As primeiras memórias que guardo da minha relação com a fé católica remontam à cidade de Santo Tirso, onde nasci e cresci. Nessas lembranças, vejo-me sentado num banco de madeira da igreja do Mosteiro de São Bento, lutando contra o frio e o tédio, enquanto ouvia as ladainhas intermináveis entoadas por um padre velho e monótono.
Cresci nessa igreja mais por obrigação do que por convicção.
Mais tarde, graças ao contrato de associação então existente com o Estado, os meus pais decidiram matricular-me no colégio jesuíta que ficava ali ao lado: o Colégio das Caldinhas.
Foi com os padres jesuítas que comecei a perceber que talvez houvesse espaço para a música, o calor humano e a cor dentro da fé católica. Eram jovens, dinâmicos, e, ao contrário do prior do Mosteiro, despertavam em nós a criatividade e o pensamento crítico.
Lembro-me de um trabalho de investigação sobre o Dalai Lama, feito antes mesmo de estudar a vida de São Francisco de Assis. E, assim, aos poucos, percebemos que na Igreja — e no Céu — havia espaço para todos, não apenas para os que eram iguais a nós.
Recordo o espanto com que recebi aquela resposta dada com toda a naturalidade: “Sim, certamente haverá lugar para o Dalai Lama no Céu”.
Historicamente, os Jesuítas foram enviados a evangelizar as fronteiras — geográficas, culturais e humanas. Eu próprio era uma dessas fronteiras.
Na adolescência, tornou-se claro para mim que o amor descrito nas Escrituras, como vínculo exclusivo entre homem e mulher, não me retratava. Guardei esse segredo com cuidado. Afinal, ser igual é tão mais seguro e fácil do que ser diferente…
Só nos campos de férias de verão dos colégios jesuítas me sentia realmente seguro para ser eu próprio. Nessas bolhas, recordavam-nos, em cada oportunidade, o amor incondicional de um Deus que nos amava tal como éramos — com todas as nossas qualidades e defeitos.
Talvez houvesse, afinal, lugar para mim na Igreja Católica. Mas esse lugar estava lá naquela fronteira dos jesuítas…
No mundo real, tudo era diferente. Os chamados “católicos de bem” alimentavam a sua moral à custa da crítica às “aberrações”. Bandidos assumidos eram recebidos com respeito na missa de domingo, mas homossexuais eram olhados de lado. Essa hipocrisia provocava-me repulsa — pelos outros e por mim mesmo.
Nessa idade adulta, as memórias antigas do consolo de sentir o amor incondicional de Cristo começaram a desvanecer. Não esqueço os comentários homofóbicos cuspidos por homens poderosos com quem trabalhei, dos quais, por medo, me sentia obrigado a rir.
Cada declaração conservadora e moralista desses "donos do bom catolicismo" empurrava-me para longe — de novo para aquela fronteira de onde, décadas antes, os jesuítas me tinham pescado, ainda criança.
Até que, um dia, aquele homem simples apareceu na varanda da Praça de São Pedro. Era um Jesuíta. Desarmou os hipócritas e os poderosos: calçava sapatos velhos e ensinava-nos que o único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo é para a ajudar a levantar-se.
Chamava-se Francisco. Desconcertou os soberbos, os moralistas, os fariseus de todos os tempos. Rasgou os muros do preconceito e lembrou-me — a mim e a todos os desiludidos — que a Igreja também é, afinal, nossa.
Como ele próprio disse: “A Igreja não é uma alfândega, é a casa paterna onde há lugar para cada um com a sua vida cansada”.
Estive, pela primeira vez, com o Papa Francisco em 2014, em Roma. Os contactos com um dos seus conselheiros, Father Michael, mantiveram-se depois desse encontro. Um ano depois, voei para o Vaticano, apenas com bilhete de ida, para me juntar à equipa do Conselho Pontifício para a Paz e Justiça, enquanto jovem assessor do Cardeal Turkson.
Infelizmente, esse capítulo da minha vida foi mais breve do que era suposto. Regressei a Portugal para integrar a equipa do Ministério da Saúde do XXI Governo Constitucional. Apesar do contexto diferente, inspirado pelo exemplo do Papa Francisco, o desafio diário inalcançável manteve-se: "Em tudo Amar e Servir".