Todos os dias reza o terço. Lê uma passagem do Novo Testamento. Vai à missa. "São coisas que tento fazer para me aproximar de Nosso Senhor." Coisas que, admite, se lhe dissessem há três anos que fariam parte da sua rotina diária, não acreditaria. "Diria que era uma loucura." Duarte tem 20 anos e uma recém-descoberta fé religiosa.

Nos jantares com amigos, já todos sabem que vai chegar mais tarde, só depois de vir da Igreja. Sabem também que não podem contar com ele, a seguir, para saídas à noite. Algo que, refere Duarte, ao início, gerou alguma confusão. “Para o estilo de vida dos meus amigos, não é normal.”

“Há muita gente que, às vezes, me olha como se fosse um bocadinho extraterrestre”, admite. “Mas graças a Deus ninguém me chateou. Ninguém foi mauzinho comigo, acrescenta o jovem, que confessa, às vezes, ter “a sensação de estar um bocadinho sozinho”.

“Falávamos de Islamismo e ela pensava no Bin Laden”

No caso de Gonçalo (nome fictício), foi a relação com a namorada que, no princípio, mais foi afetada pela incursão na vida religiosa. Com 25 anos, decidiu, recentemente, converter-se ao islamismo.

“Ela não conhecia quase nada sobre esta cultura, não percebia. Associava-a ao terrorismo. Falávamos de Islamismo e ela pensava no Bin Laden” , conta o jovem.

As mudanças no estilo de vida de Gonçalo, impostas pela nova religião, trouxeram algumas condicionantes à vida do casal. No período do jejum do Ramadão, por exemplo, “ela queria passear, ir a brunches, e eu não podia fazer isso, relata.

Outra questão levantada pela namorada foi a ideia da desigualdade em relação ao tratamento da mulher, no seio da religião islâmica. Gonçalo diz não defender que “as mulheres tenham de andar todas tapadas”, mas considera que não deve haver uma hipersexualização - tanto da mulher, como do homem – e que certas coisas devem ser guardadas para a intimidade. Porque, na religião, “a união é abençoada por Deus”, defende.

“Em casa, eu não como porco, e eles comem”

As rotinas de Gonçalo sofreram mudanças, na adaptação às práticas islâmicas. Agora reza cinco vezes por dia. Na empresa de call center onde trabalha, tem pausas laborais e um espaço próprio para fazê-lo. Às sextas-feiras, à hora de almoço, a reza acontece, obrigatoriamente, na mesquita.

Constantine Johnny/Getty Images

Também em casa, passou a haver algumas diferenças na dinâmica com a família. A alimentação é o caso mais flagrante. “Eu não como porco, e eles comem. Mas respeitam.”

A mãe faz o esforço para que possa seguir, em casa, a alimentação designada pela religião, logo desde o momento das compras do mês. “Compramos sempre a carne num talho onde é permitido comprar. Existe uma diferença entre a carne não halal e a carne halal, explica Gonçalo. Para uma carne ser halal, é preciso ter certificação, com a produção e o abate a seguirem regras específicas, que dizem respeito à sanidade, mas também ao bem-estar do animal e ao manejo da própria carne.

Já no grupo de amigos, ao contrário do que aconteceu com Duarte e o catolicismo, a conversão de Gonçalo ao islamismo não gerou qualquer estranheza. Muito pelo contrário. “A maior parte dos meus amigos são muçulmanos”, diz, não escondendo que esse foi o principal motivo que o fez interessar-se pela religião e descobrir mais sobre ela.

“Quando era mais novo, com 16 anos, fui ao Dubai e experimentei os trajes da religião - mesmo sem saber que algum dia haveria de me converter”, recorda. Na viragem para a idade adulta, “ pass ei a conviver mais com amigos que são muçulmanos e praticam a religião”.

“Aí, comecei a aprender mais, particularmente com os pais dos meus amigos” - que, explica, eram “bons a contar as histórias” relacionadas com o islamismo. Não sabe, contudo, dizer ao certo quando se deu o “clique”, o momento em que percebeu que queria mesmo juntar-se à religião.

“Eu só sei que antes não via e agora vejo”

O “clique” de Duarte aconteceu quando estava no 12.º ano. Diz que foi aí que começou a “acordar” para a Igreja Católica.

“Fui percebendo que havia algumas coisas que podiam ser levadas um bocadinho com mais seriedade” , conta. “Comecei a questionar de alto a baixo toda a necessidade de uma vida de fé .

Decidiu, na altura, após terminar o ensino secundário, não entrar imediatamente na faculdade e fazer um ano sabático. E foi aí que a ligação espiritual com a religião se intensificou.

Viajei muito sozinho e tive oportunidades de introspeção e de contacto com a própria pessoa que muitas vezes não temos”, aponta. Passou uns tempos em Nova Iorque - “uma grande cidade, um grande mundo” - e depois em Cabo Verde, num projeto de voluntariado. Ter contacto com realidades tão diferentes fê-lo pensar no tipo de vida que pretendia seguir. “Era preciso começar a encontrar um objetivo.

Decidiu, por um lado, estudar Ciência Política e, por outro, abraçar a religião católica em pleno. Nestas coisas, temos sempre duas opções: podemos julgar ou ser curiosos”, afirma. “Acho que julgar, normalmente, é um mau caminho e, por isso, decidi ser curioso.

"Fui pesquisando, fui lendo e comecei a perceber que a fé era uma dádiva que todos recebíamos. É um presente que todos recebemos, mas que só o vemos quando o procuramos”. E por isso, a partir daí, passou a procurá-la.

“Eu só sei que antes não via e agora vejo”, declara, citando o Evangelho. “É uma coisa difícil de explicar.”

"Há uma quebra na prática religiosa, mas há necessidade dela"

A percentagem de pessoas que se associam à prática religiosa nas igrejas está em queda. “É transversal. A prática religiosa tem caído no Ocidente”, constata Eduardo Duque, professor na Faculdade de Filosofia e de Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa.

“Até ao século XVIII, a Igreja era a única dadora de sentido. A partir daí, as pessoas foram encontrando muitas outras instituições e muitas outras formas de ser e de estar”, sustenta. Contudo, naquilo que até pode parecer contrassenso, a importância atribuída a Deus pelos jovens portugueses está a aumentar, alerta o especialista.

De acordo com o European Values Study, aponta Eduardo Duque, entre 2008 e 2022, essa importância aumentou de 6 para 7(numa escala de 1 a 10). “É absolutamente incrível”, repara.

“Por um lado, há essa quebra na prática religiosa. Mas, por outro lado, há essa necessidade.”

O também investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho fala numa ligação menos comunitária” à religião, baseada em vivência nas comunidades paroquiais”. Esse tipo de prática religiosa está a dar lugar a uma relação mais pessoalizada.

Tem muito a ver com a dimensão do individualismo. Hoje temos sociedades mais individualistas, mais fechadas, voltadas para nós próprios. Também a vivência religiosa não é estranha a essa forma de estar na sociedade. A pessoa expressa de forma mais individualista essa relação com Deus, mas tem-na .

“Deus traz-me um propósito de vida”

Gonçalo não tem dúvidas em relação àquilo que a conversão ao islamismo lhe trouxe. Além da “relação com Deus”: “paz” e “foco”.

“Ajuda-me a manter-me guiado, com mais fé nos meus objetivos. É uma força extra”, frisa.

O jovem afirma que, sendo a reza um dos pilares da religião, o ato de rezar o ajuda a lembrar-se daquilo pelo qual tem de “ser grato”.

“Peço a Deus algo que me leve para a frente na vida. Com o objetivo de melhorar, sempre”, nota. “Não vais pedir a Deus uma coisa fútil , nem se pode estar a pedir coisas más. Se não gosto de alguém, não vou pedir que lhe aconteça algo de mal!”

Também Duarte não hesita quando questionado sobre o que a religião lhe acrescenta à vida: “Propósito”. "Uma força motora para viver diariamente”, explicita.

“Sem a religião, eu tenho uma grande dificuldade em encontrar um propósito para a vida”, comenta. “Uma pessoa farta-se de trabalhar, está cansada... Mas porque é que está a trabalhar? Só para sustentar o dia a dia? Para conseguir ter comida e ir de férias para o Algarve duas vezes por ano? Torna-se um bocadinho fútil.”

O investigador Eduardo Duque confirma a ideia de que o espaço onde hoje nos inserimos é “uma sociedade de cansaço, onde as pessoas lutam todos os dias para ganhar a vida”. “Não é fácil, chegam ao final do dia cansadas, exasperadas interiormente, e dizem: “Para que é que eu vivi este dia?”.

O simulacro, muito promovido pelas redes sociais, não ajuda a que as pessoas se reencontrem com elas próprias” , a ponta. Tentam faz er muitas experiências para tentar encontrar um sentido, mas não o encontra m . E , aí, volta m -se para Deus .

A prática religiosa acaba por ser uma forma de “a pessoa procurar desintoxicar-se do cansaço da sociedade”.

Extremismos e escândalos não afastam?

Nico De Pasquale/Getty Images

Mas para quem procura a religião como forma de se desintoxicar, como lidar com o lado tóxico da religião? Falamos dos extremismos religiosos ou dos escândalos que têm atingido as igrejas que representam as religiões.

Gonçalo não concorda com as visões fundamentalistas do Islamismo. E acredita que a maioria dos praticantes do Islamismo em Portugal pensa como ele.

Para o jovem, atos terroristas praticados em nome de Alá são um desvio da verdadeira palavra do Corão e dos pilares do Islão”.

“Mesmo em partes do Corão em que se fala de guerra e em que houve conflitos, foi sempre a seguir certas regras. Não era como eles fazem. Quererem implementar a fé à força ”, refere. Acredito que usam a religião para passar outros interesses à frente. Já entra muita política aí ”, aponta.

Questionado sobre se essa imagem associada a uma parte do islamismo nunca o fez questionar a conversão à religião, responde que não. “Eu consegui mesmo entender qual era a mensagem que estava a ser passada. Eram valores que eu também buscava enquanto ser humano.

O mesmo afirma Duarte em relação a polémicas que envolvem a Igreja Católica, como o escândalo da pedofilia. Garante que não o afastam nem o fazem olhar com outros olhos para a opção que tomou.

“Acho que a Igreja tem os seus desafios. Como sempre teve , aponta . “I nfelizmente, há tentações que vão para pessoas que têm lutas maiores” , diz sobre os clérigos abusadores .

Afirma, apesar disso, rejeitar qualquer benevolência com “pessoas que pratiquem qualquer tipo de crime com crianças”. Não estou, de todo, a arranjar desculpas para quem os pratica”, assegura.

Duarte afirma que prefere mudar a Igreja a partir de dentro, em vez de afastar-se dela.“Posso criticar a Igreja de fora, dizer que são corruptos ou pedófilos. Mas cada vez que uma pessoa boa sai da Igreja com essa justificação está a aumentar a percentagem de pessoas más.

“Não devemos abandonar o navio sempre que vemos algum indicador mau. Pelo contrário, devemos fazer mais, estar mais atentos, ter maior presença e incentivar as coisas boas , insiste.

Que futuro para a religião entre os jovens?

O investigador Eduardo Duque considera que o grande desafio para os jovens que procuram a religião será fazer uma aproximação às comunidades em que estão inseridos e em que se reveem”.

“O que é que os jovens pedem nos dias de hoje à Igreja? Pedem uma Igreja autêntica, exemplar, corresponsável, solidária e que caminhe com eles . Muitas vezes, isto não acontece e isto faz com que eles se afastem” , constata, apontando que é por isso que muitos olham para a religião como “ um processo de alienação” .

Ainda assim, defende, há quem decida “fazer a experiência” e saia surpreendido. “Muitos nunca chegaram sequer a aproximar-se de uma Igreja. Mas, quando encontram a ideia de alegria, a ideia de serviço e humildade, aproximam-se."

Julian Elliott/Getty Images

Aos olhos de Gonçalo, a religião será uma forma de “manter os jovens focados. Na nossa sociedade, é muito fácil perdermo-nos em prazeres mundanos – álcool, drogas, adultério... Não são coisas que nos acrescentem o bem enquanto seres. Não contribuem para nada. E nós estamos aqui na Terra é para deixar uma marca positiva.”

Acredito que a religião ajuda os jovens a distinguir o que é importante do que não é realmente importante ”, defende.

Duarte vê nela uma forma de combater a epidemia de problemas de saúde mental entre os mais novos. “A minha geração, em termos de saúde mental, é uma loucura. Está a ter os piores valores da História, é terrível. E somos a geração mais abençoada, temos tudo.”

“Não sei se a falta de religião é a origem deste problema. Mas a cura é, com certeza, essa”, alega.

O jovem católico acredita, por isso, que a religião é, para os jovens, a boia de salvação à espera de ser descoberta. A sociedade está a afundar. E vejo a religião como uma coisa que, se calhar, permite que não vamos ao fundo.