As pessoas que vivem na área do H2, em Hebron, um dos locais sob maiores restrições em toda a Cisjordânia, vivem sufocadas pela ocupação israelita, especialmente desde o início da guerra em Gaza. A Médicos Sem Fronteiras (MSF), que chegou mesmo a ser forçada a suspender atividades durante vários meses dentro do H2, alerta que o acesso a cuidados de saúde está gravemente comprometido e que a saúde mental e física da população se encontra em risco e continua a deteriorar-se.
Esta área de Hebron abarca cerca de 20 por cento de toda a cidade e é representativa dos muitos desafios enfrentados pelos palestinianos que vivem sob controlo israelita. Ali residem aproximadamente 7.000 palestinianos e centenas de colonos israelitas. No bairro H2 são impostas regulamentações rigorosas aos movimentos das pessoas, encerramentos sistemáticos e uma violência contínua. As equipas da MSF têm vindo a prestar cuidados primários de saúde e apoio em saúde mental, em duas clínicas, a palestinianos cujo acesso aos cuidados de saúde é obstruído de forma direta.
Dentro do H2 existem cerca de 28 postos de controlo israelitas a funcionar em permanência, muitos dos quais estão fortificados com detetores de metais, câmaras de vigilância e tecnologia de reconhecimento facial, e ainda instalações para detenção e interrogatório, limitando profundamente os movimentos dos residentes palestinianos e de trabalhadores de saúde no bairro.
Desde o início da guerra, as restrições impostas pelas forças israelitas aumentaram drasticamente na Cisjordânia, incluindo em Hebron. Em dezembro de 2023, argumentando preocupações de segurança, as autoridades israelitas obrigaram as equipas da MSF a suspender as atividades médicas e humanitárias durante mais de cinco meses em Jaber, dentro do H2.
Como alternativa, a MSF abriu uma clínica móvel perto da zona de Jaber, fora do posto de controlo, e em Tel Rumeida, acessível a pessoas que conseguem sair do H2 – mas apenas algumas pessoas conseguem ali chegar.
“Apesar de agora ser possível providenciar cuidados na clínica da MSF em Jaber, o acesso permanece um desafio uma vez que o nosso pessoal pode ser revistado e retido nos postos de controlo para entrar no H2”, explica a coordenadora de projeto da MSF Chloe Janssen.
“O acesso a cuidados médicos não deve jamais ser arbitrariamente negado, impedido ou bloqueado”, sustenta.
Acesso restrito a cuidados de saúde
Desde o início da guerra, a maior parte do pessoal do Ministério da Saúde não conseguiu obter as autorizações necessárias para passar nos postos de controlo israelitas, deixando apenas uma clínica da MSF operacional durante aquele período.
“Tenho 77 anos e doem-me os pés. As forças israelitas impedem-nos de usarmos veículos, por isso pego as crianças pela mão e venho pelos caminhos entre as casas para chegar à clínica ou a qualquer serviço médico”, conta uma paciente e residente na área do H2.
A MSF enfrenta frequentemente interrupções nos serviços prestados na clínica móvel que opera, sendo barrada a entrada na área às equipas da organização médica-humanitária ou impostas restrições aos movimentos durante feriados públicos israelitas. Estas interrupções na prestação de cuidados têm um impacto profundo na saúde dos pacientes, especialmente para quem precisa de cuidados continuados, como acontece com as pessoas que têm diabetes ou hipertensão.
As clínicas da MSF providenciam não só cuidados médicos essenciais mas são também um dos raros espaços existentes para ligação social entre as pessoas, num ambiente marcado pelo isolamento e pelas restrições à mobilidade. Duas vezes por semana, as clínicas móveis prestam assistência a um total de 60 a 70 pacientes, com cuidados físicos e apoio em saúde mental, para ajudar os residentes do H2 a lidarem com o trauma contínuo das circunstâncias em que vivem.
Impactos nas crianças e famílias
Entre outubro de 2023 e maio de 2024 permaneceram fechadas três escolas palestinianas que servem pelo menos 350 alunos, ao mesmo tempo que mais de 13.000 estudantes na área estiveram sem aprendizagem presencial. Muitos abandonaram completamente os estudos devido aos custos logístico e psicológico de frequentar a escola nestas condições, segundo dados do Gabinete para a Coordenação de Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA, na sigla em inglês).
“Temos observado um declínio dramático na saúde mental das crianças”, nota a conselheira da MSF em saúde mental, Ola Jabari. “Muitas crianças sofrem de enurese [urinar na cama], têm pesadelos e dificuldades académicas. Vemos também sintomas de trauma como hiperatividade e dificuldades na concentração, tudo ligado à violência e restrições que testemunham diariamente.”
Ola Jabari descreve ainda que “os pais aqui estão sob imensa pressão. Não conseguem suprir as necessidades dos filhos – económicas, emocionais ou psicológicas. Vemos até um aumento da violência doméstica à medida que o stress aumenta dentro das famílias.”
A MSF está também a disponibilizar atividades recreativas para as mulheres e crianças palestinianas que chegam de todas as zonas de Hebron.
“As pessoas que participam nestas atividades apreciam ter um local seguro para conhecer e conversar com outras mulheres”, avança a conselheira em saúde mental. “E para quem vem do H2, estes momentos são uma oportunidade para escapar a um ambiente confinado que se assemelha a uma prisão”.
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O custo mental do trauma contínuo
“A Palestina não é um caso de perturbação de stress pós-traumático, porque o trauma nunca acaba. Aqui estamos a falar de trauma continuado e complexo. Toda a população é afetada”, considera a responsável da MSF de atividades em saúde mental, Lucia Uscategui.
Esta profissional da organização médica-humanitária recorda a história de um rapaz de 11 anos que foi forçado a passar por uma revista corporal humilhante num posto de controlo.
“Ele recusou-se a sair de casa durante várias semanas após o incidente. Tinha pesadelos, enurese e uma ansiedade gravíssima. O pai dele trouxe-o até nós, mas o trauma tinha afetado ambos profundamente. Esta é a realidade de muitas famílias no H2.”
Apesar dos enormes desafios, algumas pessoas na comunidade continuam a demonstrar uma notável capacidade de superação. Lucia Uscategui sublinha, porém, que se verifica um aumento preocupante de hábitos que são prejudiciais para a saúde.
“Observamos que há mais pessoas a fumar, a passar o tempo todo no telemóvel ou a lançar mão de outras soluções rápidas que oferecem algum alívio a curto prazo. As soluções a longo prazo, como a terapia, parecem estar fora de alcance porque as pessoas perderam esperança na mudança.”
“Mesmo se o conflito e a ocupação terminassem amanhã, as consequências persistiriam durante anos”, reflete a responsável da MSF de atividades em saúde mental. “Mas o nosso trabalho é mostrar às pessoas que não estão sozinhas – que ainda há alguma esperança, mesmo nos momentos mais sombrios.”
A MSF insta as forças israelitas a porem fim às medidas restritivas que impedem a capacidade dos palestinianos de acederem a serviços básicos, incluindo cuidados médicos. Israel tem de tomar todas as medidas possíveis para garantir que os cuidados médicos se mantêm acessíveis e sem obstruções. O acesso a cuidados médicos nunca deve ser negado, impedido ou bloqueado arbitrariamente.