É-lhe reconhecido, já foi motivo de prosas várias, em dias vindouros se calhar ainda haverá literatura a discorrer sobre ele, um homem vindo de İzmit, cidade nas beiças do mar de Mármara que exercia um misterioso poder gravitacional sobre o golo, que não se trata de uma figura corpórea, antes do conceito de uma bola de futebol entrar na baliza e isso parece especialmente provável quando o sujeito em questão está envolvido na jogada. Havia 12 minutos contados, a partida ainda a despir os agasalhos e a procurar os cabides, quando o radar de Orkun Kökçü avistou a enormidade de espaço nas costas dos defesas e soltou um passe a rasgar para o turco que importa perseguir.

Lá foi Kerem Aktürkoğlu a correr com o tronco inclinado para trás, os braços abertos como se de uma galinha atarantada se tratasse e as caneleiras nos tornozelos. À esquerda do ataque, estava longe da baliza quando alcançou a bola e encarou Chico Lamba, um defesa que lhe bastou desviar um pouco da sua frente para com o pé esquerdo tirar um cruzamento de pé esquerdo, mas dos malandros, despidos de inocência e nascidos interesseiros. A bola foi tensa, a pairar sorrateiro entre os adversários e a baliza, tão trapaceiro que piorou o descuido do central Jose Fontán.

O defesa do Arouca, virado para a própria baliza, acudiu à bola sem preparos e o auto-golo dele não constará nas estatísticas do visado turco, as que lhe davam nove golos e quatro assistências nos 13 jogos anteriores. No fundo, Aktürkoğlu é um engano: parece lento de movimentos, mas pensa rápido e chega primeiro; olhem para Kerem e ousem interpretá-lo como um atacante entorpecido, mas a bola chega e serve alguém, tabela com outrem, remata ao segundo toque se não o lograr de primeira. Antes, também com relva livre na profundidade, já se escapara e sinalizara a Tomás Araújo para rasgar um passe longo, o turco ir buscá-lo e o chapéu que tentou quase chegar à cabeça de Pavlidis.

O melhor que o Benfica foi deixando no campo com vista para a Serra da Freita foram os seus pequenos pormenores, por vezes ínfimos, a servirem para desatar um apoio frontal longe da baliza com o intermitente Kökçü, capaz de encontrar gente a desmarcar-se, depois falível nos passes mais simples, ou a darem a Ángel Di María alguém a correr no seu campo de visão de modo a trazer ao jogo a apetência do argentino para empratar assistências em louça cara.

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Pouco controlo e ainda menos domínio se viu até ao intervalo entre equipas que escolhiam não pressionar alto por aí além, deixando os centrais à vontade. De Otamendi e Tomás Araújo viram-se bolas longas, sobretudo dos pés do português, por estes dias a epítome de concentração e compostura na defesa encarnada, eram um bypass ao meio-campo onde Florentino e Aursnes se resumiam a dividir bolas com Loum e David Simão. A partida não tinha fio condutor, era feita de curtos-circuitos vários porque o Benfica precipitava-se demasiado a tentar esticar o jogo para a frente e o Arouca não lograva prolongar as posses de bola que gosta de tornar idosas.

Na pobreza de perigo da 1.ª parte, só se veria Di María, num lance à Di María, ir da direita para dentro, rematar e sacar de Nico Mantl a defesa a que Anatoly Trubin ripostou com uma patada na tentativa de chapéu ao sprint de Alfonso Trezza, lançado na ressaca de um canto defensivo. Os 10 minutos iniciais do Benfica na 2.ª foram as agulhas de um sismógrafo, altos e baixos repetidos e os seus médios em parte incerta, engolidos pela incapacidade em serem opções válidas de passe enquanto o Arouca, na chuteira de David Simão, se assumia um pouco na divisão das posses de bola.

Sem presença no miolo, a solução dos encarnados começou por estar no seu hoje defesa central predileto. À quarterback, sem dedos que abocanhem a bola se tem um pé direito que a dirige com precisão de satélite, Tomás Araújo impôs o seu passe longo no marasmo: ajeitou um lançamento para cair na frente de Pavlidis, a receção do grego foi de algodão, mas já tão perto do guarda-redes não conseguiu desviar a tentativa do seu corpo. Pouco depois, Jason curvou um remate à distância que Trubin enxotou da baliza. Feita a hora de jogo, as equipas assentavam nos seus planos.

Se o Arouca, querendo a bola e só vendo baliza em investidas rápidas, cedeu a tentar embalar Trezza ou Jason em situações de campo aberto, o Benfica, diminuído nas pernas curtas dos seus médios no cerne do campo, puxou o seu melhor construtor para os comandos.

ESTELA SILVA

O jogo viraria o cadeirão confortável de Tomás Araújo, um pensador que por acaso é defesa e de trás, com o jogo por diante, avistando todas as coordenadas de frente, chamou a si a responsabilidade de criar vantagens na partida. Tanto a lançar à distância na profundidade que o Arouca se arriscava a dar com uma linha defensiva subida, a encontrar gente à largura - percebendo que pelo centro não daria, Bruno Lage foi buscar Jan-Niklas Beste ao banco para o depositar bem aberto à esquerda - ou a furar linhas adversárias em condução de bola, foi o central encarnado, em vários momentos, a fatiar a equipa do Arouca.

O Benfica marcaria o segundo golo por Di María, ao converter o penálti (72’) ganho por Leandro Barreiro numa confusão na área originada por um passe matriarca de Aursnes, o único a rasgar a última linha contrária que deixou Pavlidis desperdiçar uma oportunidade na cara do guarda-redes. O pé esquerdo amorfo de Beste não ampliou a vantagem a meros metros do alvo. Os últimos 10 minutos fizeram a equipa abrandar, querendo pausar o ritmo sem ter maneira de o garantir a não ser recuar linhas, compactar o bloco, confiar na coesão das peças.

A postura voltou a fazer a bola ir mais vezes a David Simão, o certeiro distribuidor do Arouca que galgou metros no campo, devolveu Sylla e Jason à ação perto da área contrária. Nunca incomodaram o Benfica com vagas sucessivas, mas tiveram Tiago Esgaio, em zonas que lhe são estranhas na esquerda da área, a cabecear uma bola que Trubin salvou mais do que defendeu. Seria o susto derradeiro numa noite de solavancos em que o Benfica teve o desejado - a vitória que encurtou para cinco pontos a desvantagem em relação à liderança do Sporting, com um jogo em atraso por realizar.

Se há ponto reluzente que fica de um jogo quanto baste além da familiaridade, já badalada, de um turco com os golos, é Tomás Araújo. Ter um defesa central que passa como um médio, pensa tal e qual e joga que nem um, será sempre uma arma valiosa quando o Benfica não tiver o seu meio-campo capaz de suster a equipa.