Em 1948 a primeira grande crise de refugiados palestinianos deu-se no rescaldo da primeira guerra árabe-israelita que teve início após a ofensiva dos países vizinhos em resposta à declaração de independência do Estado de Israel, que tinha sido criado pela ONU no plano de partilha de 1947. As narrativas acerca desta crise, que se transformou numa realidade até os dias que correm, variam. Do lado palestiniano, a chave da casa levada com os seus donos, que marcava a expectativa de retorno na altura, tornou-se o símbolo da perda e da desapropriação. Pese embora os registos históricos sejam claros acerca da violência que marcou a onda de deslocamentos neste ano e nos subsequentes, a narrativa oficial do Estado de Israel apontou sempre para a ideia de abandono voluntário.

A importância de olhar para estas duas versões da história não é só narrativa. A construção de uma ideia de moralidade e justeza é essencial para o esforço de guerra, principalmente no sentido de justificar para uma população as ações tomadas pelo Estado em seu nome. Isso mesmo vemos na chamada “operação especial” russa na Ucrânia, que foi mais uma vez comparada à libertação europeia do jugo Nazi durante as comemorações do Dia da Vitória na Rússia. Esta noção também subjaz nos discursos europeus acerca da necessidade de rearmamento do continente num contexto de incerteza e potencial ameaça securitária.

Vimos isto quando a Índia lançou o que parece ser uma operação de reconfiguração geopolítica com o seu vizinho baseada no acesso aos recursos hídricos em resposta a um ataque terrorista não reivindicado que acontece num contexto que podemos cada vez mais chamar de desordem global. isso também é visto na nova forma de mediação de conflitos norte-americana, que repete incessantemente um discurso humanista de interrupção das mortes e sofrimento advindos da guerra, enquanto negoceia contratos de exploração de recursos e de prestação de serviço humanitário terceirizado e enquanto anseia fechar mais um negócio para o setor da construção no tão esperado contexto do pós-guerra.

E para os que achavam que a “Riviera de Gaza” não passaria de um devaneio criativo de um magnata do setor imobiliário, eis que nos chega a solução perfeita – discursiva e prática, como tem sempre de ser – para garantir a sua concretização. O plano que o governo de Benjamin Netanyahu apresentou esta semana consiste na utilização da ajuda como isco, num contexto em que já faz 70 dias desde que foi completamente negada a entrada de comida, água, medicamentos, combustível, tendas, roupas, produtos de higiene, ou seja, tudo o que são elementos essenciais à vida numa zona cercada, destruída e feita insustentável por mais de um ano e meio de uma guerra injusta, desumana e desproporcional.

O plano israelita consiste na construção de corredores humanitários na zona sul da Faixa de Gaza, nos quais empresas privadas norte-americanas distribuiriam semanalmente uma quantidade manifestamente insuficiente (a ONU afirma que consiste em um décimo do necessário) de ajuda humanitária para a população, que teria que se deslocar para essas zonas se quisesse continuar a sobreviver. Sem surpresa, esta ideia veio conjuntamente com um plano de ocupação militar do enclave, no qual espera-se deslocar dois milhões de miseráveis para uma parte do território que corresponde a um quarto do que já era a zona mais densamente povoada do mundo.

Para que não fique dúvidas, o plano de Israel apresenta uma espécie de escolha, que consiste na morte pela fome e falta de recursos ou no deslocamento para a zona sul da Faixa de Gaza, próxima à fronteira com o Egito e única saída do território que não passa pelas fronteiras israelitas.

Olhar para a história não é apenas um exercício de curiosidade científica. A história mostra-nos como narrativas, práticas sociais, normas e instituições se constroem. Permite-nos perceber como foi possível que determinado processo se desencadeasse e quais foram os pontos nodais de mudança que permitiram determinadas ações. E ajuda-nos também a identificar padrões de continuidade e evitar abordagens episódicas que obscurecem a real compreensão da ação de determinados atores e de tendências no sistema internacional.

Quando a narrativa oficial do Estado de Israel voltar à carga com explicações fantasiosas de deslocamento voluntário para prover à sua população uma justificativa moral para a ocupação da Faixa de Gaza, já será tarde para milhões de homens, mulheres, crianças e idosos que sofrem a cada dia, em frente aos nossos olhos, enquanto continuamos a repetir o mantra da guerra justa ou justificável.

Enquanto assistimos incólumes a tudo o que se passa com as pessoas de Gaza – isso sem falar da Cisjordânia, que está completamente esquecida por conta dos horrores do último ano e meio e que também tem passado por um silencioso e cada vez menos lento processo que já se chama de “gazificação” -, a tal “comunidade internacional” continua num estado de inação incompreensível, embora historicamente repetido.


Já passa do tempo de começarmos a aplicar soluções idênticas a situações semelhantes, com a compreensão inequívoca de que a nossa segurança (territorial, material, física, mas, também, ontológica) se constrói aqui no continente europeu, mas não só. A ruína da moralidade e da humanidade, seja aqui ou seja além, vai determinar o futuro das instituições, normas e valores que construímos e que queremos preservar.