Uma campanha presidencial nos Estados Unidos depende por vezes do ‘fator nostalgia’, dos ex-Presidentes dos respetivos partidos que aparecem, não apenas para dar um ar da sua graça, mas para tentar emprestar a sua fórmula vencedora aos candidatos. A menos de um mês das eleições, com todas as sondagens a apontarem para mais uma votação extremamente renhida no estado da Geórgia, o Partido Democrata utilizou finalmente um dos seus ‘jokers’, um trunfo guardado especificamente para as zonas mais pobres do país: o 42.º Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton.

No domingo, Clinton evitou o grande centro de Atlanta e viajou pelas zonas rurais da Geórgia, a uma igreja batista afro-americana em Albany e a uma pequena romaria de peixe frito em Fort Valley, para promover a candidatura de Kamala Harris e convencer o eleitorado fora das zonas urbanas. O histórico Presidente democrata discursou num serviço da Igreja Batista Mount Zion, em Albany, onde pediu um país “unido” e lamentou a polarização e a desinformação que se espalharam pelos EUA.

“Unir as pessoas e construir, reparar as divergências, essas são as coisas que funcionam. Culpar, dividir, menosprezar - dão muitos votos em altura de eleições, mas não funcionam”, disse Clinton em Albany, uma localidade importante para o movimento dos direitos civis dos anos 60, citado pela Associated Press.

O ex-Presidente acrescentou que “esta eleição e o futuro do país serão sobre o que as pessoas, indecisas em votar, vão fazer durante as próximas três semanas”. “É a coisa mais doida que já vi”, comentou.

À tarde, o antigo líder norte-americano foi ao condado de Peach County, a Fort Valley, a cerca de duas horas a sul de Atlanta. De boné na cabeça e pin na camisa, desafiou os pescadores a voltar a votar no Partido Democrata, vincando que “eles [republicanos] terão uma colina muito difícil de subir” se os democratas vencerem na Flórida.

Clinton foi ainda à sede de campanha de Kamala Harris em Albany, onde confirmou que ele próprio pediu à campanha para o mandar para as áreas rurais da região, onde se sente mais confortável para discursar.

Segundo o New York Times, a estratégia democrata de ir às zonas mais isoladas e agrícolas do território tem sido replicada pelos estados mais renhidos desta eleição: em vez de atacar apenas os grandes centros urbanos, onde já é a favorita, a campanha de Harris quer tentar virar os subúrbios do Sul, onde os valores conservadores mandam e onde o Partido Republicano teve sempre uma presença mais forte.

A verdade é que há poucos nomes capazes de aplicarem essa estratégia como Bill Clinton, cuja chegada ao poder está intrinsecamente ligada às dificuldades da classe rural norte-americana. O seu sotaque sulista do Arkansas, onde foi governador, a abordagem de temas mais corriqueiros e leves, o conhecimento profundo da exploração agrícola de cada população e o currículo económico dos anos 90 são pontos óbvios a favor. E Clinton apontou também as semelhanças com Tim Walz, o candidato a vice-presidente e “número 2” de Kamala Harris, afirmando que “não doía nada ter alguém no escritório do vice-presidente que acompanha o preço do milho, dos cereais e da soja”.

Mas o figura de Clinton é útil para Kamala Harris pelo potencial que tem junto do eleitorado afro-americano, crucial para conquistar a Geórgia. Em 1992, Clinton, com a sua imagem de homem de origens simples e pobres, de classe trabalhadora do Sul subdesenvolvido, cativou tanto eleitores negros (que simpatizaram com a sua luta e gostaram do seu à vontade nas comunidades) como eleitores brancos conservadores (que se reviram na sua origem). Como Presidente, nomeou quatro secretários negros, defendeu a introdução de quotas para comunidades afro-americanas e o seu mandato coincidiu com um aumento do poder de compra das minorias étnicas nos EUA, contribuindo ainda mais para a sua popularidade junto dos eleitores negros.

Até Bill Clinton aparecer, fazer campanha em estados conservadores como a Geórgia ou a Carolina do Sul, onde a considerável população afro-americana continua com muitas dificuldades em votar, era visto quase como uma perda de tempo para os democratas. A relação entre Clinton e o eleitorado afro-americano foi tão forte que, em 1998, a escritora Toni Morrison escreveu na revista “New Yorker” que Bill Clinton tinha sido “o primeiro Presidente negro”. A história acabou por esquecer que Morrison, laureada com o Prémio Nobel da Literatura, usou a expressão, não como um elogio, mas para associar o processo de exoneração contra Clinton, e a forma como foi tratado por meios conservadores, à discriminação de pessoas negras na imprensa e na política.

Sobram agora dúvidas sobre se Clinton ainda tem essa capacidade de mover o eleitorado negro - a Associated Press apontou que uma boa parte já não se lembra dos mandatos do antigo Presidente e da sua importância para as minorias étnicas nos EUA. A visita aconteceu poucos dias antes do início do voto antecipado na Geórgia, que começa na terça-feira. Esta segunda-feira, Clinton vai continuar a viajar pelos subúrbios do estado da Geórgia, evitando a área metropolitana de Atlanta; depois, é esperado que lidere uma mini-campanha de autocarro pela Carolina do Norte, dando mais uma vez prioridade às zonas rurais.

A Geórgia será um dos estados que vai merecer mais atenção na noite das eleições presidenciais, a 5 de novembro. Em 2020, Joe Biden conquistou os 16 votos eleitorais do estado por uma diferença de apenas 11 mil votos (em 5 milhões de eleitores). A região foi a única do Sul a votar a favor do Partido Democrata. Segundo as últimas sondagens, agregadas pelo New York Times e pelo site FiveThirtyEight, Donald Trump mantém uma magra vantagem na Geórgia sobre Kamala Harris, com uma diferença de 1,1% em relação à vice-presidente.