No dia seguinte às eleições legislativas, é inevitável uma sensação de déjà vu. Em termos práticos, ficou tudo na mesma. A Aliança Democrática (AD) venceu, mas não conseguiu a maioria parlamentar. Tal como a Iniciativa Liberal (IL), que manteve o seu espaço, mas não o alargou. O Chega teve mais uma forte subida, consolidando-se como terceira força política nacional, e o Partido Socialista (PS) uma derrota estrondosa, com um resultado que dificilmente permitirá manter a liderança da oposição com autoridade.

Resultado? uma governação estável só será possível com um entendimento entre AD e PS — o tal “bloco central” que todos dizem recusar, mas que, neste momento, é a única solução possível para dar quatro anos de estabilidade ao país. E os portugueses estão fartos de eleições, isso é certo. Contudo, esta eleição marcou o fim de uma era.

Cinquenta anos depois das primeiras eleições livres para a Constituinte, o “centrão” acabou. PS e PSD deixaram de ser, sozinhos, necessários e suficientes para garantir uma maioria constitucional. Isso não é apenas simbólico — é estrutural.

A direita junta, com a entrada musculada do Chega e o apoio da IL, passou a ter, pela primeira vez, potencial para alcançar uma maioria de dois terços. Isso tem implicações profundas, desde revisões constitucionais até à configuração dos órgãos de soberania.

O Chega passou, a partir de ontem, a ser candidato ao poder. O que há dois anos parecia um delírio populista, é hoje um cenário com contornos reais. Com um PS dividido, fragilizado, e um líder da AD que pode vir a ser pressionado por uma futura Comissão Parlamentar de Inquérito, o caminho para a normalização da extrema-direita está a ser pavimentado. O discurso do “não é não” de Luís Montenegro será posto à prova, e não apenas pelos seus adversários — será posto à prova pelo tempo, pela pressão interna, e pelos próprios eleitores que exigem resultados.

O Bloco de Esquerda desapareceu praticamente do mapa eleitoral. Esse colapso é um sinal claro de que os portugueses estão fartos de demagogia — tanto da que vem da esquerda como da que vem, em força crescente, da extrema-direita. O crescimento do Chega representa, em grande parte, o voto de protesto dos descontentes com o sistema, dos que se sentem esquecidos, enganados ou simplesmente descrentes da política tradicional. É um grito de revolta mais do que uma escolha racional de governo. Mas esse grito, quando canalizado por discursos populistas, simplistas e perigosos, pode transformar o descontentamento legítimo numa ameaça real à democracia.

Chegámos ao ponto de não retorno. Ou os partidos fundadores da nossa democracia acordam para a nova realidade — e assumem as suas responsabilidades com coragem e visão — ou estaremos, dentro de pouco tempo, perante um governo que representa um risco real para o futuro de Portugal.

Porque não nos iludamos: um governo liderado ou condicionado pela extrema-direita será tudo menos inofensivo. É uma ameaça à liberdade, à diversidade, ao Estado de Direito, à imprensa livre e à própria cultura democrática que construímos com tanto esforço. Um governo que promove a divisão, o ódio, o medo, o retrocesso nos direitos das mulheres e das minorias. Um governo que transforma o inimigo em alvo e a política em espetáculo. Não se trata de ideologia — trata-se de civilização.

Portugal precisa, mais do que nunca, de moderação com firmeza, de diálogo com integridade, e de políticas com valores. Não podemos continuar reféns de taticismos partidários nem da cobardia moral de quem prefere o silêncio ao confronto de ideias.

É tempo de escolher entre a conveniência e a coragem. Entre o cálculo político e o compromisso com as próximas gerações.

O futuro está a ser escrito. E a caneta, neste momento, ainda está nas nossas mãos.