com necessidades comuns que não deixam de ostentar diferenças quanto ao poderio espacial. Hoje há cerca de 30 satélites a orbitar com bandeira espanhola – mas quase todos se dedicam a telecomunicações e não à observação da Terra, recorda o responsável da AEE.

Em Portugal, há sete satélites com bandeira nacional e esse número tem em conta o PoSat 1 que foi lançado nos anos 90 e está atualmente inoperacional; mais dois explorados pela GeoSat, que são especialmente valiosos devido à observação da Terra, mas foram adquiridos já depois de estarem a orbitar; e ainda dois satélites académicos.

Em Espanha, o percurso foi feito com os investimentos de marcas como a Deimos, GMV ou Indra, ou a francesa Thales, que está também presente em Portugal com a Edisoft.

Em Portugal, além da referida Thales, há ainda a GeoSat/Omnidea, Critical Software, Tekever ou Lusospace – e há também a ilha de Santa Maria que já tem um teleporto estratégico e está a preparar-se para acolher, rotineiramente, lançamentos espaciais.

Dimensões dos futuros satélites da Constelação do Atlântico. O desenvolvimento dos novos satélites foi alvo de uma revisão que teve repercussões no custo final
Dimensões dos futuros satélites da Constelação do Atlântico. O desenvolvimento dos novos satélites foi alvo de uma revisão que teve repercussões no custo final N30

Apesar de terem o mesmo objetivo, os dois estados enveredaram por caminhos diferentes para chegar às tão desejadas órbitas. Do lado de cá da fronteira, optou-se por introduzir os investimentos na Agenda New Space Portugal, que recorre ao Programa de Recuperação e Resiliência.

Ricardo Conde recorda que o processo exigiu candidaturas, e também contemplou a fusão de algumas dessas candidaturas. Resultado: do lado português, a Constelação do Atlântico passou a ter como promotores a empresa portuguesa GeoSat, que pertence ao grupo Omnidea e conta já com dois cobiçados satélites que lhe valeram o estatuto de fornecedor complementar da constelação Copernicus, e ainda o centro de engenharia CEIIA e a Força Aérea Portuguesa. Se tudo correr como desejado, os lançamentos deverão ficar concluídos até ao final de 2026

Em Espanha, admite-se que os lançamentos possam ficar concluídos no início de 2027, mas o financiamento vem diretamente do Orçamento de Estado. A construção dos satélites deverá merecer um concurso ainda em fevereiro, com previsão de anúncio de vencedor da adjudicação em março, refere Juan Carlos Cortés.

O fabrico dos oito satélites disponibilizados pelo país vizinho deverá rondar os 40 milhões de euros. Depois deste concurso será lançado um segundo para a escolha da entidade que haverá de operar, extrair e redistribuir dados dos satélites do lado espanhol.

Francisco Vilhena da Cunha, líder da GeoSat, recorda que a Constelação do Atlântico deverá ter um centro de dados em Portugal
Francisco Vilhena da Cunha, líder da GeoSat, recorda que a Constelação do Atlântico deverá ter um centro de dados em Portugal NUNO BOTELHO

Em contrapartida, a parte portuguesa da Constelação até pode já ter começado a orbitar – e a dúvida não é tanto factual, mas sim contratual. A 13 de janeiro, a Satlantis recorreu a uma “boleia” de um foguetão da SpaceX para lançar o satélite GARAI, que está apetrechado com uma câmara designada de submétrica, por captar imagens com resoluções inferiores a um metro por píxel; um sensor de infravermelhos de ondas curtas (SWIR) que pode captar emissões de metano, e gases de estufa; e ainda câmaras de polarimetria que separam feixes de luz e permitem seguir veículos ou contornos da costa marítima.

Foi devido ao GARAI que a GeoSat e a Satlantis assinaram uma parceria. “Se demonstrar as capacidades previstas, o GARAI será o precursor da Constelação Atlântica”, informa Francisco Vilhena da Cunha, diretor executivo da GeoSat.

A confirmação de viabilidade tecnológica ainda não chegou, mas na GeoSat há a expectativa de que, caso consiga fazer o que se propõe, o GARAI sirva de modelo para o desenvolvimento de mais cinco satélites de 100 Kg. A estes satélites deverão juntar-se mais dois já em preparação pela recém-criada empresa N30, que tem sede em Matosinhos. Estes dois últimos satélites já deverão garantir bastante mais detalhe com imagens da Terra que têm pixéis inferiores a 50 centímetros e permitem melhorias com Inteligência Artificial.

“Estes dois satélites podem não vir a ter SWIR, porque a prioridade passa por outro tipo de sensores”, explica Vilhena da Cunha. “O SWIR pode operar quando não há luz solar, mas geralmente os operadores de satélite têm cuidado em ativá-lo nesses períodos em que não é possível carregar baterias com os painéis fotovoltaicos”, esclarece.

Francisco Vilhena da Cunha lembra que as verbas do atribuídas através do PRR sofreram um primeiro corte e depois surgiu uma revisão do projeto, que levou a apostar em dispositivos mais robustos. O que poderá levar à duplicação dos 40 milhões de euros previstos inicialmente.

O líder da GeoSat não esconde que vai ter de juntar mais investimento aos fundos próprios e ao dinheiro proveniente do PRR para poder concluir a parte portuguesa da Constelação do Atlântico, mas mantém o otimismo.

“Já recebemos demonstrações de interesse, e já temos algumas conversações avançadas”, refere o gestor da GeoSat. “A análise destas potenciais fontes de financiamento vai ser feita tendo como requisito o alinhamento com as prioridades portuguesas, europeias e até da NATO”, esclarece.

Em Espanha, há ainda dois concursos por realizar, mas Juan Carlos Cortés confirma que deverão ser aplicados requisitos técnicos e sensores similares aos que estão previstos para os satélites que resultam do contributo português.

Para ambos os países, a ficha técnica da Constelação do Atlântico prevê revisitas a cada conjunto de três horas. Na gíria aeroespacial, a revisita remete para todas as vezes que um satélite de uma constelação sobrevoa e capta dados de uma área pretendida.

As estimativas da Constelação apontam para períodos de luz solar que permitem captação de fotos de alta resolução durante nove horas por dia. Nesse período, prevê-se que os 16 satélites consigam fazer uma média de quatro revisitas diárias (contando com a última que já capta imagens no final do período de luz solar).

Para a Internet terrestre dos dias de hoje, estes números podem parecer penosos, mas no Espaço fazem toda a diferença: “Com a constelação Copernicus, recebemos dados em períodos de três ou quatro dias”, responde Juan Carlos Cortés. “Mas se outros países aderirem, a Constelação Atltântica passa a ter revisitas com períodos menores que as três horas previstas atualmente”.

Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, diz que é tempo de projetar os futuros serviços que poderão vir a ser criados com os dados da Constelação do Atlântico
Ricardo Conde, presidente da Agência Espacial Portuguesa, diz que é tempo de projetar os futuros serviços que poderão vir a ser criados com os dados da Constelação do Atlântico Nuno Fox

Sem querer assustar os espíritos mais lusófilos, Cortés admite que a Constelação do Atlântico cumpria todos requisitos para ter o nome de Constelação Ibérica, mas também recorda que sempre houve interesse em abrir o projeto a outros países que possam contribuir com tecnologias ou outros recursos e parcerias.

Dos novos satélites espera-se um mínimo de tempo de vida útil de três anos – mas entre os promotores da constelação há quem acredite que essa longevidade pode facilmente superar os cinco, seis ou mais anos. Ainda assim, ninguém regateia as vantagens que a entrada de novos membros traz para a diluição de investimentos.

Estamos recetivos a quase todos os países”, refere o diretor da AEE, admitindo que possa haver alguma contra-indicação relativamente a um ou outro estado menos recomendável. “De qualquer forma, antes de assinar esse tipo de acordos teremos sempre de ter a luz verde do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros”, salienta.

As restrições não serão muito diferentes em Portugal – e também não travaram a captação de potenciais novos estados membros. “Já está a ser trabalhada a participação da Grécia, e também já se iniciaram contactos com o Reino Unido. Além destes, há interesse em manter contactos com países da América do Sul e de África”, acrescenta Ricardo Conde.

As nove horas de revisitas servem apenas de objetivo primordial para a captação de dados sobre a Península Ibérica – mas também se aplicam a todos os continentes sobrevoados pela Constelação. O que tanto pode ser útil para angariação de mais países membros como para a comercialização de dados para empresas, institutos ou governos de diferentes latitudes.

Ilustração de um dos satélites que a GeoSat já tem em órbita
Ilustração de um dos satélites que a GeoSat já tem em órbita GeoSat

“Atualmente, há uma barreira de entrada nos dados que são captados no Espaço. E isto acontece porque hoje esses dados são muito dispendiosos, e dependem de grandes operadores que estão muito focados no retorno (financeiro)”, sublinha o presidente da PTSpace.

Com a Constelação Atlântica, há a expectativa de uma redução de custos que, nalguns casos, pode chegar à gratuitidade. “Os dados da Constelação vão ser cedidos sem custos a entidades da Administração Pública espanhola”, refere Juan Carlos Cortés.

O responsável da AEE também admite que as entidades privadas podem vir a ter de pagar pela informação, enquanto alguns dados considerados especialmente “sensíveis” poderão ser alvo de restrição por questões de segurança.

Em Portugal, o acesso aos dados está num patamar diferente: “Estamos a discutir o programa de acesso a dados para instituições portuguesas, começando pela Defesa”, refere Francisco Vilhena da Cunha.

O Teleporto de Santa Maria, nos Açores, pode funcionar como ponto estratégico para a captaçlão de dados da futura Constelação do Atlântico
O Teleporto de Santa Maria, nos Açores, pode funcionar como ponto estratégico para a captaçlão de dados da futura Constelação do Atlântico Thales Edisoft Portugal

Ainda sem uma constelação a orbitar, Ricardo Conde lança o repto para que entidades públicas e privadas comecem já a desenhar potenciais serviços e aplicações para os dados que aí vêm. Por seu lado, Francisco Vilhena da Cunha confirma que já há condições para desenvolver essas ferramentas a partir dos dados de observação da Terra que têm vindo a ser produzidos pelos satélites GeoSat 1 e 2, que foram comprados pelo grupo Omnidea a uma empresa falida.

“Estão a ser desenvolvidas bases de dados com o Air Centre e o Colab+Atlântico que vão permitir criar modelos (réplicas) digitais do Atlântico. É algo que vai permitir que as primeiras aplicações comecem já a ser desenvolvidas, para poderem ser usadas logo que a constelação fique operacional”, recorda o líder da GeoSat.

Atualmente, as bases de dados estão alojadas em servidores que operam através da Internet, na denominada lógica do Cloud Computing. “Vai ser criado um centro de dados físico, que vai operar em Portugal. Essa instância física deverá ser criada durante 2025”, adianta Vilhena da Cunha.

Hoje existem hubs ligados à indústria espacial a operar em Guimarães e Oeiras – mas ainda não há decisão ou indicação sobre o local em que poderá vir a ser instalado o novo centro de dados.

O Teleporto da ilha de Santa Maria, nos Açores é apontado como ponto nevrálgico para as comunicações com a futura constelação, mas a quantidade de dados produzida pela Constelação poderá vir a exigir o recurso a antenas que se encontram fora de Portugal, refere ainda Francisco Vilhena da Cunha.

Do lado de lá da fronteira, Juan Carlos Cortés recorda que também existem antenas instaladas nas Canárias e em Valhadolid, mas admite que poderá ser necessário recorrer a dispositivos situados noutras paragens. E é aí que surge a sugestão do Polo Norte como potencial localização, que terá ainda de ser confirmada nos próximos tempos.

“A rede de antenas que comunicam com a constelação só poderá ser definida depois de se saber qual o operador que vai ganhar o concurso de exploração da Constelação”, adianta o dirigente sobre a parte espanhola da Constelação. Até lá, há uma contagem decrescente de dois anos para ultrapassar.