Um dos clérigos mais influentes do Vaticano tentou reverter a sentença de expulsão do sacerdócio de um padre condenado em duas instâncias por abuso sexual de menores num processo canónico.

Os esforços do arcebispo Edgar Peña e Parra só foram travados depois da intervenção do arcebispo Joseph Kennedy, do departamento disciplinar do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), que detém exclusividade para todos os processos na Igreja envolvendo abuso sexual de menores.

Edgar Peña e Parra é um arcebispo venezuelano que fez carreira no serviço diplomático da Santa Sé e é atualmente substituto para assuntos gerais da Secretaria de Estado, ou “sostituto”, em italiano. Num organograma isto faria de Peña e Parra a terceira figura mais influente da Cúria Romana, depois do próprio Papa e do secretário de Estado, o Cardeal Pietro Parolin. Na prática, porém, Peña e Parra funciona quase como um chefe de gabinete do próprio Papa, estando em contacto diário com Francisco.

O caso diz respeito a um padre argentino, da diocese de Villa de la Concepción del Río Cuarto, que foi acusado em 2021 de abuso sexual de vários rapazes, alguns dos quais menores de idade. Os abusos decorreram durante sessões em que o padre alegava estar a tentar curar as vítimas de tendências homossexuais, e incluía apalpar os órgãos genitais.

O Dicastério da Doutrina da Fé, em Roma, delegou autoridade para julgar o caso a um tribunal interdiocesano na Argentina. Não obstante a insistência do padre Ariel Alberto Príncipi de que não tinha agido por motivos libidinosos, acabou condenado a 2 de junho de 2023. Príncipi recorreu, mas a 8 de abril de 2024 o tribunal de segunda instância manteve a condenação e a sentença de expulsão do estado clerical.

A sentença foi enviada então para Roma, para o DDF, mas antes de este poder confirmar a decisão, a diocese de Rio Cuarto divulgou no seu site oficial um decreto assinado por Peña e Parra a dizer que “em resultado das mais recentes provas apresentadas por alguns bispos diocesanos da Argentina, assim como por vários fiéis, durante os meses de junho e julho de 2024, a 5 de julho de 2024 iniciou-se um procedimento extraordinário, com suspensão da anterior decisão”.

O decreto de Peña e Parra descartava a condenação por abusos, dizendo antes que Príncipi tinha sido “muito imprudente”, e permitia que continuasse a exercer o sacerdócio, mas sem contacto com menores de idade e sem celebrar missas públicas sozinho.

Houve intervenção do Papa?

O documento assinado pelo arcebispo venezuelano deixa muitas perguntas no ar. Em lado nenhum se explica quais são as “novas provas”, quem as submeteu, porque razão não foram submetidas na altura certa e no tempo certo, isto é, durante o processo canónico ou posteriormente num recurso ao DDF, o único organismo com autoridade para julgar casos de abusos de menores. Também não se percebe qual a natureza do “procedimento extraordinário”, nem quem o conduziu.

O jornalista americano Ed Condon é especialista em direito canónico, tendo exercido durante vários anos antes de se tornar jornalista e co-fundador do site de notícias católicas “The Pillar”. Nessa qualidade tem acompanhado este caso, e tem procurado perceber porquê, e com que autoridade, Peña e Parra tentou reverter a condenação de Príncipi.

Edgar Peña, no Vaticano
Edgar Peña, no Vaticano Franco Origlia

Em declarações ao Expresso, Condon explica que até existem situações em que a Secretaria de Estado, a cuja estrutura Peña e Parra pertence, poderia anular uma decisão do DDF. “Nalguns casos a Secretaria de Estado funciona como correio seguro para decisões de autoridades canónicas competentes. Portanto, um decreto deste tipo poderia ser assinado por Peña e Parra, desde que tivesse sido delegado por tal autoridade canónica. Mas só existem duas possíveis autoridades, ao abrigo do Direito Canónico, que poderiam fazer essa delegação. A primeira seria através de um ato de delegação de autoridade do Papa, enquanto suprema autoridade judicial, para reexaminar o caso à luz de um mecanismo legal diferente, tendo por isso o poder de chegar a uma conclusão diferente”, explica.

“A segunda hipótese seria a Signatura Apostólica, que é o tribunal de último recurso no Vaticano, isto é, um tribunal de misericórdia, e não de juízo, que poderia receber ordem do Papa para examinar uma petição de clemência. Mas nesse caso o tribunal apenas pode produzir uma recomendação a apresentar ao Papa, que é quem decide”, refere, para concluir: “Em ambos os casos, é necessária uma delegação específica de autoridade papal, pelo próprio Papa. Não existe qualquer outra autoridade independente que possa permitir a emissão de um decreto como a que Peña e Parra publicou”.

Assim, no dia 23 de setembro, quando a diocese argentina recebeu o decreto de Peña e Parra, a única conclusão lógica era a de que este contava com o apoio oficial do Papa Francisco. Mas o mais surpreendente ainda estava para vir.

O volte-face

Uma semana mais tarde, no dia 30 de setembro, o arcebispo Joseph Kennedy, responsável pelo departamento do DDF que analisa todos os casos de abusos sexuais sobre menores na Igreja Católica, foi recebido em audiência privada pelo Papa Francisco. Segundo o boletim de sala de imprensa da Santa Sé, tratou-se de uma audiência concedida a Kennedy e a membros da sua família, e não existe qualquer relato dos assuntos tratados.

Mas o facto é que passada mais uma semana, no dia 7 de outubro, o DDF publicou um decreto, assinado por Kennedy, a anular a decisão de Peña e Parra, a confirmar a expulsão de Príncipi do sacerdócio e a dar o caso por encerrado, por já ter passado o prazo para recorrer.

Para Ed Condon, esta sucessão de factos só permite tirar uma conclusão. “É claramente impossível que tenha havido delegação papal para o decreto de Peña e Parra, porque um ato legal emitido com a autoridade do Pontífice Romano, seja diretamente, seja por delegação, não é passível de recurso. Logo, não seria possível a secção disciplinar do DDF anular e declarar ilegal um processo autorizado pessoalmente pelo Papa. É uma questão de matemática legal. Se o Arcebispo Kennedy diz que o decreto de Peña e Parra é ilegal, e se a sua posição é que prevaleceu, então podemos concluir como facto que aquilo que Peña e Parra assinou era ipso facto ilegal”.

Um muro de silêncio

Se o caso em si é peculiar, igualmente estranho é o facto de, desde o dia 7 de outubro, absolutamente nada mais se tenha dito sobre o assunto, e que nem Peña e Parra, nem o Vaticano, tenham apresentado uma explicação para o que sostituto fez, não obstante as insistentes perguntas do “The Pillar”.

Também as tentativas do Expresso de encontrar explicações embateram num muro de silêncio. Duas fontes da Curia romana contactadas afirmaram nem sequer conhecer o caso, e outras duas recusaram comentar. A única aproximação de uma explicação foi uma entrevista publicada pela “Vatican News”, um órgão oficial da Santa Sé, com o arcebispo Filippo Iannone, prefeito do Dicastério dos Textos Legislativos, em que este detalhou as tais situações em que a Secretaria de Estado se pode sobrepor a decisões de outros dicastérios. Contudo, Iannone não explica como é que, então, foi possível Joseph Kennedy declarar ilegal o decreto de Peña e Parra.

“Isso foi uma resposta indireta às perguntas que nós estávamos a colocar”, diz Condon. “Sabemos isso porque estávamos em Roma na altura e os funcionários da sala de imprensa quase que nos levaram pela mão a ler a entrevista. Mas não passou de uma distração.”

O jornalista mostra-se satisfeito pelo facto de o direito ter prevalecido no caso de Príncipi, mas não se conforma com a falta de transparência. “Esta é uma questão que o Papa Francisco tem dito repetidamente que leva muito a sério, que existe um processo que tem de ser seguido; que tem de ser credível; mas aqui temos o seu colaborador mais próximo, aparentemente, a subvertê-lo. Eu esperaria que o Vaticano estivesse ansioso para responder a estas perguntas e dissipar quaisquer suspeitas.”

As suspeitas a que Condon se refere são sobre quem esteve de facto por detrás da tentativa de ilibar Príncipi e permitir que ele continuasse a exercer o sacerdócio. A explicação mais aparente é de que Peña e Parra tenha emitido aquele decreto por sua própria e exclusiva iniciativa, eventualmente a pedido de amigos de Príncipi, ou de alguém que acreditava que ele tinha sido injustiçado.

A ser verdade, esta não seria a primeira vez que Peña e Parra agia conscientemente contra a lei. Em 2023, quando depôs como testemunha no megaprocesso de crimes financeiros no Vaticano, o sostituto admitiu ter mandado pôr escutas no telefone do diretor do Banco do Vaticano, sem a necessária autorização, e a 4 de julho, testemunhando diante do Supremo Tribunal de Inglaterra e do País de Gales, num caso envolvendo investimentos do Vaticano num projeto imobiliário em Londres que deu enorme prejuízo, admitiu ter assinado uma fatura de cinco milhões de euros que sabia ser “total ficção”, dizendo aos advogados: “vocês afirmam que eu não fui honesto, e aceito isso”.

Uma explicação alternativa para o caso Príncipi é de que o Papa Francisco tenha pedido a Peña e Parra, de forma informal, que resolvesse o assunto, não assumindo depois a decisão quando foi confrontado por Joseph Kennedy, deixando que o seu assistente ficasse com a responsabilidade. Ed Condon mostra-se cético em relação a esta teoria, que “vai contra tudo o que o Papa tem dito que acredita ser prioridade absoluta, e uma linha vermelha desde os escândalos de 2018 [envolvendo o ex-cardeal americano McCarrick] e a promulgação em 2019 de Vos Estis Lux Mundi [que prevê os processos de investigação a bispos suspeitos de terem cometido abusos, ou de os encobrir], bem como outras reformas que implementou durante o seu pontificado”.

Sem respostas nem explicações para o facto de uma das figuras mais influentes da Santa Sé ter tentado, de forma ilegal, reverter a condenação de um homem condenado em duas instâncias por abusos sexuais, o caso Príncipi, por mais que o Vaticano o continue a ignorar, mantém-se como um sinal de contradição num tempo em que tanto se fala de tolerância zero para com este crime.